Completaste dez anos de atividade artística em 2018. Qual é o balanço que fazes desta década como criador?

Estes dez anos marcam-se pela minha saída da Escola Superior de Teatro e Cinema, apesar de, antes disso, já ter trabalhado profissionalmente como estagiário e enquanto ator. Esta década como criador começa comigo a trabalhar com o Francisco Camacho, que tinha sido meu professor. Depois trabalhei como cocriador com a Raquel André durante algum tempo, até ir para o Brasil, há cerca de cinco anos. Esta minha viagem mudou bastante aquilo que eu queria trabalhar e a pesquisa que queria fazer, que acabou por se tornar um pouco académica, já que estou a estudar lá. Apesar da minha carreira ter passado por vários momentos e de ter havido uma viragem há cinco anos, para já o balanço é bastante positivo e penso que é indicador do que podem vir a ser os próximos anos.

Vives entre Portugal e o Brasil. Para ti, quais são as principais diferenças entre os dois países a nível artístico?

A parte social define muito aquilo que podem ser os pressupostos artísticos, técnicos e formativos. No caso do Brasil, a experiência que tive foi a trabalhar como intérprete para outros criadores brasileiros ou já a apresentar no contexto brasileiro. Na verdade, a minha forma de trabalhar não muda assim tanto. No Rio de Janeiro, onde estou, no que respeita às artes performativas, como o teatro, há uma ligação muito grande ao registo televisivo. Parece que já nasces numa cidade que é uma Hollywood do Brasil, onde a meta que pretendes atingir enquanto ator se prende com uma visibilidade muito televisiva. Na minha opinião, isto faz com que, nos objetos teatrais, tu sintas que há sempre uma câmara no espaço. Por exemplo, a nível do teatro de pesquisa, que em Portugal é muito forte, há uma questão autoral muito significativa que parece não se sentir tanto no Brasil. A maior diferença que sinto é que, no Brasil, os temas sociais estão a passar para a cena, já que lá existe uma permeabilidade maior do que é a realidade. Em Portugal não sinto tanto isso. Parece que existe uma distância entre o que é e o que se pode ver representado. Claro que isto é uma generalização, já que há companhias como a Mala Voadora, o Teatro Praga ou o trabalho do Tiago Rodrigues onde tu sentes que eles estão, não a espelhar a realidade, mas muito atentos ao que se passa. Acho que a diferença passa mais por aqui: pensar que socialmente isso altera o que tu queres que seja uma cena, o que tu queres que seja o teatro.

“Sempre me fascinou esta questão do que é que o meu corpo ainda não consegue atingir, ou ao que eu, enquanto criança, não consigo chegar no mundo dos adultos.”

 

Este mês levas à Culturgest Gulliver, um espetáculo destinado ao público mais jovem. Como surgiu a ideia para este projeto?

A ideia surgiu logo no dia a seguir à estreia do Pangeia, há dois anos, precisamente na Culturgest. Lembro-me que tinha um livro do Gulliver em casa, porque sempre me fascinou esta questão do que é que o meu corpo ainda não consegue atingir ou ao que eu, enquanto criança, ainda não consigo chegar no mundo dos adultos. A ideia mais generalizada sobre o livro é existir um Gulliver numa posição de gigante em relação a um lugar de Liliputianos, onde são todos muito pequenos, e isso sempre foi corroborado pelos desenhos animados e pela literatura paralela. Mas, na verdade, quando te debruças mais atentamente sobre o livro, apercebes-te de que se trata de um viajante que se vai alterando; na segunda viagem, ele já é mais pequeno. Esta história aborda muito a capacidade de te colocares no lugar do outro, o perspetivismo, onde a tua identidade não é só onde tu estás, é também como vês esse lugar assim que te deslocas. Isso foi o que mais me interessou. Além de que, depois, fala do tema do colonialismo recorrendo à sátira, brincando muito com o lugar do viajante da época.

Uma vez que a tua obra é um cruzamento de teatro, dança e artes visuais, o que se pode esperar deste espetáculo?

Neste espetáculo estamos a utilizar muito o vídeo, mas um vídeo que parece ser mais operativo, ou seja, que responde mais aos pressupostos da ideia dramatúrgica do que às preocupações estetizantes. Quando faço essas travessias tento sempre pensar ao que é que vou dar prioridade. Neste caso, pensei logo que Gulliver tinha que ser uma peça de teatro, onde há muito texto, mas poderia ser só um gigante em palco. Mas que este vai ser um espetáculo visual, lá isso vai.

O espetáculo estreia a 27 de março na Culturgest

 

O que te levou, numa primeira fase, a criar espetáculos para crianças?

Este é o quarto espetáculo que faço para um público mais jovem. Fui desafiado pela Leonor Cabral e pelo João de Brito, há uns sete ou oito anos, a fazer um primeiro trabalho na Culturgest. Era dirigido a crianças mesmo muito pequenas e acho que foi um enorme desafio. A minha exigência quando pego num objeto dirigido a famílias é quase a mesma, a única coisa que tem de se ter em atenção é o tipo de linguagem. Todos os criadores deveriam experimentar criar alguma coisa para ser vista por um olhar ainda sem muitas regras sobre o que é uma peça de teatro. É um desafio, acima de tudo porque há um cuidado a ter com esse público que é muito novo, mas que será o futuro público adulto. Porque ninguém nasce espectador, e pensar que aquele primeiro estímulo que uma criança pode ter com oito ou nove anos pode levá-la a querer ser ator, como aconteceu comigo, ou simplesmente espectador, é muito gratificante. E Lisboa está a fazer um ótimo trabalho nesse sentido. Muitos teatros têm serviço educativo. O Lu.Ca [Teatro Luís de Camões] abriu com essa missão, então há uma consciência, principalmente nesta cidade, de que a formação e a captação desse tipo de público é importante.

Já nos podes falar um pouco dos teus próximos projetos?

No Brasil, no final do ano, vou ter um projeto que tem mais a ver com dança, que se chama A Fresco. E estou na fase de pré-produção de um trabalho para 2021, que consiste numa viagem de barco que vou fazer entre Lisboa e Porto Seguro, no Brasil. Vou tentar replicar a viagem dos nossos “autoproclamados” descobridores e tentar perceber como é o Atlântico – esse território que conecta Portugal e o Brasil – e como é que posso retirar desse mar histórias do passado, como é que eu consigo trazer, à luz da contemporaneidade, algumas questões ali submersas.

“A memória só serve se for para fazer futuro”, considera a diretora artística do Teatro São Luiz, Aida Tavares, introduzindo o ponto alto das celebrações do 125.º aniversário: a encenação da ópera A Filha do Tambor-Mor, de Jacques Offenbach, precisamente aquela que inaugurou, a 22 de maio de 1894, o então Theatro D. Amélia, atual São Luiz Teatro Municipal.

Numa produção integralmente assumida pelo teatro municipal, este regresso da ópera de Offenbach à sala principal do São Luiz reúne “um elenco para o futuro”, proveniente de escolas superiores de música, dança e teatro de todo o país. Com encenação de António Pires e direção musical de Cesário Costa, esta grande produção conta com Paulo Vassalo Lourenço como maestro do coro, cenografia d’ A Tarumba – Teatro de Marionetas, Dino Alves nos figurinos e Aldara Bizarro no movimento. A ópera será de entrada livre, estando em cena de 22 a 25 de maio.

“Era Uma Vez um País Assim: Contar Bem Contadas a Ditadura e a Revolução”, de Joana Craveiro/Teatro do Vestido

 

Numa extensa programação, que arranca já este fim de semana, com Espetáculo Guiado de André Murraças, as comemorações dos 125 anos do São Luiz prosseguem em abril com duas propostas do Teatro do Vestido. O coletivo dirigido por Joana Craveiro promove uma Ocupação (de 24 a 30 de abril) de todos os espaços do teatro, naquele que será “um espetáculo documental de investigação, onde não só o que se passava dentro de portas merece ficar registado, mas também nos espaços envolventes – ou não estivesse o São Luiz situado paredes meias com a antiga sede central da PIDE em Lisboa; ou não se tivessem muitos dos manifestantes refugiado junto ao São Luiz e dentro dele, no 25 de abril de 1974, em que a PIDE abriu fogo sobre a multidão reunida na Rua António Maria Cardoso.”

Em Era Uma Vez um País Assim: Contar Bem Contadas a Ditadura e a Revolução retrata-se, para o público infantojuvenil, as histórias da resistência ao fascismo e evoca-se o dia em que “pessoas que tinham lutado às escondidas, puderam sair para a rua a escrever a tal palavra – Liberdade”. Com texto e encenação de Joana Craveiro, o espetáculo, inserido na programação “São Luiz Mais Novos”, está em cena entre 1 e 7 de abril.

Mais futuro, sem perder a memória

Para além da ópera de Offenbach, o mês de maio marca o regresso ao São Luiz do coletivo Teatro Praga e de Miguel Bonneville. Aos Praga, o teatro municipal fez a encomenda de um musical “histórico” que revisite mais de um século de vida de uma sala que já teve três nomes (D. Amélia, República e São Luiz), que foi teatro e também cinema, que sobreviveu a um devastador incêndio e que inscreveu nas suas paredes as passagens de divas maiores da arte de representar, como Sarah Berhardt e Amélia Rey-Colaço. Xtraordinário sobe a palco a 10 de maio.

Quanto a Miguel Bonneville, o criador e ator continua a perseguir as vidas e obras de artistas e pensadores que influenciaram o seu percurso artístico. Desta feita, Bonneville dedica-se à figura de Georges Bataille, influente autor francês nascido três anos após a fundação do São Luiz.

Em junho, mês das Festas de Lisboa, o destaque vai para o Teatro Meridional que apresenta Histórias de Lx, um retrato da cidade que somos, hoje, entre lisboetas de todas as raças e credos e turistas dos quatro cantos do mundo, com recolha de textos e encenação de Natália Luiza.

O programa comemorativo foi apresentado a 8 de março pela vereadora Catarina Vaz Pinto e pela diretora artística Aida Tavares (ao centro).

 

A abrir a Temporada 2019/2020, Miguel Loureiro encena A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas (Filho), com Carla Maciel, numa evocação da passagem de Eleonora Duse pelo palco do São Luiz, em 1898. Ainda em setembro, arranca mais uma temporada de Os Sapatos do Sr. Luiz, de Madalena Marques, agora numa nova versão que não esquece figuras ligadas à história do teatro, como Sarah Berhardt, Mário Viegas ou Almada Negreiros, nem aqueles “técnicos que, nos bastidores, ajudam diariamente a pôr todos os espetáculos em pé.”

E, porque o São Luiz foi, durante um largo período de tempo, uma sala de cinema, o pianista e compositor Filipe Raposo foi desafiado a compor uma partitura para uma das obras-primas da história da sétima arte: Metropolis, de Fritz Lang. Este clássico do cinema mudo estreou em Portugal a 7 de abril de 1928, precisamente, no então denominado São Luiz Cine, e voltará a encantar as plateias de 11 a 17 de novembro.

Nota final para o lançamento, a 6 de setembro, do livro São Luiz 125, editado por Vanessa Rato. Trata-se de uma “reflexão sobre a instituição que foi, é e será o Teatro São Luiz, destacando não apenas a memória histórica, mas também o seu papel no panorama cultural e artístico do presente e do futuro”. O livro, com edição da Imprensa Nacional Casa da Moeda, conta com textos de António Pinto Ribeiro, André Teodósio, Filipe La Féria, Joana Craveiro, José Gil, José Sarmento de Matos, entre outros.

 

Programação integral em teatrosaoluiz.pt

Enquanto dobra metodicamente os guardanapos que hão-de ser dispostos nas mesas dos hóspedes desse Pequeno Hotel do Lago que gere com o marido, Júlia (Paula Mora) continua a revelar a altivez que lhe reconhecíamos daquela noite de São João, há mais de 30 anos, quando seduziu o criado João. É uma anfitriã calorosa que encontramos, zelosa das suas muitas certezas e prontamente disponível para dar conta de qualquer situação. Que o diga João (Manuel Coelho), homem que os anos volvidos não nos permitem reconhecer de imediato, mas que enaltece a cada momento a felicidade conjugal que encontraram, logo após uma fuga a dois em que sonhos mais altos ousaram romper convenções.

Este não era, de modo algum, o final que August Strindberg projetara para a menina Júlia, já que a didascália final deixava adivinhar o suicídio. Mas Tiago Rodrigues descobriu um caminho para a felicidade do casal de amantes e deu-lhes um futuro. Júlia e João podem não ter cumprido todos os sonhos e promessas que fizeram na embriaguez do desejo, mas tornaram-se um casal com filhos já crescidos, a gerir o seu negócio, não debruçados na elegância do Lago de Como, mas numa aldeia a alguns quilómetros de um outro lago, com certeza não tão afamado.

Parecem, de facto, felizes enquanto ouvem música, experimentam os vinhos da casa e provam um bom presunto. Felicidade que partilham com o público e que talvez nada possa ensombrar. A não ser que, ao final da noite, uma certa hóspede bata à porta: é Cristina (Lúcia Maria), a serviçal da casa paterna de Júlia e noiva de João à data daquela noite de São João.

Inês Dias e Paula Mora interpretam a menina Júlia.

 

Chega então o momento de reviver o passado. Júlia (Inês Dias), João (Vicente Wallenstein) e Cristina (Helena Caldeira) voltam a ser as jovens personagens de Strindberg, numa espécie de “voo rasante, versão condensada de Menina Júlia” (a tradução escolhida é a de Augusto Sobral). Mais do que um tributo à obra original – “peça que sempre me intrigou, apesar de nunca a ter considerado particularmente fascinante”, ressalva Rodrigues –, a coexistência em cena das personagens no passado e no presente vai expor a fragilidade dessa rara condição de ser feliz.

A peça questiona se a felicidade de Júlia (Paula Mora) foi roubada a Cristina (Helena Caldeira).

 

E será mesmo felicidade aquilo que Júlia e João encontraram quando decidiram fugir e casar? Não terá sido essa felicidade roubada por Júlia a Cristina, essa mulher que foi “vítima do desejo dos outros, a pessoa banal que é simultaneamente a personagem que nunca ninguém sabe o nome sempre que falamos de Menina Júlia”?

Tiago Rodrigues joga habilmente com estas questões para criar o drama. Ao abdicar da tragédia colocando as personagens de Strindberg “a negociarem com a vida e a fazerem as suas escolhas”, não as redime, mas dá-lhes a existência que, provavelmente, cada uma delas fez por merecer. Mesmo que a felicidade de uns tenha sido furtada ao destino de outros.

Joel Neto

Só Tinha Saudades de Contar uma História

O livro é tão curto que o podemos ler na íntegra numa viagem de comboio Cascais-Lisboa ou num trajeto de autocarro que atravesse a cidade. A resposta à curiosidade de saber que motivo leva um autor de fôlego comprovado a decidir lançar um objeto tão pouco usual de vermos editado, está no título da obra. Joel Neto só tinha saudades de contar uma história. Uma saudade momentânea deu este pequeno livro que contém mais que as suas 60 páginas em corpo de letra grande. A narrativa contada pelo rapaz que ia com os amigos ouvir um velho polícia negro e matulão contar histórias ou oferecer respostas e alibis a quem deles necessitasse, fala da função universal da literatura que é a de oferecer uma chave interpretativa para a vida de cada um de nós. Lemos também em busca de nós próprios e de soluções que redimam as dificuldades da vida. Este livro singelo não se propõe safar ninguém fora da história que conta, mas proporciona uma boa leitura que só termina com a moral da história.

Cultura Editora

 

Paul Virilio

Guerra e Cinema

Quando em 1983, o arquitecto urbanista e filósofo francês Paul Virilio escreveu a obra de referência Guerra e Cinema, o mundo ainda não havia assistido às imagens em directo captadas na Guerra do Iraque por câmaras instaladas nos capacetes dos soldados. Neste seu livro, o autor analisa a utilização sistemática das técnicas cinematográficas nos conflitos decorridos ao longo do século XX e comprova como o cinema, desde o seu surgimento, abasteceu conceitual e tecnologicamente a guerra e os nacionalismos bélicos. Recorrendo a imagens de combate e a filmes como O nascimento de uma Nação de D. W. Griffith. Napoleão de Abel Gance, Guerra e Paz de King Vidor ou Dois Vultos na Paisagem de Joseph Losey, compõe um inventário histórico dos vários intercâmbios técnicos e ideológicos entre a indústria do armamento, a fotografia e o cinema. Uma fascinante reflexão crítica sobre a capacidade persuasiva das imagens de guerra que demonstra, de forma erudita e original, como o domínio da percepção mediática se tornou mais decisivo do que os acontecimentos no campo de batalha.

Orfeu Negro

 

Thomas Mann

José e os Seus Irmãos

Thomas Mann (1875/1950), Prémio Nobel de Literatura de 1929, é com frequência considerado o mais importante escritor alemão do século XX. Nas suas novelas revela-se um profundo analista de uma época à beira de uma crise cultural e expõe os principais problemas políticos e morais contemporâneos. Preocupa-o, de forma persistente, a responsabilidade do artista face à sociedade. O escritor evoluiu do conservadorismo para o humanismo social incompatível com o nazismo, vendo-se forçado ao exílio em 1933, primeiro na Suíça e depois nos EUA. Em 1944 torna-se cidadão norte-americano. A sua prosa é complexa, de estilo cuidado e exigente. Sobre José e os Seus Irmãos, romance monumental em quatro partes sobre a figura bíblica de José, escreveu Milan Kundera: “é uma exploração histórica e psicológica dos textos sagrados (…) contados num tom sorridente”. “Porque a religião e o humor são incompatíveis”, o respeito que o romance de Thomas Mann granjeou constituiu, ainda segundo Kundera, “prova de que a profanação deixara de ser percebida como ofensa para fazer doravante parte dos costumes”.

Dom Quixote

 

Antero de Quental

Poesia – III

A presente edição crítica da Poesia de Antero de Quental distribuída por três volumes, pretende disponibilizar ao leitor de hoje o conjunto da obra poética do autor: a que ele publicou em livro e manteve; a que publicou em livro mas destruiu ou de algum modo alterou; e a que publicou dispersamente ou deixou inédita. Neste terceiro e último volume reúnem-se todos os seus poemas inéditos, bem como aqueles que foram abandonados, alterados ou destruídos e que foi possível recuperar. Sobre e edição de Os Sonetos Completos escreveu Antero: “Ele Forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que as memória de uma consciência”. Como refere Luiz fagundes Duarte, responsável por esta edição crítica no seu prólogo: Esta relação de convivência entre os sonetos canónicos e a restante produção poética de Antero é particularmente interessante, na medida em que nos permite (…) tomar consciência de um facto incontornável: que há outro Antero para além dos Sonetos”. É esse “outro Antero” que esta magnífica edição nos dá a descobrir.

Abysmo

 

José Manuel Pedreirinho

História Crítica do Prémio Valmor

Conhecer o Prémio Valmor de Arquitectura e a sua evolução, desde que foi regulamentado em 1902 é, de certa forma, compreender também a arquitectura e o próprio desenvolvimento da cidade de Lisboa. O prémio constitui efectivamente um excelente reflexo da arquitectura que se foi fazendo, e dos gostos dominantes em cada época, já que nele se espelham os estilos predominantes. O galardão tem também funcionado como forma de chamar a atenção do público para o ambiente edificado, seja através das notícias relativas às obras e autores distinguidos, seja pelo inegável prestígio que tem sabido manter. Nesta edição, ilustrada com 150 imagens, o autor analisa os diversos factores e contexto das obras premiadas nos 116 anos da existência do Prémio. Um livro indispensável para conhecer o processo de distinção da arquitectura pelo mais importante prémio instituído pelo Município de Lisboa, sob proposta testamental do Visconde de Valmor (1837-1898).

Argumentum

 

Ursula K. Le Guin

A Mão Esquerda das Trevas

Neste clássico da ficção científica, Ursula K. Le Guin explora criativamente os temas da identidade sexual, incesto, xenofobia, fidelidade e traição deixando, como na maior parte dos seus trabalhos, uma poderosa mensagem social que nos convida a ir além do racismo e sexismo. A escritora, que Harold Bloom considerou que “elevou a fantasia à alta literatura, mais do que Tolkien”, cria um livro fascinante ambientado num mundo gelado de seres andróginos, vencedor dos Prémios “Hugo” e “Nebula” (1969). Genly Ai é enviado para o planeta Gethen por uma federação interestelar, o Ecuménio. Governado por um rei extravagante, a estranheza deste universo acentua-se na multiplicidade de géneros sexuais, em que os seres podem ser simultaneamente mães e pais de diferentes crianças. Através de Genly, o leitor sofre uma mudança de pensamento e aprende a aceitar as diferenças abismais que encontra na forma de relacionamento entre estes seres, alargando a compreensão da sua própria realidade.

Relógio D’Água

 

Sérgio Pelágio e Isabel Galvão

Hístórias Magnéticas

 Nos últimos dez anos, Sérgio Pelágio, compositor e guitarrista, compôs bandas sonoras originais para histórias infantis narradas por Isabel Galvão e levou-as a escolas, bibliotecas e a outros lugares menos convencionais. Ali, eram recriados os ambientes dos textos de partida e construídos novos significados para as situações narradas. Este projeto, de seu nome Histórias Magnéticas, deu agora origem a um livro que fala!, um CD que reúne as seis histórias-concerto que compõem o seu repertório. A bomba e o general, de Umberto Eco; O meu primeiro Dom Quixote, traduzido do castelhano por Alice Vieira; Enquanto o meu cabelo crescia, de Isabel Minhós Martins; Uma galinha, de Clarice Lispector; Um estranho barulho de asas, de Alice Vieira a partir de um conto macaense, e Nungu e a senhora hipopótamo, de Babette Cole, são os textos que se podem ouvir neste audiolivro e que prometem estimular a imaginação de qualquer pessoa, seja criança ou adulto. Porque a experiência diz a Sérgio e a Isabel que o hábito de ouvir contar boas histórias torna as crianças mais curiosas, mais inteligentes e mais calmas.

Real Pelágio e BOCA 

No tempo do Memorial do Convento, Lisboa não era ainda uma cidade moderna, mas não era já uma cidade medieval. A primeira caracterizava-se, como Paris, pelas largas ruas e pelos inúmeros e soberbos palácios; a segunda, constituía um amontoado de casario vinculado à orografia do terreno, em torno de uma fortaleza ou castelo, rodeada de uma muralha defensiva, donde se destacavam as torres sineiras das igrejas e dos conventos.

Baltazar e Blimunda, os protagonistas do romance de Saramago, assistiram a esta transformação da capital de Portugal de cidade dos Descobrimentos, cosmopolita mas de geografia e urbanismo pós-medieval, em cidade contemporânea, concebida e estruturada para uma economia comercial. Neste sentido, a Lisboa do Memorial do Convento é uma cidade em mudança, descaracterizada do seu antigo poderio de cais imperial, uma cidade que assistia aos rituais majestáticos da Coroa à imitação dos parisienses do Rei-Sol. Não é já uma cidade só de palacetes renascentistas, que abundavam na Costa do Castelo, nos arredores do Rossio e na linha que segue da Ribeira das Naus à Junqueira, mas de verdadeiros palácios e quintas, que se vão construindo nos arredores da capital (Junqueira, Benfica, Lumiar, Campo Grande…).

Este itinerário inicia-se junto à Casa dos Bicos onde está instalada a Fundação José Saramago.

Lisboa, hoje desenhada verticalmente ao Tejo, seguia então paralela ao rio, as ruas acompanhavam os declives naturais (as colinas, os vales). Mais do que outro símbolo urbano, eram as igrejas e conventos que marcavam os lugares de Lisboa. Dificilmente se daria um passo de uma rua para outra que não se deparasse com uma igreja, uma capela ou, na linha do horizonte, uma ermida, como a de São Mamede. No lado oriental, a capela de Nossa Senhora da Penha velava pelos lisboetas; do ocidental, São Mamede, o santo abençoador dos rebanhos que pastavam às portas da cidade. Por esta, dezenas de igrejas, que nenhum bairro se sentia bairro sem que tivesse o seu santinho protector, o seu pároco particular, que controlava os costumes, baptizava os meninos, casava os jovens, consolava os adultos e amortalhava os velhos no caixão, melhor, na mortalha.

As casas dificilmente ultrapassavam os três andares, todas elas com quintais, algumas com curtos jardins, encostadas e cravadas umas nas outras, compondo um labirinto de ruas e ruelas estreitinhas por que dificilmente passava uma carroça larga ou uma carruagem. Pelos casaréus de Alfama e Mouraria vivia o povo pobre de Lisboa, aqui vivia Blimunda, em casas de duas-águas, chão de terra batida e duas divisões, a cozinha, que também era sala, composta em torno da lareira de cozer, e o aposento de dormir, pais e filhos na mesma câmara, separados, não raro, por um pano de chita velha pendurado num cordel, que unia parede a parede. Na sala-cozinha, escanos de sentar e recostar, a trempe da sopa e dos guizados, que aquecia a casa de vapor de água, acrescido do calor das braseiras. Uma mesa articulada encostada a um canto, que os filhos armavam sendo horas de refeição (ainda hoje se diz “pôr” e “levantar a mesa”); no aposento de dormir, palha pelo chão ou peles de boi, um enxergão de folhelho ou de estopa (colchões de lã ou de penas eram reservados para os grupos sociais mais poderosos), a cobrir o corpo malcheiroso uma manta grossa de lã mal cardada, pasto abundante de pulgas, piolhos e percevejos.

A [antiga] praça era dominada pelo Palácio Real, com o Torreão do Terzi encostadinho à água.

No Terreiro do Paço, rosto do país para o estrangeiro, D. João V mandou construir a igreja da Patriarcal, a igreja mais rica de Portugal, possuía uma biblioteca e uma pinacoteca valiosíssimas, bem como a Ópera do Tejo. A praça era dominada pelo Palácio Real, com o Torreão do Terzi encostadinho à água, onde, no tempo doMemorial do Convento, D. João V agonizará entrevado no leito cerca de dez anos.

Nas costas do Terreiro do Paço, amontoavam-se ao sol da manhã os trabalhadores da Ribeira das Naus, de rosto encardido pelo lume das fogueiras gigantescas que ferviam caldeirões de água, cujo vapor provocava a concavidade das pranchas de madeira que compunham o casco dos barcos; calafeteiros limpavam as mãos sujas de pez a margaços de estopa. Podemos imaginar Baltasar a passar entre os fragateiros do Tejo, a comer sardinhas cozidas ou fritas em azeite do Alentejo ou peixe fumado, que tragava em ruidosas mastigações, os lábios corrompidos de pústulas secas, oleados pelo quartilho de vinho tinto.

Do Terreiro de Paço ao Rossio, não havia caminho directo ou rua direita. As ruas corriam paralelas ao Tejo. Entre estas, salientavam-se a Rua Nova dos Ferros – rua de compras de material e mercadorias, de e para o trabalho -, e a Rua dos Ourives da Prata – rua das compras refinadas. Para o lado da Boavista, estava nascendo a Rua dos Remolares, rua da moda no século XVIII, que Baltazar e Blimunda nunca visitarão, que receberá os figurinos parisienses da moda, onde jovens fidalgos estanciarão longas horas, suspeitando ver, quando as meninas descem dos coches, depondo o sapatim de pele de gamo no tijolo da rua para visitar as lojas, a brancura de leite de um calcanhar sob os folhos de rendas graciosas.

Pela Madalena… entre azinhagas sombrias e ruelas malcheirosas… acolhiam-se os bordéis de meretrizes

Ao fundo oriental do Terreiro do Paço, a caminho da Madalena, evolava-se um cheiro acre a sangue e carne fresca, era o açougue, dos curros saíam os gemidos das vacas, dos bezerros, dos carneiros, das ovelhas, mortos por degola ou por um pontifim aguçado espetado até ao coração, sacavam-se-lhes as peles, depositadas em grandes tanques, de cheiro fétido, para começo da curtição, e esquartejavam-se os corpos, separando a carne dos ossos, que, resticulados de sangue e tendões, eram arrastados em padiolas, acompanhados de matilhas de cães ladrando, e deitados ao Tejo.

Pela Madalena, também, entre azinhagas sombrias e ruelas malcheirosas, rescendendo ao ardor nojento de peixe podre ou enxúndias de carne putrefacta, acolhiam-se os bordéis de meretrizes, breve transferidos para a Rua Suja, uma viela mesmo à beirinha do novíssimo Bairro Alto. Prolongando o edifício do açougue em direcção ao Tejo, no final da actual Rua da Madalena, ficava a Alfândega, 14 casarões, enormes, sólidos, por onde transitava a mercadoria vinda do Império, sobretudo caixotes de açúcar, fardos de peles, varas de pano, rolos de fumo (tabaco) e sacas, barricas, cestas e cabazes de especiarias. Da Alfândega saíam os grandes proventos que alimentavam a Casa Real e o Senado da Câmara de Lisboa.

No Rossio, segunda grande praça da cidade, não existe edifício único dominador. A norte, estabelecendo de certo modo o limite de Lisboa, a Casa do Senado da Câmara e o Palácio dos Estaus, antigo palácio de acolhimento de embaixadas estrangeiras doado por D. João III ao Tribunal do Santo Ofício, dirigido pela Ordem dos Dominicanos. Aqui se encarceram judeus e heréticos, homossexuais e lésbicas, ciganos e blasfemos, velando-se pela santa pureza de Portugal. Aqui se encarcerou Sebastiana de Jesus (mãe de Blimunda) e até Bartolomeu de Gusmão, o frade-voador da Passarola de Memorial do Convento, caso não tivesse fugido para Toledo por ambicionar voar.

Do lado sul, dando origem ao dédalo de ruas que levavam ao Tejo, casas de habitação e uma arcaria, onde se iniciava a Feira da Ladra, posteriormente exilada para a actual Praça da Figueira.

Perto, a Igreja de São Domingos, comprida e baixa, donde partiam os autos-de-fé, um dia completo, que terminava com a queimança do corpo dos condenados, ora no Rossio, ora no Terreiro do Paço, com a família real e os dignitários maiores da hierarquia da Igreja a assistir.

Nasceste em Moçambique e com seis anos vieste para Portugal. Como foi a tua adaptação?

O meu pai estava a estudar na Alemanha, a minha mãe estava em Moçambique farta de estar longe dele. Eu tinha acabado de entrar para a escola, então eles decidiram que se iriam encontrar a meio caminho, foi por isso que vieram para Portugal. No princípio foi um bocadinho doloroso por uma questão climatérica. Viemos para cá em novembro, era verão em Moçambique. Nos primeiros meses ficámos em casa de uma amiga dos meus pais que era atriz, o que nos levou a conviver com imensos atores. Foram tempos muito excitantes. Os meus pais sempre estiveram ligados às artes plásticas e ao teatro e eu convivi muito de perto com esse meio.

A tua paixão pela música vem de família?

Acho que só tivemos televisão quando eu tinha uns dez anos, por isso ouvíamos muita rádio. A única pessoa da minha família que estava ligada à música era uma bisavó minha, de quem tenho o nome mas que não cheguei a conhecer. No meio moçambicano é muito normal crescer-se a ouvir música e a dançar, mas isso não faz com que as pessoas sejam bailarinos ou músicos. Há é uma predisposição e uma exposição muito grandes para a música fazer parte da nossa genética.

Em que altura é que a música foi uma escolha?

Cantava sempre nas festas da escola, e lembro-me de umas amigas me aconselharem a concorrer ao Chuva de Estrelas [programa de televisão da SIC, nos anos 90], no ano a seguir à vitória da Sara Tavares. Eu ria-me e achava um disparate. Comecei a cantar num coro de gospel. Um dia, numa festa de aniversário de uma prima,  o maestro Carlos Ançã (Coro Gospel de Lisboa) veio falar comigo porque achou que eu cantava muito bem. Na altura estava a formar um grupo e convidou-me para fazer parte. Só tinha 17 anos, fiquei um bocado reticente mas acabei por ir e fiquei completamente envolvida. Criou-se uma família ali, éramos cerca de 40 vozes. Mais do que um despertar espiritual, deu-se em mim um despertar musical. Nessa altura a televisão pagava aos grupos para irem atuar, e ainda ganhei algum dinheiro nessa fase. Cantava, estava com os meus amigos, ganhava algum dinheiro, mas sempre muito consciente de que queria ser engenheira.

Entretanto surge o projeto WrayGunn…

Um dia recebemos um convite do José Cardoso (manager dos Wraygunn), que queria gravar um disco com um coro de gospel. O maestro da altura, que era um homem conservador, ficou reticente porque achou que era um projeto “do demo” [risos]. Desmistifiquei a ideia e incentivei a que participássemos nas gravações do álbum Eclesiastes. Passado um tempo recebi um telefonema do Pedro Pinto (baterista) a convidar-me para fazer parte da banda. O primeiro ensaio foi horrível, a primeira reunião foi péssima, o primeiro concerto foi detestável, mas entretanto o disco rebentou em França e foi uma experiência incrível em termos de espetáculo.

Em termos logísticos não deve ter sido fácil, uma vez que a banda era de Coimbra…

Eu era conhecida como a “Selma do Expresso”, porque fazia várias coisas ao mesmo tempo e ia a todo o lado. Se tivéssemos um concerto em Braga às 22h, eu era menina para apanhar o primeiro comboio e estar às 9h a cantar na igreja em Lisboa. Era muito nova, não vivia com os meus pais, estava a viver “the time of my life”.

No meio disso ainda havia o curso de Engenharia Civil…

Fiz o meu trabalho de fim de curso em digressão em França com os WrayGunn. Já não fui ao último concerto da tournée, em Itália, porque tive de fazer a defesa do trabalho. Cada vez que parávamos nalgum sítio eu agarrava-me ao computador a trabalhar.

“Mati” é o primeiro album a solo da cantora.

Adaptas-te bem a estilos musicais muito diferentes. Tens uma voz versátil?

O gospel abriu-me as portas e ajudou-me a perceber muito sobre a minha voz. Com os Wraygunn aprendi muito sobre estar em palco, montar espetáculos e andar na estrada. Gravei com os Buraka, com Sean Riley, com a Rita Redshoes, universos muito diferentes. Sempre tive este lado muito camaleónico. Acho que a principal razão não tem a ver com a voz, mas sim com a minha capacidade de adaptação. Trabalho muito no sentido de, sem deixar de ser eu própria, me adaptar ao universo dos outros. Nunca quis ter um percurso a solo, sempre achei que o que eu fazia devia servir a música. Trabalhar com o Rodrigo Leão, por exemplo, é para mim um dos maiores desafios – não em termos vocais – mas sim em gerir quem eu sou musicalmente. A música do Rodrigo é muito particular e a voz é mais um instrumento. Não posso ser um elefante que entra numa loja de porcelana, tenho que ser mais um elemento que ali está, para que a minha voz trabalhe em conjunto com toda aquela pintura. Tem sido um trabalho muito enriquecedor.

Também estudaste jazz no Hot Clube…

O jazz foi muito importante porque a determinada altura senti necessidade de colocar as coisas em caixas. Abriu-me muito os horizontes e fez-me perceber que eu poderia brincar ainda mais com a minha voz de uma forma mais segura, ajudou-me a entender a matemática da música e também me deu a conhecer músicos extraordinários, com quem tenho trabalhado.

Foi difícil largar a Engenharia Civil?

Sempre tive a convicção de que a profissão que escolhesse serviria uma missão. Escolhi o curso de Engenharia Civil porque queria ir para Moçambique fazer parte de uma classe laboral e intelectual que impulsionasse o desenvolvimento do país e não estava a fazê-lo. Sentia que, enquanto engenheira, esse processo seria moroso, extremamente político e muito pouco palpável. Percebi que através da música ia conseguir fazer aquilo que não conseguiria de uma maneira tão eficaz com a engenharia. Comecei a sentir que fazia diferença a quem me ouvia, que era urgente fazer música porque as pessoas precisavam disso.

O facto de teres participado em tantos projetos diferentes dificultou a descoberta da tua própria identidade?

Sim e não. O meu filtro, quando recebia convites, era basicamente perceber se era um projeto de bom gosto, se eu me identificava ou não com ele, e a verdade é que me identificava com muitas coisas. Tanto estava a cantar numa banda de funk como numa de afrobeat ou de jazz.

Em que altura decidiste investir num projeto a solo?

Em 2012, quando fui mãe pela segunda vez, percebi que estava a emprestar a minha voz a muitos projetos, e se queria viver da música tinha que ter um percurso a solo. A grande dificuldade foi perceber qual era o caminho. Facilmente podia ser gospel, rock, afrobeat ou jazz e isso dificultou o processo. Sabia também que queria as raízes de Moçambique presentes, mas a dificuldade foi em saber como misturar tudo. Foi isso que tornou o percurso mais demorado. Comecei por fazê-lo com o Pablo Lapidusas, que conheci no Festival da Conexão Lusófona. Na altura eu vivia em Bruxelas, então fechámo-nos num sótão a partir pedra, a construir canções. Ele tinha um editor moçambicano, fomos gravar no estúdio em Moçambique, mas depois no final, em 2014, tinha um disco que, bem espremido, ainda não era bem aquilo que eu pretendia. No fundo o que eu pretendia era fundir o meu lado africano com o meu lado mais urbano usando os instrumentos tradicionais moçambicanos sem serem usados de uma maneira tradicional, até que cheguei ao Jori Collignon, um holandês que tem estado a trabalhar com outras bandas portuguesas. Sem qualquer tipo de vaidade, o disco ficou o que eu desejava e que eu acho que é o meu som.

Neste disco cantas em changana e chope. Foi difícil tomar essa decisão?

Não falo nenhum dos dialetos moçambicanos. Tive receio que os moçambicanos achassem que não era muito autêntico, mas depois pensei: “em 2016 gravei o Retiro com o Rodrigo Leão em latim. Se gravo coisas em latim, não vou gravar num dialeto meu por medo do que possam pensar?” Tive uns amigos moçambicanos que me incentivaram e depois brincavam comigo a dizer “lá está ela a cantar changana com sotaque ‘tuga’”. Achei isso muito engraçado. Vivo em Portugal há 30 anos, é normal que tenha sotaque português.

Porquê Mati?

Queria muito que o título fosse em chagana, que fosse a marca de uma moçambicana que abraça Portugal como uma segunda nação. Queria um nome simples e fácil de dizer. Depois porque tinha escrito uma canção/oração com esse nome que era uma fusão muito doce de todos os meus universos, a música que representava o disco. Depois porque a água é algo que nos liga a todos, que faz parte do nosso corpo, mas também porque era um nome bonito e especial.

Escolheste o Lux para apresentares este disco. Porquê?

É um sítio com o qual tenho uma relação muito boa, e eu queria fazer o concerto onde me sentisse em casa. Por via do Rodrigo Leão comecei a ter alguns seguidores mais clássicos, que estão habituados a estar sentados em concertos, e eu queria que fosse uma sala em que as pessoas estivessem em pé. Quis encontrar um ambiente que fosse um bocadinho de clube, de dimensão intermédia, onde me sentisse em casa, que fosse um sítio urbano. É um sítio feliz para mim.

O que traz o futuro próximo?

Este ano está muito direcionado para a divulgação do Mati, mas também para a internacionalização. Já tenho alguns concertos marcados: Polónia, Luxemburgo, Brasil, França, Espanha. O futuro do próximo disco já está delineado, gravei-o no verão passado com o meu produtor antigo mas também conta com produção do Guilherme Kastrup (produtor da Elza Soares). Estou com muita vontade de mostrar o disco, mas só sairá em 2020. Em relação às colaborações, os convites vão surgindo mas a disponibilidade é outra e vou dizendo que não mais vezes do que gostaria. Este ano já tenho concertos do Rodrigo Leão marcados vai sair um novo disco dos Throes & The Shine para o qual escrevi uma canção, tenho pedidos de duas bandas para fazer músicas e, para além de tudo isto, tenho duas filhas e um marido [risos].

“Não se pretendeu uma retrospetiva, nem houve a pretensão de mostrar exaustivamente a obra de João Onofre”, esclarece previamente Delfim Sardo, curador de Once in a Lifetime [repeat], a exposição que reúne, nas galerias da Culturgest, alguns dos trabalhos mais significativos do artista lisboeta, nascido em 1976. Dir-se-ia que, ao longo da mostra, “o enfase é dado a essa espécie de limbo entre o romantismo e os grandes temas da história da arte, nomeadamente, o amor, a falha ou a morte, que parece atravessar toda a obra de Onofre. Tudo com incontestável ironia.”

A exposição começa ainda na rua, à entrada da Culturgest, com Box, um cubo em aço com uma dimensão de 1,83 metros, alusão aos 6 pés (six feet) de profundidade de uma sepultura. A peça é uma citação a uma escultura seminal do minimalismo, a obra Die (1962) de Tony Smith, e nesta “leitura” de Onofre resulta numa caixa insonorizada na qual uma banda de death metal (os Holocausto Canibal) realizam “uma performance extrema”: encarcerados no seu interior, a banda toca até o oxigénio permitir (a performance voltará a realizar-se a 17 de maio, às 22h30).

Box sized DIE featuring…, Marlborough Contemporary, Londres, junho 2014

 

Os ecos da história da arte moderna e contemporânea compõem também a trilogia O Estúdio. Os três vídeos são uma citação direta a Bruce Nauman, influente artista conceptual norte-americano, que desenvolveu algumas das suas obras mais marcantes elegendo como tema o próprio estúdio. Nauman acreditava que “a arte é aquilo que o artista realiza no atelier”, e Onofre parece partir desta referência da década de 60 do século passado para, “com uma ironia incisiva em relação à ambição transfiguradora das imagens artísticas”, filmar uma cantora a interpretar as preposições de “arte conceptual” do minimalista Sol LeWitt sobre a melodia de Like A Virgin de Madonna; colocar um ilusionista a executar o tradicional número de levitação da sua partner (de novo, uma citação a Nauman); e libertar, no confinado espaço do próprio atelier, um abutre que, com a sua envergadura, acabará por destruir tudo, num irónico exercício de “necrofagia da obra do artista”, como sublinha o curador.

Outra referência a Nauman, mais concretamente ao seu famoso Self-Portrait as a Fountain, surge em Untitled (Luminous Fountain), autorretrato enquadrado pela fonte luminosa da Praça do Império, em Belém.

Untitled (Luminous Fountain), 2005 | Foto digital montada entre alumínio e plexiglass | 110 x 150 x 4 cm

 

No percurso de Onofre, o cinema é outra fonte de citações. Se, por um lado, a peça mais antiga presente nesta exposição é um curto excerto de O Eclipe, obra-prima de Michelangelo Antonioni, em que os protagonistas (Alain Delon e Monica Vitti) encenam, com as mãos, o jogo de sedução em loop, a mais recente, e até aqui inédita obra, é um complexo e arrojado take único de perto de duas horas e meia, a lembrar o One Plus One, de Godard, ou A Arca Russa, de Aleksandr Sokurov.

Untitled (zoetrope) trata-se de um enorme plano sequência protagonizado por um coro de gospel, um quarteto de músicos e uma equipa mista de râguebi, que “encenam um ritual interminável, até à completa exaustão”. Ao som de I want to know what love is, tema pop da década de 1980 celebrizado pelos Foreigner, os jogadores tentam, à vez, entoar o refrão da canção num microfone situado no centro do set, rodeado pelos músicos e pelo coro. Porém, nunca o conseguem terminar, uma vez que são insistentemente placados pelos seus colegas de equipa.

Untitled (zoetrope), 2018-19 | Video 4K, cor, som, 142’ | Coleção Maria João e Armando Cabral / Cortesia Cristina Guerra Contemporary Art

 

Esta performance filmada é particularmente ilustrativa do espírito de toda a exposição, “concebida em torno da importância da circularidade e da repetição como processo criativo”, como ressalva Delfim Sardo. Depois, há sempre essa “omnipresença da ideia de finitude, de falta, de fracasso e de erro inerentes à vida e, consequentemente, à criação artística” que, na obra de João Onofre, detêm “a fina ironia com que [cada peça] oscila entre tragédia, comédia e conceito.”

Depois de gravemente ferida no Iraque, a fotojornalista Sarah (Sandra Faleiro) regressa a casa onde reencontra o namorado, também ele repórter de guerra, James (João Reis). Além das mazelas visíveis, Sarah continua profundamente abalada, apesar dos esforços de James na sua recuperação. Entretanto, o casal recebe a visita de Richard (Virgílio Castelo), editor de fotografia e amigo de longa data, que traz consigo a jovem namorada, Mandy (Sara Matos). O contacto com esta mulher mais jovem, algo frívola e completamente deslocada do mundo destes jornalistas, vai provocar um forte abalo nas suas perspetivas de vida.

“O que mais me fascina nesta peça”, conta o encenador Diogo Infante, “é toda a natureza humana contida nestas personagens. Por um lado, há aquelas três que se regem pelos mesmos códigos, pela profissão, pelos mesmos interesses. E, depois, surge Mandy, e tudo é como que colocado em causa.”

A atriz Sandra Faleiro volta a ser dirigida por Diogo Infante.

 

O abalo começa, desde logo, na vida de Richard. Apaixonado, a relação com a jovem proporciona-lhe uma mudança radical no seu percurso, que passará, mais tarde, pela assunção plena do compromisso. Para James, enquanto observador, a relação do amigo leva-o a questionar o seu próprio papel social enquanto repórter e, simultaneamente, aquilo que tem sacrificado ao longo da vida em nome da profissão, nomeadamente, os afetos e a perspetiva de construir uma família.

Zoom é, apesar do olhar sobre o mundo em que vivemos, “uma história de amor.”

 

“Apesar do olhar muito atual sobre os conflitos que ocorrem no mundo, sobre o papel dos jornalistas e a sua implicação social, Zoom é sobre essa trupe que é a família”, releva Infante. “No fundo, é uma peça sobre relações, sobre encruzilhadas. Uma história de amor.”

E, no centro da encruzilhada está Sarah. Uma “vida normal” até a pode tentar, mas continua a existir um mundo lá fora e histórias para contar. Sem certezas e no limite das emoções, a fotojornalista vai ser colocada perante decisões que poderão definir toda a sua vida.

Zoom, de Donald Margulies, está em cena, na Sala Carmen Dolores do Teatro da Trindade, até 31 de março.

Dirigindo-se ao público, André Amálio começa por prometer um espetáculo diferente de todos os que dirigiu anteriormente. “Este não é político. Este é sobre o amor!”, anuncia. De seguida, cada um dos intérpretes elenca como vai demonstrar o amor em cena e começa por apresenta “o seu amor” – seja ele um pai, no caso de Júlio Mesquita, ou a companheira, no caso do próprio Amálio. Tudo porque, parafraseando o filósofo esloveno Srecko Horvat, “o amor é revolução”. Sempre, e em que circustância for, “a nossa revolução.”

Mas, “revolução” é um conceito político, não é? “Trata-se de uma falsa premissa que decidimos lançar, porque aquilo que realmente nos importa é dar a entender que todo o amor é político”, esclarece Amálio. Político porque, acredita, “todas as histórias de amor o são.”

Júlio Mesquita, Romi Anauel, Laurinda Chiungue e Pedro Salvador num cena do espetáculo.

 

Será precisamente nesse sentido que Amores Pós-Coloniais avança, começando por fazer ecoar entrevistas a ex-combatentes da Guerra Colonial que tiveram filhos com mulheres africanas negras durante o conflito, seguindo pelas memórias de portuguesas brancas que viveram histórias de amor com ativistas africanos (como Agostinho Neto e Amílcar Cabral) ou dando voz a testemunhos dos filhos resultantes de relações interraciais.

Porém, o mosaico que Amálio e a sua companheira e parceira criativa Tereza Havlíčková constroem, vai ainda mais além. O império acabou e vivemos, desde o final do fascismo, um período pós-colonial, embora subsista ainda uma colonização do pensamento e dos comportamentos. Torna-se particularmente pungente escutar os testemunhos de hoje, nomeadamente dos atores negros em cena (Júlio Mesquita, Laurinda Chiungue e Romi Anauel), todos nascidos após o 25 de Abril, mas ainda marcados pela herança nefasta de quase 500 anos de história que teimamos em mascarar. Afinal, pergunta-nos Amálio, “o que terá sido mais marcante na história deste país: a descoberta do caminho marítimo para a Índia ou o início do colonialismo e do tráfico de escravos no Atlântico?”

Um espetáculo que é também festivo, e como tal não faltam a música, a dança ou a gastronomia.

 

Se, por um lado, Amores Pós-Coloniais é um objeto de denúncia, assumidamente ativista e político, por outro, é indiscutivelmente um espetáculo sobre o amor. Apesar de toda a gravidade que paira quando se tocam estes temas, é também festivo, e como tal não faltam a música, a dança e a gastronomia. Festeje-se então o amor que é “a nossa revolução”, como se escuta a dado momento. Porque, como se torna implícito, só o amor pode conduzir à descolonização que ainda está por fazer. Aqui, em Portugal; agora, neste ano de 2019.

No palco da Comuna reúne-se um elenco inteiramente feminino para levar à cena o Hamlet de William Shakespeare, quase 500 anos depois da primeira encenação da peça, quando em pleno período isabelino apenas aos homens era permitido subir ao palco. Para este “projeto transgressor”, o encenador Hugo Franco pega na (academicamente) controversa, mas a todos os níveis belíssima, tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen, depura o texto e entrega a Maria Ana Filipe, Margarida Cardeal, Diana Costa e Silva, Mónica Garnel, Tânia Alves, Lia Carvalho e Custódia Gallego, as personagens centrais da tragédia.

“Interessou-me perceber como é que aquelas palavras que parecem conter toda a essência do amor e do ódio, e tanta, mas tanta paixão, poderiam ser ditas por mulheres”, explica Hugo Franco. “E aquilo que descobri ao longo dos ensaios foi que, ao entregar as personagens de Hamlet a um elenco feminino, essas palavras tornaram-se ainda mais humanas” acrescenta, não deixando de sublinhar que, pessoalmente, acha inigualável “a sensibilidade a que uma atriz se entrega quando as diz.”

Independentemente do género da personagem interpretada (de facto, apenas Custódia Gallego e Lia Carvalho encarnam personagens femininas), são sempre mulheres que vemos em palco. “Não pretendi que houvesse qualquer traço de masculinização das personagens. São elas a ser Hamlet, a ser Cláudio ou Polónio, com figurinos que não lhes conferem qualquer outra característica que não a de serem mulheres a representar aqueles papéis.”

Cabe a Maria Ana Filipe interpretar Hamlet. Segundo a atriz, “o que importa é deixar que o texto nos atravesse, e não o facto de estar a representar um personagem masculino”. Margarida Cardeal, que representa Cláudio, o tio usurpador de Hamlet, tem opinião semelhante, mas ressalva nunca se sentir a representar um Rei, nem mesmo uma Rainha. “Afinal, uma mulher é sempre uma mulher”, salienta a atriz.

Para além do género, Hugo Franco inclui uma outra “transgressão” nesta sua visão da peça de Shakespeare. Para interpretar Ofélia, a apaixonada do protagonista, o encenador escolheu Custódia Gallego, a mais velha das atrizes do elenco. “Aquilo que pretendia de Ofélia, aquele misto de tesão e afeto, de paixão e sentido trágico, só me poderia ser dado por uma atriz mais velha e com a capacidade de dar uma força suplementar a uma personagem tão marcante.”

HAMLET(a) pela Comuna Teatro de Pesquisa

HAMLET(a)Nota do EncenadorSer ou não ser…?É uma questão que me inquieta e Inquietar-nos é uma das funções do Teatro.A minha proposta para esta encenação foi a de TRANSGREDIR, quero muito TRANSGREDIR.Há muito tempo que tenho esta ideia de fazer um "Hamlet" em que todas as personagens são interpretadas por mulheres, situação essa que seria impossível na altura em que a peça foi escrita (séc.XVII), pois nesse tempo as mulheres estavam proibidas de representar .O que me interessou neste processo de criação foi a abordagem ao texto por parte das actrizes: as questões que daí surgiram, questões de género (claro), e também questões filosóficas mas, acima de tudo, o meu intuito sempre foi o de contar esta história que está para além do género. Este texto representado por mulheres tem, sem dúvida, uma pulsão diferente. E é essa diferença que me interessa. Mas que diferença é essa? O amor de Hamlet pelo Pai é diferente quando representado por uma mulher? A amizade de Horácio por Hamlet é diferente quando é representado por uma mulher? Mais do que um género, estas questões são essenciais à humanidade.Nesta tragédia temos amor, assassinato, traição, ódio, vingança – sentimentos transversais da natureza humana, sentimentos que não têm género…SER OU NÃO SER?O Verbo SER não é feminino nem masculino. É irregular.É próprio da natureza humana a busca pela felicidade, eu busco a felicidade a fazer teatro.Viva o Teatro!!!Hugo Francocreditos_Eduardo Breda

Posted by Teatro da Comuna on Friday, 1 February 2019

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Para além do masculino ou do feminino

O percurso das peças de Shakespeare nos palcos tem sido profícuo em ultrapassar toda e qualquer questão de género. Basta lembrar, como já sublinhámos, que na Inglaterra isabelina apenas aos homens era permitido atuar num palco, por isso, a primeira vez que um mortal teve o privilégio de tomar contacto com a beleza da “alma suicida” de Ofélia foi no corpo de um homem. O mesmo se poderia dizer da Julieta que conquistou o coração de Romeu, ou da Rosalinda (que até chegou a ser homem) de As You Like It, para alguns a mais hamletiana das personagens femininas de Shakespeare.

A enigmática dedicatória nos sonetos de Shakespeare.

 

Fora dos textos para palco, imagine uma teoria diferente para abordar a temática do masculino e feminino em Shakespeare, tal como Oscar Wilde o fez. Em O Retrato de Mr. W.H., o autor irlandês avançou com a tese provocadora de que a enigmática dedicatória feita por Shakespeare nos seus sonetos era dedicada a Willie Hughes, um jovem ator da sua companhia especializado em papéis femininos. Seria o senhor W.H. o misterioso Fair Youth, protagonista dos primeiros 126 sonetos?

 

Universais e simplesmente humanos

Será difícil aferir se no mundo, e ao longo dos tempos, Hamlet terá sido ou não interpretado somente por mulheres. Se ainda não aconteceu, o encenador Hugo Franco e o Teatro da Comuna tornam-se pioneiros na direção de um Hamlet “com pulsão totalmente feminina”. No entanto, na história do teatro, grandes atrizes subiram ao palco para interpretar os heróis do teatro shakespeariano, acreditando em personagens universais e simplesmente humanas, à prova de poderem ser reduzidas meramente ao masculino ou ao feminino.

A mítica atriz francesa Sarah Bernhardt interpretando Hamlet no final do século XIX.

 

O exemplo mais famoso é o de Sarah Bernhardt que, em 1899, estrearia em Paris um Hamlet por si protagonizado. Embora assumindo (como se escreveu em jornais da época) “uma masculinidade engenhosa”, Bernhardt rasgava o cânone – muito embora atrizes de inferior gabarito já tivessem interpretado o papel antes da diva francesa – e seria aplaudida no país natal do Bardo, atuando mesmo em Stratford, no Shakespeare Memorial Theatre. Mais recentemente, sem optar pela masculinização da personagem, atrizes como Frances de la Tour e Maxine Peake também encarnaram o papel do jovem Hamlet.

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