É verdade que foi descoberta por acaso, quando cantava com uns amigos numa mesa ao lado do Rodrigo Leão e do Gabriel Gomes?

Na altura tinha 17 anos e o Bairro Alto era um lugar bastante misterioso, muito diferente do que é hoje, com algumas tasquinhas e discotecas. Eu e os meus amigos corríamos essas capelinhas todas, e essas saídas noturnas revestiam-se de um encanto especial, porque eu estava sempre a cantarolar, e tinha uma amiga que me pedia sempre para cantar nessas saídas. Isso reforçou esse gosto pelo canto, dando-me algum eco do entusiasmo das pessoas que batiam palmas e pediam mais. Nesse dia em particular, estávamos no Gingão, e entraram os Sétima Legião. Na altura, estavam à procura de uma cantora e penso que fui a 14ª que eles ouviram. Houve uma história muito engraçada relacionada com esse episódio: o Pedro Ayres estava no Brasil, e o Rodrigo levou a cassete com a gravação da audição ao aeroporto para ele ouvir. Depois chamaram-me para começarmos a trabalhar e nunca mais parei.

Tinha apenas 17 anos quando integrou os Madredeus, um projeto musical inovador na cena musical portuguesa nos anos 80. Teve logo noção que a sonoridade dos Madredeus era algo de único e inovador?

Desde o primeiro disco que o grupo foi recebido com um entusiasmo extraordinário, quer por parte do público, quer por parte da crítica. Gravámos o primeiro disco em 1987, e no final do ano seguinte fomos convidados para participar na Bienal de Jovens Artistas de Bolonha. Logo aí tivemos noção do entusiasmo que a nossa música provocava em quem nos ouvia e nem sequer percebia o idioma. Quando esta aventura começou, não imaginava que a música ia ser a minha vida, embora não deixasse de o desejar. A música sempre foi uma grande companhia para mim. Sendo filha única, ocupava grande parte do tempo a ouvir música e a cantar. Tive a felicidade de integrar um grupo em formação que me apresentou um repertório que era completamente novo, mas que ao mesmo tempo me era muito familiar e que acabou por ter grande ressonância junto do público. Os primeiros anos foram de muito entusiasmo, até porque estávamos a entrar numa fase muito diferente daquela que o país tinha vivido na década anterior. Os Madredeus tinham um pendor muito português, vindos da tradição, mas renovando-a. Tínhamos uma linguagem diferente, de um ambiente íntimo, de uma quietude… Penso que não percebemos isso logo à partida, não como o fazemos hoje, olhando para trás e analisando o nosso percurso. Cantava canções que me emocionavam muito, com as quais me identificava, e o lado sentimental das músicas causava uma grande ressonância junto das pessoas. A minha vida foi-se lentamente transformando no oposto do que tinha vivido até então, que era filha única, estava a estudar e nunca tinha saído do país. A gravação do primeiro disco foi feita em três noites no Teatro Ibérico. Tínhamos que tocar de noite para não captar o som do elétrico [risos].

Os seus pais incentivavam-na?

Estudei piano e na altura em que comecei a cantar estava na Academia de Amadores de Música, mas encarava isto de forma lúdica. Em casa organizava Festivais da Canção com as minhas primas que viviam no andar de baixo. O canto era uma presença constante e uma companhia. Na altura em que comecei a sair à noite e a cantar nessas saídas, andava apaixonada por dois discos que os meus pais tinham em casa e que me marcaram. Um deles da Amália (o que tinha o tema Abandono e que tinha o busto na capa), e Cantigas do Maio, do Zeca Afonso. Eram temas desses dois discos que cantava nessas saídas.

Em 2007 deixou o grupo. Achou que estava na altura de se dedicar a uma carreira a solo?

As nossas vidas mudaram, passámos a ter famílias, o calendário teve que se começar a gerir de outra forma. O primeiro calendário durou dez anos, o segundo outros dez, entretanto parámos durante um ano para pensar como nos íamos organizar. Tinha-se falado em ter três ou quatro meses de atividade muito intensiva e depois cada um faria outras coisas, até porque havia músicos que tinham outros projetos. Nesse ano gravei dois discos produzidos pelo Pedro Ayres de Magalhães, e outro a convite do compositor polaco Zbigniew Preisner, Silence Night & Dreams, gravado pela EMI Classics. Foi um ano de grande intensidade, em que fiz tournée com esses três projetos. No final do ano, quando voltámos a falar sobre o calendário, o que me foi proposto foi uma coisa muito distinta: um contrato de sete anos de prioridade (não de exclusividade). Ou era isso ou saía. Fiquei surpresa com a inflexibilidade, mas uma vez que as coisas eram assim, decidi sair. Pela primeira vez disse que não.

Mas nunca desistiu da música…

Entretanto integrei um grupo de criação de repertório, comecei a criar algumas melodias e a escrever umas letras. Nos Madredeus cantava aquilo que me entregavam, tinha algum espaço de criatividade mas não é o mesmo que ter total liberdade para criar letras e melodias. Esse grupo não continuou, mas fiquei sempre com a ideia de criar um grupo de músicos com os quais iria criar repertório, o que veio a acontecer mais tarde, em 2011. Até essa data fiz muitas coisas: estive em Itália, onde cantei com os Solis String Quartet, ao mesmo tempo que ia construindo concertos e fazendo arranjos, sempre à procura dos músicos certos para criar esse ambiente de grande dedicação. Isso surgiu em 2011, e em 2012 gravei o meu primeiro disco de originais, Mistério, e o segundo, Horizonte, em 2016. Entre esses dois, gravei um disco onde fiz os arranjos para uma série de canções mexicanas e de outros países da América Latina.

“Quando esta aventura começou, não imaginava que a música ia ser a minha vida, embora não deixasse de o desejar”

Colaborou com diversos artistas de renome internacional como José Carreras, Caetano Veloso ou Gilberto Gil. Há algum nome com quem gostasse de trabalhar?

Nunca pensei muito nisso. As colaborações que fui fazendo foram sempre encontros muito fugazes, convites que me chegaram. Só muito recentemente, em maio, num concerto que dei no Casino Estoril, é que convidei duas pessoas para se juntarem a mim: a Marisa Liz e a Sara Tavares. Duas mulheres que admiro profundamente, de personalidades muito distintas mas igualmente encantadoras. Mulheres de grande força e de grande entrega. Conheci a Marisa porque os Amor Electro convidaram-me a cantar num concerto que deram no Campo Pequeno, e a Sara sigo-a há muitos anos com grande interesse. A música dela tem-me feito muita companhia. Convidei as duas e achei maravilhoso.

Foi difícil deixar de ser apenas intérprete para ser também compositora?

Foi uma alegria enorme perceber que tinha essa capacidade. Para gravar o primeiro disco quisémos ir para um sítio onde estivéssemos completamente dedicados à música, sem distrações. Ficámos no Convento da Arrábida (pertencente à Fundação Oriente, que generosamente nos cedeu o espaço durante um mês). Tinha muitos temas que não tinham ainda as letras escritas e as coisas fluíram e correram muito bem. As coisas estavam cá para sair, de certa forma sabia o que queria dizer. As palavras vieram, foram encaixando na métrica. O segundo disco já foi mais complicado, mas também porque foi mais difícil arranjar tempo para estar completamente disponível. Ainda pensei que podia correr da mesma forma mas enganei-me completamente, porque as coisas nunca se repetem. Tentei repetir o processo mas não resultou, até porque tive algumas distrações.

O que lhe dá mais prazer: cantar as suas letras ou interpretar as dos outros?

São coisas muito distintas. Quando canto alguma coisa, as palavras dizem-me muito, mesmo que não sejam minhas. Encarno o personagem. No caso das minhas letras já não é bem assim. Embora as letras não sejam autobiográficas, elas refletem o meu pensamento, a minha forma de estar. Com as minhas letras estou mais à vontade, tenho outra liberdade. São coisas distintas mas igualmente cativantes.

A Teresa será sempre associada aos Madredeus. Encara isso como um fardo ou como um motivo de orgulho?

Não diria um fardo, mas às vezes pode ser um pouco limitador. A ideia que as pessoas têm dos Madredeus é muito distante. Embora déssemos muitos concertos e enchêssemos salas pelo mundo inteiro, não era uma música que passasse muito na rádio, não era massiva. A ideia que as pessoas têm é de um certo personagem que é mais pequeno do que na verdade os Madredeus foram. Não posso encarar como um fardo porque é algo que faz parte de mim, é aquilo que sou. É indissociável da minha pessoa, é a minha genética musical. Foram 20 anos. É uma grande parte da minha estrutura emocional. À medida que o tempo vai passando ganho distância e outra perspetiva, ao ponto de agora fazer sentido dar um concerto em que a música do grupo está mais em foco.

25 anos depois, recorda a estreia de Lisbon Story de Wim Wenders com um espetáculo único. Que memórias guarda dessa experiência?

Foi uma belíssima coincidência. A editora tinha acabado de decidir que o disco que fizéssemos a seguir seria editado em 32 países. Nessa altura (1994), Lisboa, que era Capital Europeia da Cultura, encomendou um documentário sobre a cidade ao Wim Wenders, e ele perguntou-nos se podia usar a nossa música como banda sonora. Estávamos há três anos sem gravar e tínhamos muito repertório, por isso propusemos-lhe que usasse o novo repertório. Numa sessão de estúdio, em vez de gravarmos um disco gravámos dois. A música tornou-se no storyboard do filme e deu origem ao guião que trazia a visão do Wim Wenders sobre Lisboa, que acabou por nos convidar a entrar no filme. Foi uma experiência muito enriquecedora. Para o grupo foi extraordinário, porque acabámos por editar os nossos discos pelo mundo inteiro e porque fizémos parte de um filme que nos deu a conhecer a um público a que se calhar não chegaríamos de outra forma. Ainda hoje muitas pessoas me dizem que foi através do filme que nos conheceram.

O que se segue?

Tenho várias coisas escritas, soltas. Tenho um tema que fiz com um poema do José Saramago que se chama Alegria. Essa alegria vinca o início de um novo ciclo.

Toda a caixa de palco está forrada a frias e asséticas folhas de alumínio. A uma secretária, de costas para a plateia, está Bob, o incansável trabalhador da empresa. A seu lado, a menina da manutenção física e emocional desta máquina humana zela para que tudo corra bem. Mede-lhe a temperatura, dá-lhe água, esvazia o depósito da algália; em suma, mantem-no vivo e operacional. Para complementar o conforto de Bob, há ainda o rapaz das limpezas que louva a eficácia deste espaço para que não se perca, inutilmente, tempo de trabalho; o responsável pelo som, que ocasionalmente coloca a música preferida de Bob; e uma desenhadora de luz que deve, mediante o passar das horas, trocar o fundo da janela do dia para a noite, e vice-versa. Um dia, Bob decide abandonar o seu posto e dá conta da existência de um elemento disruptivo na incólume sala de trabalho.

Como mote para a sua mais recente criação, o Teatro da Cidade, coletivo constituído pelos atores e atores Guilherme Gomes, Rita Cabaço, Nídia Roque, Bernardo Souto e João Reixa, propõe uma reflexão “sobre o modo como o ser humano se relaciona com o trabalho”. O ambiente distópico, “espaço hostil, artificial e sem contacto com a natureza”, que leva ao extremo a ideia daquilo que pode ser “o escritório de uma grande corporação”, é dado pelo cenário concebido pela cenógrafa Ângela Rocha.

“A ideia, nomeadamente a palavra japonesa que dá título ao espetáculo, surgiu em conversa com um amigo durante uma viagem num autocarro apinhado de pessoas que regressavam a casa vindas do trabalho”, lembra Guilherme Gomes, que aqui interpreta Bob, o trabalhador que funciona “como um telemóvel ligado ininterruptamente”. “Nos rostos notava-se o cansaço, e começámos a falar sobre o karōshi, fenómeno que é reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho, e que é indissociável do stress ou do síndroma de burnout”. Importa lembrar que, ainda recentemente, em sequência de eleições na Indonésia, mais de 270 trabalhadores incumbidos de contar votos terão sido vítimas de doenças relacionadas com cansaço provocado pelas longas horas de trabalho.

Karōshi é uma tragicomédia sobre “a urgência de refletir sobre o trabalho e de como ele interfere nas nossas vidas e na nossa sociedade”. O espetáculo está em cena na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, até 24 de novembro.

Antes de dirigir Metropolis, Fritz Lang era já um dos mais reputados cineastas alemães do seu tempo, autor do enorme sucesso Dr. Mabuse, o Jogador, dirigido em 1922, e que viria a dar origem a duas sequelas. Não seria pois de estranhar que, pouco tempo depois, Lang recebesse luz verde para dirigir Metropolis, naquele que seria o maior investimento de sempre da UFA (Universum Film AG), produtora germânica que ambicionava conquistar o mercado americano.

Como lembra Filipe Raposo, músico a quem, quase 100 anos depois, o Teatro São Luiz desafiou a compor uma nova partitura para Metropolis, “Lang faria, em meados dos anos 20, uma viagem a Nova Iorque que se revelaria vital para o filme”. Nessa viagem ao “Novo Mundo”, pronunciado pelos esmagadores arranha-céus de Manhattan, Lang e a mulher, a argumentista Thea von Harbou, inspiraram-se para escrever a história de uma cidade onde a classe privilegiada domina a partir dos arranha-céus, e os operários são levados para os subterrâneos a fim de manterem vivas as máquinas que fazem mexer a cidade.

Toda a produção foi épica, envolvendo milhares de figurantes e meios nunca antes vistos. Porém, nem a UFA conquistou a América, nem Lang veria estrear nas salas o filme com que sonhou. Por imposição de censores e produtores, Metropolis chegou aos cinemas resumido a pouco mais de 80 minutos, versão essa que terá estreado no São Luiz Cine, em 1928, com o maestro Pedro Blanch a dirigir uma orquestra de câmara que executa a partitura de Gottfried Huppertz.

Tratando-se de uma encomenda do São Luiz ao compositor e pianista Filipe Raposo como evocação à estreia do filme naquela sala, por ocasião da comemoração dos 125 anos do teatro municipal, a versão que vamos agora encontrar é um pouco mais longa, com cerca de duas horas, correspondente àquela que circulou entre os anos 40 e 80 do século passado. “Optámos por esta, e não pela mais recente – a de duas horas e meia –, porque é a que está mais próxima da que aqui estreou.”

Apesar de já ter acompanhado ao piano por diversas vezes o filme de Lang, este Metropolis – Filipe Raposo meets Fritz Lang é, para Raposo, “algo completamente novo”. “O desafio era compor uma nova partitura para os 120 minutos de filme, para o mesmo número de músicos que aqui estiveram em 1928”. O ensamble de câmara proveniente da Orquestra Sinfónica Portuguesa será conduzido pelo maestro Cesário Costa.

Num trabalho de composição que se prolongou “por mais de três meses”, Raposo pretende que a sua música consiga “retratar o futuro, trazendo a Metropolis” as referências do presente. Por isso, o compositor considera que a sua banda sonora se afasta radicalmente da de Gottfried Huppertz, “porque a minha visão do filme, histórica e sociologicamente, é necessariamente outra.”

O compositor elencou três grandes temáticas abordadas no filme que trespassam a sua partitura. Primeiro, “as cidades e o futuro”, com toda aquela “verticalidade arquitetónica” refletindo-se na música. Em segundo, as lutas de classes, “representadas com muita agitação”. Por fim, o tema da paixão e sedução, “transversal tanto no domínio emocional como no domínio do poder, e onde a minha música revisita compositores como Bach ou Jean-Philippe Rameau, na qual existe uma ideia de sedução intrínseca, ligada a melodias sinuosas e harmonias muito equilibradas.”

O encontro de Filipe Raposo com as imagens do futuro imaginado por Fritz Lang promete, assim, uma experiência assombrosa entre a música de hoje e de amanhã e a intemporalidade do grande cinema na mais nobre das salas do Teatro São Luiz.

No dia em que passaram cinco anos sobre a morte de Sophia de Mello Breyner Andresen foi atribuído o seu nome a um dos mais belos miradouros da cidade de Lisboa. No local erigiu-se também um monumento com o busto de Sophia, réplica de um original em bronze, esculpido nos anos 50 por António Duarte (1912-1998). Sophia muito raramente evocou Lisboa na sua poesia. Devotando um culto aos grandes espaços naturais – o mar, as montanhas e planícies – manifestou por vezes o seu desgosto pela vida “fechada” entre “os muros e as paredes” da cidade. Como no poema justamente intitulado Cidade:

(…)

Saber que tomas em ti a minha vida

E que arrastas pela sombra das paredes

A minha alma que fora prometida

Às ondas brancas e às florestas verdes.

No monumento, uma placa recorda um desses raros poemas, Lisboa, que abre o livro Navegações. Em 1977, Sophia foi convidada a participar nas comemorações do Dia de Camões em Macau. Sobrevoando o oriente pela primeira vez, pensou nos homens que ali chegaram 500 anos antes, sem saberem o que sabemos hoje.

Navegavam sem o mapa que faziam

A viagem a Macau vai despoletar uma reflexão sobre o que teria sido para os navegadores portugueses, o contacto com o admirável mundo novo: a revelação daquelas cores, daqueles cheiros, daqueles sons, o espanto e o deslumbramento perante uma realidade tão distante e fascinante.

Lisboa surge, assim, como o ponto de partida simbólico dos Descobrimentos, o lugar conhecido que se deixava a troco da incerteza do novo mundo. Lisboa era um grande caminho para o mar.

(…)

Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata

Lisboa oscilando como uma grande barca

Miradouro Sophia Mello Breyner Andresen

 

No centro do jardim, uma estátua figurativa em bronze de autor desconhecido, intitulada Mãe e Filho, evoca a relação maternal. Possivelmente influenciada pela Flora de Jean-Baptiste Carpeaux, representação da deusa das flores e da Primavera, esta estátua com as suas figuras aladas sugere uma representação helenista relacionada com a cultura grega e a mitologia da antiga Grécia. Torna-se, por isso, o local ideal para lembrar a apaixonada relação de Sophia com a Grécia.

O primeiro contacto com a civilização grega surge quando, muito pequena, Sophia descobriu Homero. Desde logo se sentiu deslumbrada pelas coisas gregas, e pela Odisseia em especial, desenvolvendo de imediato uma forte atracção pelas divindades gregas. Nos seus primeiros livros Dia do Mar (1947) e Coral (1950) revela o fascínio por Dionísio e Apolo, deuses gregos que representam os impulsos da natureza.

Sophia mantinha já uma longa ligação de amor com a Grécia, um fascínio pelo seu mar, pelas suas ilhas, pela sua luz e cores, quando a partir dos anos 60 o contacto real acontece. Visita pela primeira vez a Grécia, em 1963, com Agustina Bessa Luís. Desde aí, sempre que podia regressava. Voltou com amigos, com o marido, com os filhos, com os netos, em busca, porventura, de “uma consciência múltipla e divina”, evocada num dos seus “primeiros poemas gregos”: Evohé Bakkhos.

Jardim Augusto Gil

 

No dia 27 de Novembro de 1946, Sophia casou com Francisco Sousa Tavares, no Porto. Em 1951, Sophia, o marido e os três filhos já nascidos, mudaram-se para Lisboa e começaram a viver no nº 57, 1º andar, da Travessa das Mónicas. Francisco candidatou-se a subinspector do trabalho, no Ministério das Corporações.

Depois de instalada escreveu um postal à mãe:

Estou na Graça! Cheguei hoje. Passei esta semana a abrir e a desembrulhar as coisas que me mandou. São tão bonitas. Ficam aqui tão bem. Tenho tudo o que preciso! A casa está linda! (…)”.

No poema As Casas, escreve:

Há sempre um deus fantástico nas casas

Em que eu vivo, e em volta dos meus passos

Eu sinto os grandes anjos cujas asas

Contêm todo o vento dos espaços.

Em casa de Sophia havia sempre convidados. Ali tudo se discutia. Vivia-se a liberdade antes dela existir. Salazar começa a ouvir falar de Francisco Sousa Tavares, quando a sua militância no movimento monárquico se torna mais ativa.

Em 1958, ambos apoiam a campanha de Humberto Delgado, o que tem como consequência o despedimento de Francisco Sousa Tavares da função pública.

É sobretudo a partir da década de 60 que se revela, na poesia de Sophia, a luta política, e a indignação contra o regime ditatorial. Com o Livro Sexto surgem os poemas mais directos de crítica e oposição ao regime como O Velho Abutre, dirigido obviamente a Salazar:

“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas

A podridão lhe agrada e seus discursos

Têm o dom de tornar as almas mais pequenas”

Este livro levou a Sociedade Portuguesa de Escritores a atribuir a Sophia o Grande Prémio de Poesia.

No início dos anos 70 dedicará belíssimos poemas a Che Guevara e a Catarina Eufémia (comparando a camponesa alentejana a Antígona na sua busca da justiça). No extraordinário poema Camões e a Tença estabelece um doloroso paralelo entre o Portugal do século XVI, que não reconheceu o seu maior poeta, e o país contemporâneo:

(…)

Este País te mata lentamente

País que tu chamaste e não responde

Pais que tu nomeias e não nasce

(…)

Travessa das Mónicas

 

Junto ao Panteão dos Bragança, evocamos a ascendência aristocrática de Sophia e a relação com o seu meio.

Do lado materno, seu bisavô era Henry Burnay, de ascendência belga, 1º conde de Burnay, título concedido pelo rei D. Luís I. O seu avô, Tomaz de Mello Breyner, 4º Conde de Mafra, foi nomeado médico da Real Câmara pelo rei Dom Carlos I. A ele, que a ensinou a decorar poemas de Camões e Antero, ficou Sophia a dever a sua verdadeira iniciação na poesia.

Sophia nasceu no Porto, na Rua António Cardoso. Muito perto, no Campo Alegre, a casa dos avós paternos era uma quinta com um imenso jardim romântico com varias estufas de plantas exóticas, inúmeras árvores de fruto e lagos. Um “território fabuloso”, onde facilmente emergiam mundos encantados, na origem dos contos que Sophia escreveria para crianças.

Quando, em 1962, publicou Contos Exemplares, algumas dessas narrativas foram entendidas como críticas ferozes ao mundo a que Sophia pertencia por nascimento e por classe. O conto Retrato de Mónica satiriza os Movimentos Nacionais Femininos, que constituíam a estrutura de apoio do regime de Salazar. Chocadas, algumas amigas de Sophia chegaram a questioná-la sobre esse texto: – “Como é que tu foste capaz, ainda por cima um mundo que tu conheces tão por dentro? Sophia respondeu: – “É que esse mundo de que falas que eu conheço por dentro, não tem dentro, só tem fora.”

São Vicente de Fora (Panteão dos Bragança)

 

Quando eu morrer voltarei para buscar

os instantes que não vivi junto do mar

A maravilhosa vista sobre o Tejo a desaguar no oceano é o ponto de partida para a evocação do mar como convergência na poesia de Sophia.

O primeiro mar que surgiu na vida de Sophia foi o Atlântico. O mar da praia da Granja, onde Sophia passava apaixonadamente o verão numa casa bastante pequena, situada nas dunas mesmo em cima do mar. Saía directamente para a praia, e passava horas a banhar-se nas piscinas naturais que, na maré vaza, surgiam no lado sul da praia. Sophia escreveu inúmeros poemas na Granja:

Casa branca em frente ao mar enorme,

Com o teu jardim de areia e flores marinhas

E o teu silêncio intacto em que dorme

O milagre das coisas que eram minhas.

Tal como escreveu na Grécia após ter descoberto o intenso azul do mar e no Algarve, na praia Dona Ana onde as semelhanças com a Grécia eram evidentes.

Miradouro do Patriarcado

 

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

Neste poema, Sophia canta a revolução do 25 de Abril de 1974, “o dia inicial inteiro e limpo”. Alguns dias depois, no Primeiro de Maio, milhares de manifestantes saíram à rua. Numa reunião na Associação de Escritores para preparar a manifestação e as frases para o desfile, Sophia sugeriu “a poesia está na rua” que Maria Helena Vieira da Silva imortalizou no cartaz que pintou.

Panteão Nacional

 

Sophia foi deputada pelo Partido Socialista na Assembleia Constituinte e legou-nos a sua mais bela definição: “Socialismo deve ser uma Aristocracia para Todos”, uma forma de todos alcançarem aos mesmos domínios a que só o aristocrata e o privilegiado acedem pela natureza do meio social em que nasceram.

Sophia morreu em Lisboa a 2 de Julho de 2004. Foi transladada para o Panteão Nacional no dia em que se completaram 10 anos da sua morte. Escreveu no poema Regressarei:

Eu regressarei ao poema como à pátria à casa

Como à antiga infância que perdi por descuido

Para buscar obstinada a substância de tudo

E gritar de paixão sob mil luzes acesas

Mário Lúcio Sousa

O Diabo foi o meu Padeiro

“Morriam-nos, para não nos matarem, este era o segredo (…) Se nos matassem, a culpa seria deles; se nos deixassem morrer, o ónus seria levianamente nosso”. Esta afirmação de uma das personagens deste romance refere-se à sua devastadora experiência na Colónia Penal do Tarrafal. Nos 45 anos do encerramento do campo de concentração, Mário Lúcio Sousa, escritor e músico cabo-verdiano, dá voz aos que sofreram na pele as terríveis condições de encarceramento: vários prisioneiros chamados Pedro, chegados em diferentes vagas de Portugal, da Guiné, de Angola e de Cabo Verde, relatam a história desta sinistra prisão e dos que a governaram ao longo dos anos. Prisioneiros que tinham em comum, além do nome, a luta pela liberdade e a mesma língua. O Diabo foi o meu Padeiro homenageia os que aí perderam a vida e os que sobreviveram, respeitando os diversos modos de falar da língua que os unia. No Tarrafal “viver era morrer”. Esta descida aos infernos tem o efeito de uma verdadeira catarse colectiva porque, afinal, “a compreensão da morte liberta-nos de todo o medo”

Dom Quixote

 

António Borges Coelho

Comunas ou Concelhos

Por ocasião dos 90 anos de António Borges Coelho, a Biblioteca Nacional de Portugal organizou uma mostra de homenagem intitulada Dar voz aos que em baixo fazem andar a História. Efectivamente, um traço unificador do conjunto da obra do ilustre historiador é o de transformar os estratos médios, os trabalhadores rurais ou os escravos, em atores sociais e colectivos. Seria, portanto, inevitável que Borges Coelho se viesse a interessar pela génese do poder local em Portugal. A presente obra questiona a existência “de um movimento concelhio peninsular, não no sentido de política administrativa ou de organização do território impulsionada de cima por monarcas e senhores mas no de forças sociais e políticas organizadas de baixo e por fim vitoriosas”. O autor lembra que “o concelho nasce da luta dos servos pela sua libertação e é ele próprio um instrumento decisivo de liberdade”. Obra fundamental que explora a génese histórica dos concelhos, contextualizando-a nos processos de Reconquista e choque cultural entre cristãos e muçulmanos.

Caminho

 

Reinaldo Ferreira

As Sensacionais Aventuras de Jim Joyce

A adolescência de Reinaldo Ferreira foi marcada pela leitura compulsiva dos fascículos norte-americanos com capa ilustrada a cores, editados em Portugal a partir de 1909, que relatavam episódios completos das aventuras de heróis como Nick Carter, o Capitão Morgan, Buffalo Bill, ou Texas Jack. Em 1924, o Repórter X acabaria cumprir o sonho de conceber um herói de folhetim que rivalizasse com os seus ídolos de juventude. Publicadas no Brasil as dez narrativas que formam a série As Sensacionais Aventuras de Jim Joyce, o Ás dos Detectives Americanos ambientam-se na América dos loucos anos 20, unindo mistérios aparentemente insolúveis a sensacionais proezas detectivescas e revelando um mestre da arte narrativa do imprevisto, do suspense e do desfecho inesperado. Inéditas em livro, estas histórias são agora objecto de uma cuidada edição com uma introdução de Joel Lima e capa de Nuno Saraiva. São ainda recuperadas as capas e ilustrações de Stuart Carvalhais e Alfredo Morais para os fascículos da publicação original.

PIM! Edições

 

Sarah Affonso – Os Dias das Pequenas Coisas

Apesar de uma obra multifacetada que percorre o desenho, a pintura, a ilustração, a cerâmica, os bordados e a decoração de móveis e interiores, Sarah Affonso permanece, 120 anos após o seu nascimento, relativamente desconhecida do grande público. O seu casamento com a figura prometeica de Almada Negreiros, e o facto de ter nascido num pais que impunha fortes barreiras sociais à afirmação artística feminina, muito terão contribuído para este facto. Este livro, bem como a exposição do Museu Nacional de Arte Contemporânea que lhe dá origem, pretende colmatar essa falha e divulgar o trabalho de uma das mais notáveis modernistas portuguesas. Álbum ilustrado dos seus trabalhos, fotobiografia e colectânea de ensaios desenvolvidos por especialistas de diversas áreas, esta belíssima publicação é uma digna homenagem a uma artista que, apesar de todos os condicionalismos, criou uma obra com uma linguagem e temática próprias sabendo ser, simultaneamente, nas palavras de Emília Ferreira, directora do MNAC, uma “hábil tecedeira” do seu tempo.

Tinta-da-china/MNAC

 

Mário-Henrique Leiria

Manifestos, Textos Críticos e Afins

Mário-Henrique Leiria (1923-1980), escritor experimentalista, distinguiu-se nos géneros de vanguarda da sua época como a ficção cientifica ou o policial psicológico que incorporou no surrealismo, movimento ao qual sempre se manteve próximo. Espírito inconformista de ironia contundente, escolheu como alvos principais da sua obra o capitalismo, a guerra, o estilo de vida da burguesia e todas as formas de violência e autoridade. Inédito em formato livro, este terceiro volume das obras de Mário-Henrique Leira reúne os mais dispersos materiais saídos da pena desta figura incontornável do surrealismo português: manifestos, textos críticos, cartas, e um sem número de textos que não se enquadram em categoria nenhuma. O autor escreve e opina sobre tudo e todos neste retrato de Portugal e do mundo visto por um autor diferente de uma forma diferente. A perspectiva da análise política, social e artística é sempre corrosiva e incómoda (e muito divertida) e permite pela primeira vez ao leitor português uma leitura mais abrangente sobre o homem e a sua obra.

E-Primatur

 

Maria Teresa Horta

Quotidiano Instável

Maria Teresa Horta foi uma das primeiras mulheres a dirigir um suplemento literário num jornal, a par do trabalho pioneiro de Natércia Freire responsável pelo suplemento artes e Letras no Diário de Notícias , entre 1959 e 1974. Em 1968, Maria Teresa Horta é convidada para dirigir o suplemento «Literatura & Arte» do jornal diário A Capital, exercendo um jornalismo literário de notável qualidade. Quotidiano Instável é o título da coluna publicada pela escritora nesse suplemento, entre 1968 e 1972. Inicialmente concebida como um espaço de crónica, a coluna assumiu progressivamente um carácter ficcional, especialmente notório quando lemos as crónicas reunidas num livro como agora acontece. A belíssima prosa poética de Maria Teresa Horta acaba assim por ser lida como uma unidade ficcional, a prenunciar o primeiro romance da escritora, Ambas as Mãos sobre o Corpo, que Eduardo Prado Coelho considerou uma obra-prima.

Dom Quixote

 

Gine Victor

Veloz como o Vento

A história verídica contada neste livro aconteceu há cerca de trinta anos no planalto de Oum-Tchim-Sin, na Mongólia Interior. Kumbo, um destemido jovem mongol, captura um pónei negro selvagem e tenta adestrá-lo através do amor. Apesar de, nos dias que correm, a Mongólia se estar a modernizar, na época em que Kumbo, filho adotivo de um chefe mongol, treinava o seu Veloz como o vento, os nómadas dessas vastas planícies viviam ainda como tinham vivido os pais e os pais dos seus pais. Nesse mundo selvagem e estruturado, onde as fábulas não tinham lugar, Kumbo vai mostrar que o amor pode tudo. O romance de aventuras Veloz como o Vento valeu à escritora Gine Victor o Prix Jeunesse, em 1960, um prémio francês para o melhor livro juvenil. O livro conta com as ilustrações de Rachel Caiano e a tradução portuguesa original esteve a cargo do poeta Herberto Helder, reconhecendo-se na prosa o seu estilo inconfundível.

Ponto de Fuga

Na nova produção do Teatro Aberto, os jovens futuros médicos vienenses da década de 1920 da peça original de Ferdinand Bruckner dão lugar a jovens millennials. São estudantes de medicina, ambiciosos e talhados para competir pelo seu lugar no mundo. Surgem-nos, como sublinha Marta Dias, a encenadora e responsável pela adaptação, “como dois tipos de pessoas: as que têm sonhos e as que têm objetivos; as que trabalham e as que seduzem; as que são criativas e as que cumprem; as que lutam e as que desistem; as que têm pena e as que tratam mal; as que manipulam e as que sobrevivem.”

Poder-se-ia julgar estar, cada tipo delas, em lados opostos da barricada. Porém, em Doença da Juventude, impera desde o primeiro minuto a “lei do mais forte”. Não é difícil perceber quem está vulnerável, nem custará entender que vontade acabará por triunfar.

O espetáculo inicia-se, precisamente, com um prólogo bastante elucidativo. Projetado na tela, assiste-se à terrível cena de um frágil antílope a ser devorado vivo por uma matilha de cães selvagens. No ambiente distópico do palco, elucidativo de “um mundo descartável e repleto de estímulos consumistas”, as perspetivas de vida que podemos avaliar como mais corretas são literalmente engolidas pelas feras. Mesmo aqueles que nos parecem mais firmes nas suas convicções, percebem que têm de vestir a pele de animais ferozes para não serem devorados como o antílope na savana.

Se a juventude vienense dos anos 20 contribuiu enquanto adulta para a tragédia do nazismo, o que será do mundo quando chegar o tempo de uma geração embrenhada em gadgets e tecnologia, “com pouco ou nenhum interesse pelo outro e completamente autocentrada no Eu?” A peça original não responde, e esta “versão geração Y” também não, embora deixando pairar dúvidas carregadas de certezas sombrias.

“Perante o mundo em que vivemos, será a lei do mais forte o caminho natural das relações humanas”, questiona a encenadora. “Aquilo que os futuros médicos de Bruckner representam são uma juventude doente, tantas vezes autofágica. E aquela que me parece ser de urgente reflexão é perceber quais são as causas da doença.”

Interpretado por um elenco jovem, o espetáculo Doença da Juventude está em cena até 29 de dezembro, na Sala Azul do Teatro Aberto, de quarta a sábado às 21h30 e, aos domingos, às 16 horas.

Quando a 29 de outubro a ZDB abriu as suas portas, num “espaço de cerca de 100 metros quadrados, na Rua da Vinha” ao Bairro Alto, poucos arriscariam supor que um grupo de 15 jovens recém-formados em artes acabava de lançar a semente para aquela que viria a ser uma das mais influentes estruturas artísticas do país. Um desses jovens era o catalão Natxo Checa, então com 25 anos, que lembra a criação da ZDB como “uma questão de sobrevivência”. Estávamos em 1994, o ano de Lisboa – Capital Europeia da Cultura, da abertura do Centro Cultural de Belém e da Culturgest, da Casa de Serralves, no Porto, “e, em conjunto com outros artistas acabados de se formarem nas mais diversas áreas, das belas artes à música, passando pela arquitetura, pelo teatro ou pelo cinema, víamos a Cultura ser tomada pela geração que nos antecedia. Foi preciso tomar a iniciativa, pois só assim o nosso trabalho poderia tornar-se visível.”

Com a “bênção” de Joseph Beuys

Cada um dos artistas associados pagava a parcela correspondente da renda do imóvel da Rua da Vinha e acabava de se comprometer a manter-se por um ano. “O que pretendíamos era mostrar o nosso trabalho, e até final desse ano programámos quatro exposições, vários concertos, um festival de performance e um outro de vídeo internacional”, lembra Natxo. Com a irreverência da juventude, à associação seria dado o nome de Zé dos Bois, uma corruptela do nome do influente artista experimental alemão Joseph Beuys. “Julgo que foi o Tiago Gomes, da revista Biblía, que o sugeriu e, como foi moda nos anos 90 as galerias serem rebatizadas com o nome dos galeristas, pareceu-nos perfeito.”

Aqueles intensos meses iniciais de ZDB acabaram por ser marcantes. “Muito naturalmente, sem pensarmos nisso, definimos com grande clareza o que haveria de ser a ZDB, uma entidade em que a comunidade artística se revê, sejam aqueles que apoiamos, sejam os outros.” Juntar tornou-se o verbo que ainda hoje a atual direção artística conjuga com orgulho quando tem de tomar decisões. “Criámos a ZDB para viabilizar projetos artísticos num espírito de comunidade, com uma ideologia e um pensar próprio e isso mantêm-se: a priori, nunca fechamos a porta a nenhum artista.”

“Desde o início, nunca quisemos combater outras instituições, mas sim complementá-las através da excelência”, sublinha Natxo Checa, fundador e curador de artes visuais da ZDB. ©Humberto Mouco/CML-ACL

Os verdes anos

Ao fim de um ano, a grande discussão entre os artistas associados era se a ZDB servia somente para dar exposição aos seus trabalhos ou se outros poderiam entrar e comungar desse espaço. A última via acabou por triunfar e nasceu o Festival Atlântico, uma bienal internacional de artes performativas que haveria de decorrer em 1995, 1997 e 1999. Natxo sublinha a ajuda prestada pelo amigo Marcel-li Antúnez, conceituado artista visual catalão, que lhe dava feed back do que se passava no panorama internacional, e foi determinante na construção da programação. E, com humor, recorda os primórdios da internet, em que artistas tão relevantes como Marina Abramovic “tinham na sua página o número de telefone de casa”, o que “facilitava bastante o contacto.”

Apesar do fôlego demonstrado e da experiência internacional decorrente de programar o Atlântico, a ZDB já não tinha residência na Rua da Vinha e debatia-se com a precariedade de espaços para prosseguir a atividade. Natxo acumulava praticamente a responsabilidade de programação em todas as áreas e impunha-se tomar a decisão de continuar com o projeto ZDB, ou acabar e limitar-se ao festival. A opção passou por continuar a ZDB, “garantindo uma programação mais regular ao longo de todo o ano e com isso ganhar maior consistência no meio artístico.”

O Palácio Baronesa de Almeida e o início de um novo ciclo

O regresso ao Bairro Alto, em outubro de 1997, permite à ZDB instalar-se na Rua da Barroca, no Palácio Baronesa de Almeida, um edifício da segunda metade do século XVIII, onde chegou a viver Almeida Garrett e que, no início do século XX, enquanto casa da aristocrata que lhe deu nome, era tido como “terreno neutro” para tertúlias entre “os homens de letras e os homens políticos”, na descrição do pai da olisipografia Júlio de Castilho. É já nesse magnífico espaço de 2500 metros quadrados que a ZDB toma a decisão de terminar com o Festival Atlântico e com a edição da revista f l i r t, uma publicação dedicada às artes, bilingue e com distribuição gratuita.

Natxo nota que, em 1999, a ZDB define um processo de renovação que passa por “deixar de trabalhar especificamente com a geração dos anos 90, refletida em 2000 com uma exposição da dupla João Maria Gusmão + Pedro Paiva, ainda estudantes das Belas Artes”. Nos anos seguintes, “deixámos de ser uma estrutura de vontade para incorporar uma vontade estruturada”. Chegou o “tempo de profissionalizar, de dar uso à experiência adquirida”. “O processo de especialização” fez Marta Furtado entrar na estrutura para desenvolver a área das artes performativas e Nelson e Pedro Gomes, hoje na Filho Único, para programar a área da música até 2006.

Marta Furtado, curadora de artes performativas considera que “da disponibilidade da ZDB para acolher um artista nascem relações de crescimento em potência. Para nós, programadores, e para ele enquanto artista.”   ©Humberto Mouco/CML-ACL

Entre a sala de ensaios e a sala de espetáculos

Marta começou por ser uma frequentadora da ZDB até ser convidada para dirigir a área na qual tem formação, conhecimento e, sublinha, “uma maior afinidade”. Em 2005, com o arranque do Negócio, na Rua d’O Século, “o teatro e a dança encontram da parte da ZDB uma resposta à necessidade de espaço físico e condições logísticas para o desenvolvimento de trabalho nessas áreas”. Esse espaço, que Marta define como “uma ponte por entre a sala de ensaios e a sala de espetáculos” acolheu companhias como a Mala Voadora e o Teatro do Vestido ou criadores como John Romão e Patrícia Portela.

Embora encerrado há um par de anos, altura em que a renda do local se tornou incomportável, tal não significou um abrandamento na atividade da ZDB nas artes performativas. “Continuamos com as residências de artistas e, muito em breve, vai surgir um novo espaço,” garante a programadora.

A ZDB a formar novos músicos

Sérgio Hydalgo chega à ZDB, por 2007, já a galeria era uma referência no panorama da música em Lisboa. Porém, o antigo radialista, autor do programa Má Fama, solidificou e diferenciou ainda mais esse papel apostando “numa rede nacional e internacional que agregou estruturas que têm como foco músicos emergentes, ou underground. A isso, juntámos uma programação regular que dá voz e espaço a propostas que não têm visibilidade em mais lado nenhum.”

O papel da ZDB na divulgação da música alternativa, leva Sérgio a crer que “o fervilhar da cena musical lisboeta” se deve muito ao que foi acontecendo no “aquário” (a sala de concertos da galeria com montra para a rua), mas também pela aposta “pioneira de residências na vertente musical, com parcerias na produção de discos ou no acompanhamento próximo dos músicos”, apontando Gabriel Ferrandini como um exemplo recente.

Quando se questiona como é que a ZDB conseguiu trazer a Portugal bandas como Animal Collective ou músicos como Kim Gordon, dos Sonic Youth, a resposta dada passa por outra característica muito especial: a forma como se acolhe e se está disponível “para ir buscar o artista ao aeroporto, para conversar e jantar com ele”. “Eles vêm, são mal pagos, mas saem contentes”, brinca Natxo.

O curador de música Sérgio Hydalgo destaca como “na ZDB se cultiva, acima de tudo, o interesse genuíno pelo objeto artístico.” ©Humberto Mouco/CML-ACL

Únicos, after all these years

Mais do que um centro cultural, “somos uma casa dos artistas”. A filosofia ZDB está implícita no modo como se trabalha com os artistas e naquilo que se lhes dá: “meios, visibilidade, acompanhamento e inserção em redes internacionais”.

Natxo sublinha, sobretudo, a relação com os artistas visuais: “o artista que acolhemos na ZDB está aqui o tempo que for preciso e quando nascer um corpo de trabalho com sustentabilidade própria, expomos.” Por isso, com graça, Marta admite que Natxo “nunca os larga, e é pelo mundo fora” – ainda há meses, esteve com André Príncipe no Zimbabué e noutras paragens distantes com Gabriel Abrantes.

Esta forma singular de ser e de estar tem resistido a todos os contextos e, orgulhosamente, o trio que dirige a ZDB assume que, todos os dias, se reinventa para os acompanhar. Afinal, como nos lembra Marta, “esta é uma casa de liberdade. E isso é aquilo que verdadeiramente importa para um artista.”

Escreveu o Manual do Bom Fascista. Como conhece tão bem esse sujeito?

Porque nasci em Portugal, em 1961, e foi um ano com uma óptima colheita. Acho muita graça às pessoas que agora se queixam que estamos a ideologizar as crianças. Vê -se que não foram meus colegas de escola, onde tínhamos na sala de aulas o retrato do Dr. Salazar e a cruz. Mesmo que não fossemos católicos, eramos obrigados a seguir os seus preceitos. O meu irmão mais velho teve que ir à Mocidade Portuguesa. Eu, por uma razão qualquer, acho que o meu avô disse que eu era asmático, consegui escapar. Mas, ainda me lembro, aos dez anos, no Estádio Nacional, durante um exercício de ginástica, fazerem a saudação do braço estendido. Estamos a falar de 1971, durante a chamada Primavera Marcelista. Como dizem os ingleses: “descanso a minha mala” [I rest my case].

Este manual é um livro de autoajuda?

Se o quisermos colocar dentro de um género, descende de uma linhagem que vem da sátira romana, passa pela Utopia de Thomas More, pelo Elogio da Loucura de Erasmo, e depois, na época moderna, pelo magnífico texto Uma Modesta Proposta de Jonathan Swift que propõe, para resolver o problema da fome na Irlanda, apenas porque é bom para a economia, que os ricos comam os filhos dos pobres. Com isso, Swift inaugura a forma moderna, que já vinha do Erasmo, de dizer as coisas ao contrário. O humor negro moderno, a ironia da nossa época tem à volta de três séculos e esse pai que é o Jonathan Swift. Como vemos, a tradição dos livros de autoajuda como livros humorados é grande, e eu inscrevo nela este texto. Por isso, o slogan publicitário é: Não se contente em ser um facho no armário, seja mesmo um bom fascista! O meu livro pode ser lido por pessoas que não gostam da “coisa”, ou por pessoas que não sabendo que gostam da “coisa” gostam dela. Pelo menos, assim, já ficam mais conscientes, porque o grande inimigo da vida é a estupidez. Há pessoas que passam a vida inteira sem saber o que são.

Afirma que o “melhor fascista” nunca leu um livro. Como o pretende convencer a ler este?

Dizendo que é para rir e que tem bonecos. Em Portugal lê-se pouco. A indústria do livro sobrevive graças a duas instituições maravilhosas: o Natal e os aniversários. É o único país que eu conheço que quando compro um livro perguntam: “é para oferecer?” A hipótese do livro ser para ler é mais improvável do que ser para oferecer.

“Vou às escolas e as pessoas dizem-me – nunca li um livro seu, mas gostava muito de o ver na televisão.”

Confesso que me revi nalgumas situações descritas no livro. Nessa altura o Manual, além de muito divertido, torna-se inquietante. É esse o objectivo?

Acho que o humor, a ironia interessante é sempre inquietante. Um sinal de que estamos a ficar com a cabeça estreita é quando apontamos o dedo aos outros: a velha brincadeira do individuo que se queixa do engarrafamento ou dos condutores de domingo, sem perceber que ele é o engarrafamento e que ele é o condutor de domingo a queixar-se dos outros. Ler este livro e começar a rever-se nele é um sinal de saúde mental. O meu medo são as pessoas que lêem o livro e não se revêm de todo porque se acham o máximo.

É uma questão de lucidez?

Sim. Não lhe posso garantir, nem a si nem a mim, uma vida maravilhosa até ao fim, cheia de lucidez. Mas acho que a prevenção para ficarmos estreitos da cabeça é aceitarmos sempre a possibilidade de estarmos a ficar estreitos. Vivemos numa euforia do ter razão, seja à direita seja à esquerda (o fascismo é de direita, mas também há fascistas de esquerda). Eu penso de forma clara que a marca da obra literária é a ambiguidade. Num texto comunicacional o objectivo é só esse: se em vez de um café, pedir ao balcão “aquele néctar escuro que revitaliza os nervos e as sinapses” a senhora do bar vai dizer – O quê? Ao contrário, num texto literário é bom haver ambiguidade, o prazer da leitura de um poema é o prazer de ler um texto ambíguo. O que é engraçado é que, hoje em dia, mesmo no campo da literatura, os bárbaros estão chegando. Estão a tornar óbvio tudo o que não o devia ser. Num mundo onde há cada vez mais gente convencida de que tem razão, onde os líderes políticos dizem “venham por aqui que eu tenho razão” e, às vezes, são os mais insanos que o dizem (o homem mais genial, segundo ele próprio, é Donald Trump, e o mais honesto, segundo o próprio, é Bolsonaro), se calhar a função moral do objeto literário e do humor escrito no século XXI é não ter razão. O escritor é aquele que diz: “eu não tenho razão, mas vou tentar ajudar-vos a pensar e, como sei que vocês se cansam depressa, pelo meio vou dizer uma piada ou outra.”

Por isso diz que mais importante que perguntar se o fascismo está “entre nós” é descobrir se está “dentro de nós”?

É sempre esse o princípio, até porque não há um gene do fascismo. Dizer que há tipos que nascem fascistas é terrível, é já fascista em si mesmo. O fascismo está dentro de nós é a tese do livro. Entendo que há um fascismo histórico e político e outro intemporal que, volta e meia, vem ao de cima, a maior parte das vezes está a larvar, outras vezes põe a cabeça de fora, noutras chega ao poder. Nos EUA, chegou ao poder. O Philip Roth escreveu uma fantasia há alguns anos [A Conspiração contra a América] e agora temos o resultado. Alguém vai apontar que a culpa do Trump é do Philip Roth. É possível. A imaginação por vezes é apenas lucidez, vê mais longe.

O bom fascista do seu Manual é português. Em que se distingue dos seus congéneres estrangeiros?

Pela mansidão. Penso que um Manual do Bom Fascista em Espanha ou na Alemanha seria menos manso. É sintomático que nunca tenhamos repensado a nossa colonização. Há quem ainda acredite no mito de que o colonialismo português era bonzinho, que “eles” gostavam de nós. O nosso fascismo era como a sociedade portuguesa: oportunista e preguiçoso. Porque nós somos mais o animal que está à espera do que o animal que age.

Diz que o bom fascista nunca ofende, passa a vida a ser ofendido. Vai sentir-se ofendido com este livro?

O drama do livro, ao contrário do artigo de jornal, é que só é lido por quem o quer ler. Portanto, é um objecto de não poder, tem um valor simbólico, mas nunca chega aos leitores a quem queria convencer. Portanto eu não vou ofender os fanáticos do futebol, ou os racistas ou os fanáticos vegans, porque esses não o vão ler. Mas vão saber que existe pelo facebook, porque eu uso muito as redes sociais. Vão-lhes chegar os ecos do livro. Depois, as pessoas que me apetece ofender ou provocar um bocadinho são os leitores compradores do livro que pensam que se vão rir dos outros e acabam por descobrir que a piada é também para eles. Mas aí é uma provocação amável, porque me coloco também como alvo do riso. Ou seja, o livro deixa de ser altivo e torna-se compassivo. Gosto de me ver como uma pessoa compassiva. A luta do futuro vai ser entre a empatia e a falta de empatia. O princípio da ficção é pormo-nos no lugar do outro. E é esse exercício de empatia que dá esperança à humanidade.

Umberto Eco fala da suspeição do fascismo pela cultura, na medida em que esta se identifica com o sentido crítico. O Rui afirma que o bom fascista detesta intelectuais.

É verdade, porém a questão portuguesa do ódio ao intelectual não é muito grande porque, em Portugal, nunca houve muitos intelectuais. É por isso que Portugal é um país bonito, porque é o sítio em que uma pessoa com meio neurónio já passa por génio brilhante. A nossa elite intelectual deixa muito a desejar. É a mesma elite que acha que o Gil Vicente é importante e que não compreende que o teatro sempre foi um sinal da nossa pobreza franciscana. A prova é a falência do teatro português ao longo dos séculos, sempre foi muito poucochinho, com pouca produção. É o elo fraco da nossa literatura: poesia está bem, narrativa também, mas não o teatro. Porquê? Porque o teatro depende de haver um coletivo. Nós somos o país que teve um espectáculo de revista no D. Maria e foi a coisa com maior sucesso. Ainda hoje a grande maioria dos grupos de teatro do país não representam textos de autores portugueses. Há aqui um cosmopolitismo que me doí. Outra prova da falência intelectual portuguesa é o facto de muito dos nossos intelectuais respeitados em certo tempo não terem obra. Não temos um só texto filosófico que seja internacionalmente lido. O único grande filósofo português é português porque o pai nasceu em Portugal: o Espinosa. Quando um polemista como o Alberto Pimenta é sufocado e só agora é que começam a dar-lhe atenção, e a falar como se sempre tivessem gostado dele, são sinais de falência.

E essa falência deriva da falta de coletivo?

Sim, porque sempre fomos muito poucos e nunca houve uma estrutura coletiva para o pensamento. As pessoas estavam sempre isoladas, sempre falando sozinhas. O próprio Fernando Pessoa… metade do que ele disse é pastiche; é bom, mas é pastiche, é regurgitado, uma versão portuguesa do que se fazia lá fora. E isto diminui-nos sempre. Sentem-se sempre as poucas leituras. Eu vou às escolas e as pessoas dizem-me – nunca li um livro seu, mas gostava muito de o ver na televisão. Até nos meios universitários isso se sente. Na faculdade, falo com um colega e ele diz: “não li, mas ouvi dizer que é mau”. Temos sempre as mesmas cristalizações.

Os escritores que cultivam o humor têm mais dificuldade na consagração, em serem levados a sério?

Comigo acontece isto: durante muito tempo chamavam-me “engraçadinho”, agora que o humor está na moda acusam-me de não ter humor suficiente. É verdade que o humor como género é sempre historicamente diminuído, sempre visto com uma coisa baixa. Mas, por vezes, é o humor que melhor agarra a alma de um país, e um bom exemplo é a personagem principal da nossa cultura ser o Zé Povinho. Uma excepção importante foi quando atribuíram o Prémio Nobel da Literatura ao Dario Fo. Ele passeou-se pela Feira do Livro de Frankfurt com a mulher, [a atriz] Franca Rame, vestida de freira dando passinhos de boneco mecânico e sorrindo para toda a gente. Aí tiro o meu chapéu: este homem era palhaço antes de ganhar o Nobel e palhaço continuou no dia do Nobel.

Apesar de uma obra multifacetada que percorre o desenho, a pintura, a ilustração, a cerâmica, os bordados e a decoração de móveis e interiores, Sarah Affonso permanece, 120 anos após o seu nascimento, relativamente desconhecida do grande público. O seu casamento com a figura prometeica de Almada Negreiros, e o facto de ter nascido num país que impunha fortes barreiras sociais à afirmação artística feminina, muito terão contribuído para este facto.

Contudo, Sarah foi uma das primeiras a transpor tais barreiras sociais à afirmação das mulheres como artistas, no Portugal das décadas iniciais do século XX. Foi a primeira mulher a frequentar, contra todas as convenções, o Café Brasileira, no Chiado, o que revela não só os preconceitos do seu tempo, mas também o espírito independente com que os encarava. Na sua arte construiu também uma linguagem e uma temática próprias, usando como matéria-prima as vivências e as memórias.

A pintora passou duas temporadas fundamentais para a sua evolução artística na cidade de Paris, a primeira no final de 1923, a segunda no ano de 1928. Aí viu exposições de Paul Cézanne e de Henri Matisse, colaborou esporadicamente com Sonia Delaunay e mostrou-se atenta ao trabalho de Georges Braque ou de Marie Laurencin, com quem partilhava o gosto pelos retratos femininos.

Família, 1937

Neste contexto, a obra de Sarah Affonso enquadra-se numa tendência clara de reafirmação da figuração que marca a arte europeia do pós-guerra. No seu caso, uma figuração intimista e sensível num registo inédito em Portugal, remetendo para um universo feminino e familiar e reconvertendo para uma arte moderna e cosmopolita as artes e o imaginário popular da sua infância minhota.

No livro de referência 100 Quadros Portugueses no Século XX, José-Augusto França dedica um belíssimo texto à obra Sereia de Sarah Affonso, datada de 1939, escrevendo:

“O que há de melhor neste quadro de devoção popular e lembrança minhota da pintora é que a sua importância de protagonista vai toda para a sereia nua e rosada, dengosa na sua cabeleira de estopa dourada, e não para a Senhora da Salvação! À graça católica sobrepõe-se a graça da arte (…)”

Sereia, 1939

Em seguida, define de forma lapidar a principal contribuição da pintora para a arte portuguesa da sua época e a paradoxal e singular posição que nela ocupa: “Aparecendo nos ‘independentes’ de 1930, a pintora levou às salas de exposição  uma lufada de ar novo e saboroso, (…) definindo um gosto infantil de inocência poética, numa dimensão insólita de modernismo que aqui de certo modo deteve a sua capacidade de invenção original – até (se fosse o caso de fazer história) à estruturação final e sintética das pinturas de Almada nas gares marítimas de Lisboa, seis ou sete anos mais tarde -, numa lógica cronológica em que Sarah Affonso, esposa e colega de Almada, cabe sem caber. O que é , aliás, a sua situação na pintura nacional do seu tempo.”

Por vezes, Sarah Affonso deixa de lado o retrato, a grande marca autoral da sua obra, optando por integrar nas suas composições determinados aspetos do vernáculo minhoto: as suas tradições e as suas feiras, procissões e romarias, a par das mitologias populares. Nestas obras evidencia a forma como a cidade de Viana do Castelo marcou a sua infância e adolescência, deixando-lhe na memória o carácter especial da terra minhota.

Procissão. 1934

Em 1962, António Pedro salientava “a originalidade gostosíssima da aventura minhota desta pintora sem folclore – o Minho de que falo está na memória do gosto, não na anedota e é portanto categoria, não acidente.”

A exposição do Museu Nacional de Arte Contemporânea, bem como o catálogo editado, pretende colmatar essa falha e divulgar o trabalho de uma das mais notáveis modernistas portuguesas, homenagem a uma artista que, apesar de todos os condicionalismos, criou uma obra com uma linguagem e temática próprias sabendo ser, simultaneamente, nas palavras de Emília Ferreira, directora do Museu Nacional de Arte Contemporânea, uma “hábil tecedeira” do seu tempo.

Inspirado e dedicado ao público juvenil, Fit (IN) nasce de perguntas. “Apesar de partir de uma ideia concreta, a ideia de tempo, do tempo interior de cada um e até mesmo da velocidade, há uma série de perguntas e curiosidades que eu e o João tivemos desde o início: será que ouvimos a nossa própria velocidade? Em que velocidade é que estamos? E será que essa velocidade é sempre a mesma todos os dias?”, sublinha Yola Pinto. “A verdade é que é fascinante a forma como cada um de nós se ajusta para acordar de manhã, sair à rua e poder conversar com o outro e nos entendermos”, acrescenta.

“Uma vez que temos fisicalidades diferentes – eu sou mais ator e a Yola mais bailarina –, quando surgiu a ideia de construirmos esta performance baseada no encaixe, percebemos que podíamos fazer os dois ambas as coisas. Como é que encaixamos os estados de espírito de cada um no tempo presente? Como é que eu encaixo o meu tempo no tempo da outra pessoa com quem estou a falar; e como é que encaixo o meu tempo, a minha vontade, de estar a trabalhar com a Yola e ela comigo?”, adianta João de Brito. “Este trabalho tem a ver com estados de espírito, tem a ver como nos sentimos em determinado momento”, resume.

“Nunca tiveram a sensação de que há dias em que a nossa velocidade é completamente diferente da do resto do mundo?” ©Estelle Valente

 

Será, afinal, possível viver num mundo onde o tempo de cada um de nós exista também para lá dos contornos da nossa pele? Aos artistas fascina-os a “empatia estonteante” que as idades mais jovens têm com o tempo: momentos feitos de quase nada e de um impulso primitivo de liberdade. E isso comove-os pelo mágico encadear de uma coisa que leva a outra e depois a outra, lembrando uma coreografia pré-estabelecida, onde o tempo de cada um de nós é a principal unidade de medida. “Nunca tiveram a sensação de que há dias em que a nossa velocidade é completamente diferente da do resto do mundo?”, questionam os intérpretes.

“Quando estreamos um espetáculo gostamos de saber o que fica na cabeça de cada um. O que chama mais à atenção, quais são as dúvidas que o espetáculo suscita, quais as questões, os pensamentos… Até porque este espetáculo nasceu assim, precisamente de perguntas”, conclui Yola.

A performance, que se desenvolve em sincronia com a música de David Santos, tocada ao vivo, conta com cenários “vivos”, que também dançam, desenhados pela cenógrafa Sara Franqueira.

Fit (IN) é uma peça dirigida a crianças com mais de 10 anos, e conta com a produção executiva do LAMA Teatro. Até sexta-feira, dia 25, as sessões destinam-se a escolas e no fim de semana, 26 e 27 de outubro, ao público em geral.

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