Gonçalo Couceiro Feio

A Guerra no Renascimento

Durante o Renascimento, a arte militar ocidental sofreu profundas alterações: os exércitos tornaram-se maiores e mais centralizados, assistiu-se a uma generalização das armas de fogo, a logística tornou-se mais sofisticada e a instrução mais cuidadosa e regulamentada. De que forma Portugal se adaptou a estas alterações de modo a criar forças militares que correspondessem à nova realidade? Gonçalo Couceiro Feio, investigador no Centro de História da Universidade de Lisboa, explica como Portugal se adaptou a estes novos requisitos, como funcionava a máquina militar – o recrutamento, a instrução, a disciplina a remuneração do serviço militar, a logística, o armamento –, qual era o perfil dos soldados e comandantes portugueses e de que forma foi feita a transferência de saberes e permuta cultural entre as forças militares portuguesas e outras de várias nacionalidades. Uma obra fundamental para conhecer a História Militar portuguesa na época de D. Manuel I a Felipe II.

A Esfera dos Livros

 

Milan Kundera

Os Testamentos Tráidos

O presente ensaio tem como tema principal a arte do romance. Kundera, defensor apaixonado dos direitos morais do artista e do respeito devido às obras de arte e aos desejos dos seus criadores, produz uma fascinante meditação sobre a necessidade de preservar o trabalho dos artistas das avaliações destrutivas. Assim, Stravinsky e Kafka surgem-nos “avaliados” pelos seus curiosos amigos Ansermet e Max Brod,  e Hemingway pelo seu biógrafo Jeffrey Meyers. Kundera examina os grandes processos morais erguidos contra arte do século de Céline a Maiakosvski. Desenvolve os temas do humor como “grande invenção do espírito moderno” ligada ao nascimento do romance, a misteriosa ligação entre romance e música ou a defesa do romance como “território em que se suspende a moral”. Aborda ainda outras questões relevantes da nossa época. Refletindo sobre “o uivo extático” do rock que se apoderou do mundo, interroga-se: “Quererá o século esquecer as suas utopias soçobradas no horror? Esquecer a sua arte? Uma arte que pela sua subtileza, pela sua vã complexidade, irrita os povos, ofende a democracia?”

Dom Quixote

 

José Cardoso Pires

Lisboa –- Livro de Bordo

“Cada um tem uma lisboa pessoal”, era uma frase de José Cardoso Pires. Nesta sua obra escreve: “ninguém poderá conhecer uma cidade se não a souber interrogar, interrogando-se a si mesmo. Ou seja, senão tentar por conta própria os acasos que a tornam imprevisível e lhe dão o mistério da unidade mais dela”. Por isso, este não é um livro para os que praticam as vias-sacras dos monumentos, os labirintos de roteiro ou para os viajantes de museu. É uma rota atenta à luz e às cores, aos cheiros e às vozes, ao humor, ao tom, à sintaxe e aos gestos, “registos inconfundíveis do espirito do lugar”. O autor evoca as antigas tertúlias das letras e da política nos cafés do Rossio, a cor de lisboa na pintura de Bernardo Marques, Carlos Botelho, Abel Manta ou Vieira da Silva, e os bares da capital (“cada bebedor tem o seu mapa, cada mapa os seus portos”). Elege a geografia cultural do Chiado como o local que define Lisboa e, ao recordar a ferida aberta do incêndio de 1988, questiona-se: “Quando estas cicatrizes tiverem fechado, como será este rosto de mim mesmo?”

Relógio D’Água

 

Carlos Morais José

O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja

Os jesuítas de Macau terão criado no século XVI um secreto Arquivo das Confissões para melhor estudarem os meandros das almas dos crentes e, desse modo, adquirirem uma compreensão mais vasta da natureza humana. Para entenderem o que terá levado esses homens a cometer tão grande pecado e arriscar penas eternas. O livro gira em volta da leitura de um desses documentos que narra a história do homem que, devorado pela Inveja, roubou na Ilha de Moçambique um livro de versos ao maior poeta português da sua época. Absorvido pela obra e pelo crime, empreende uma estranha viagem pelos confins da Ásia, que o levará, de infâmia em infâmia, até aos pés de um confessor, na Igreja da Madre de Deus, em Macau, onde procura a absolvição e o esquecimento. Inspirada no roubo de Parnaso, manuscrito do poeta Luís de Camões que desapareceu na Ilha de Moçambique, esta obra tece uma admirável reflexão em torno do sentimento da inveja – “paixão retorcida, deusa esverdeada, aguilhão da História” – e dos seus efeitos devastadores.

Arranha-céus

 

Natália Correia

Entre a Raíz e a Utopia

“Nenhuma sociedade pode ser grande sem grandes homens”, escreveu o filósofo Bertrand Russel, frase escolhida para a epígrafe desta publicação. O grande homem a quem este livro é dedicado é o pensador, pedagogo, ensaísta e cooperativista António Sérgio; a grande mulher a é sua autora, a poetisa Natália Correia. Este conjunto de documentos, na sua maioria inéditos, corresponde a pelo menos doze anos (1946-1958) de uma relação de profunda cumplicidade e de luta pelos ideais universais, vivida entre Natália Correia e António Sérgio (1883-1969). Um encontro entre dois grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, sob o signo da fraternidade humana e da paz ou, segundo as palavras de Sérgio, na viva esperança de um cooperativismo integral enquanto libérrima anunciação profética de uma humanidade diversa da que temos hoje.

Ponto de Fuga

 

Romana Romanyshyn e Andriy Lesiv

Alto, baixo, Num Sussurro

Um verdadeiro catálogo ilustrado de sons! No princípio tudo era silêncio. Porém, um dia o universo encheu-se de sons. Sons agradáveis, a música ou os sons da natureza, e sons desagradáveis, a poluição sonora. Sons que ouvimos e sons que não ouvimos. Alguns animais ouvem sons num especto mais amplo que os humanos (as baleias ou os golfinhos comunicam com ultrassons, os morcegos guincham no espectro ultrassónico para se orientarem). O nosso corpo produz a sua própria música com uma grande diversidade de sons (uns mais convenientes que outros!). Este belíssimo livro, Prémio Bologna Raggazzi 2018 – Não Ficção, apresenta-nos as diferentes sonoridades que existem, chamando a atenção para a importância do silêncio e para necessidade de ouvir e escutar o outro. Por vezes sem usar palavras, nem sons. A escritora Romana Romanyshyn e o ilustrador Andriy Lesiv nasceram em 1984, na Ucrânia. Depois de se licenciarem na Academia Nacional de Arte de Lviv, fundaram o estúdio gráfico Agrafka. Formam uma inventiva e premiada dupla de autores de literatura infanto-juvenil.

Orfeu Negro

2019 é ano do centenário do falecimento do homem que passou à história como o pai da Olisipografia, Júlio de Castilho. Natural de Lisboa, onde nasceu a 30 de abril de 1840, Castilho frequentou a Universidade de Coimbra, onde tirou o Curso Superior de Letras. Ao longo da sua vida afirmou-se como um intelectual destacado do seu tempo, dedicando-se à escrita, investigação, jornalismo, política, crítica literária e docência, chegando a ser nomeado professor de História e Literatura portuguesa do Infante D. Luís. Foi também diplomata, exercendo as funções de Cônsul Honorário de Portugal em Zanzibar, na atual Tanzânia.

No que concerne à cidade de Lisboa, foi um estudioso pioneiro que publicou várias obras de referência tais como Lisboa Antiga (O Bairro Alto), em 1879 e Lisboa Antiga (Bairros Orientais) de 1884 a 1890, e fundador da moderna Olisipografia, actualizando-a na teoria e metodologia. O seu legado bibliográfico é composto por um vasto conjunto de obras, artigos e ensaios da maior relevância cultural e patrimonial sobre Lisboa, bem como um lote de discípulos que continuaram a investigar o conhecimento arqueológico, histórico e artístico da cidade.

Para celebrar a efeméride, a Câmara Municipal de Lisboa – Pelouro da Cultura, através da Direção Municipal de Cultura e da EGEAC, em colaboração com a família do homenageado e outras instituições públicas e privadas, criou um programa transversal de actividades culturais e educativas sobre a vida e obra de Júlio de Castilho.

Este programa decorre desde fevereiro e terminará em novembro de 2019, com os seguintes eventos:

Júlio de Castilho e o Acaso da Olisipografia
Exposição no Museu de Lisboa – Palácio Pimenta
Até 19 maio

Augusto Vieira da Silva – a régua e o compasso na continuação dos estudos de Júlio de Castilho
Por Elisabete Gama
Gabinete de Estudos Olisiponenses
27 de março, 18 horas

Júlio de Castilho, Um Olhar
Conferência de Pedro Bebiano Braga
Grémio Literário
7 de maio 19h

Júlio de Castilho, Vida e Obra
III Colóquio de Olisipografia
Teatro Aberto
21 a 23 de novembro

Lisboa de Júlio de Castilho
Roteiro Histórico
Percurso de autocarro por vários locais de Lisboa
23 novembro, às 10h

Júlio de Castilho
Dossier Digital
Disponibilização de bibliografia ativa e passiva na coleção da Hemeroteca Digital

Há uns anos, quando decidiu começar a escrever para teatro, Rui Neto descobriu um velho fascículo abandonado numa prateleira de livros dos seus pais. Ali jazia, tão incógnito, um pequeno conto inacabado do grande escritor russo Dostoievski. Chamava-se KroKodil e narrava a insólita e terrível história de Ivan, que durante um passeio pelo jardim zoológico de São Petersburgo foi devorado de um só trago por um enorme crocodilo albino. Desengane-se quem crê que tal “extraordinário acontecimento” tenha levado Ivan a encontrar a morte. Pelo contrário, o homem sobreviveu intacto, e Neto descobriu que poderia acrescentar mais do que um ponto e completar o que falta do conto.

“Digamos que tomei a liberdade de prosseguir a história que Dostoievski não completou”, esclarece o autor e encenador. “Decidi tornar o aparentemente terrível destino de Ivan no grande motivo de atração do parque”. E, assim, surgiram nesta “extensão do conto” as tão pérfidas personagens do banqueiro, do economista e do político que vão lançar os dados e decidir que “mais vale o lucro gerado pela nova atração do que a salvação do homem”. Tudo normal, portanto.

O ator Miguel Sopas interpreta várias personagens nesta deliciosa comédia negra de Rui Neto.

 

Então Ivan, esse sonhador que ambicionava explorar as Galápagos tal como Darwin, e tinha como consorte uma bela companheira obcecada por uma viagem a Paris, lá acabou encarcerado na boca do crocodilo. Mas será que para ele foi assim tão terrível o destino?

Entre o surreal, o grotesco e o absurdo, O Crocodilo ou o extraordinário acontecimento irrelevante é um delicioso espetáculo sobre um homem banal que ganha a importância que nunca esperou. Um homem simples, “quase uma criança”, abandonado num mundo em que, a cada momento, “um acontecimento extraordinário depressa se torna irrelevante.”

“A vós, voluptuosos de todas as idades e sexos, só a vós ofereço esta obra”, escreveu o Marquês de Sade, em tom de dedicatória, a abrir A Filosofia na Alcova. Mais do que um clássico da literatura erótica, espécie de versão mitigada, e até didática, de outros livros mais enigmáticos e radicais do autor (como Justine ou Os 120 Dias de Sodoma), a obra é, simultaneamente, uma antologia da libertinagem e um tratado filosófico de raiz republicana, anticlerical e anticristã.

Sem olhar a conceções moralizantes, assumindo a linguagem direta que caracteriza a escrita de Sade, Martim Pedroso dirige um espetáculo que pode ser entendido como “uma provocação, mas não gratuita, face a tantos temas que a nossa sociedade teima em não resolver, como o culto do patriarcado, a heteronormatividade, a descriminação daquilo que é diferente aos olhos dos princípios judaico-cristãos.”

Um espetáculo “para fazer pensar, seduzir e provocar.”

 

À semelhança de Sade, como se construísse um manifesto sobre a liberdade em tempos de “censuras subtis”, Pedroso faz corresponder a cada uma das letras de B-o-u-d-o-i-r (alcova ou quarto de senhora, especificamente destinado para receções intimas) uma visão sobre os sete diálogos do texto original. Com muito humor e irreverência, num ambiente de cabaret, e emprestando ao elenco fortes traços de burlesco, o público acompanha a viagem iniciática, sem limites nem tabus, que a ingénua Eugénia (Margarida Bakker) empreende sob condução da “voluptuosa” Senhora de Saint-Ange (Maria João Abreu) e do “cínico” Dolmancé (João Gaspar), personagens que se afiguram como representações modelares do pensamento do controverso autor francês do século XVIII.

Mais de dois séculos depois da publicação (clandestina) de A Filosofia na Alcova, poderá parecer estranho classificar Boudoir – 7 Diálogos Libertinos como um objeto de enorme coragem artística. O certo, é que o é, sobretudo quando se desenha crescentemente a perceção de que o sonho presente de “um mundo plural e diverso vai sendo cada vez mais ameaçado”.

Enquanto espetáculo que pretende celebrar “a liberdade do corpo e do pensamento”, haverá certamente quem leve a mal a crueza da linguagem, quem se sinta vilipendiado ou até ofendido na sua suscetibilidade quando vir e ouvir aquilo que durante duas horas os “libertinos” têm para contar… e mostrar. Mas, como nos diz Martim Pedroso, “a arte serve para pensar, para seduzir e provocar”. E, ainda pior andará o mundo, se assim deixar de o ser.

Como é que o fado entrou na tua vida?

Isto vem de família, tenho o sangue do fado a correr-me nas veias. Costumo dizer que nem sei bem quando é que começou, porque vou a casas de fado desde os três anos. Lembro-me de, com seis ou sete anos, ouvir discos de fado em casa da minha tia (a fadista Joana Correia). Com oito ou nove anos comecei a passar as letras para um caderno para decorar o que a minha tia cantava. Aos 13 anos entrei na Grande Noite do Fado. Venci e aí tive a certeza de que era isto que queria para a minha vida.

Essa participação na Grande Noite do Fado foi um momento de viragem?

As pessoas que me rodeavam sempre me incentivaram para continuar, mas sim, fez-se um click, soube que era mesmo isto que queria.

Comparas muito as casas de fado com o ritual de ir à missa…

Fadista que se preze precisa de ir às casas de fado, porque é onde ele realmente acontece. É onde convivemos com fadistas com mais experiência, é ali que vamos beber o que precisamos para subir ao palco. Para além disso, tem um ambiente mais intimista, estamos mais próximos do público. Gosto muito de estar em palco, é onde me sinto ‘eu’. Sou muito ansiosa, mas quando subo ao palco isso desaparece.

O teu álbum de estreia tem merecido rasgados elogios por parte da crítica. Estavas à espera de uma reação tão calorosa?

De certa forma estava à espera de boas críticas, porque sei o trabalho que fiz. Foram três anos investidos neste trabalho. O que mais queria era fazer este disco tal e qual ele saiu, e passar uma mensagem para jovens da minha geração que não ouvem fado. Sinto que as pessoas jovens que vieram agora para o fado e que estão a começar o seu caminho também bebem muito de mim, e isso é incrível. Foi sempre isso que quis, poder ser considerada uma influência. Só tenho 25 anos, embora muita gente me ache mais velha…

Achas que isso está relacionado com a ideia que muita gente tem de que o fado é para pessoas mais velhas?

As pessoas não sabem o que é a essência do fado, não conhecem… É importante que quem vive no meio, como eu, consiga mostrar um pouco da história. Há um grande desconhecimento em relação à história do fado. Costumo dizer que não fui eu que escolhi cantar fado, foi o fado que me escolheu, isso é notório no meu percurso. Além de gostar muito de cantar, o meu grande objetivo era passar uma mensagem, despoletar esta curiosidade nas pessoas: procurem saber mais sobre o fado porque há muito para saber!

O facto de o fado ser, essencialmente, uma música com uma tradição e um ritual associado, afasta as gerações mais jovens?

Penso que esse afastamento se deve à imagem que o fado sempre teve. As roupas pretas, pesadas, os vestidos compridos, as letras tristes… Lembro-me de ser miúda e de algumas pessoas me dizerem não era música para a minha idade. Hoje em dia, o fado tem uma roupagem muito mais leve. As letras são mais atuais, os fadistas já se apresentam de outra forma… Essa mudança era necessária, mas claro que há marcas muito tradicionais que se devem manter. Acho que a roupa não define o fadista nem ninguém que cante. Não me faz confusão se a pessoa canta de saia ou de calças, mas há um certo cuidado que se deve ter. Cada pessoa deve ter a sua identidade e o seu gosto próprio. O fado está na voz, não está na roupa.

O álbum homónimo da fadista é apresentado a 21 de fevereiro no Capitólio.

 

O disco tem a participação de Diogo Clemente e Ângelo Freire, dois nomes pesados do fado. Como chegaram a esta colaboração?

Já nos conhecemos há muito tempo e há muito que eles me diziam que, quando chegasse a altura, queriam gravar um disco comigo. O meu crescimento foi feito ao lado deles. A determinada altura senti necessidade de deixar alguma coisa minha, um registo. Acho que é necessária uma certa maturidade e alguma experiência, não só no fado mas na música em geral. É preciso ter uma história para contar às pessoas. Tenho 25 anos, tenho muito ainda para viver, mas senti que já estava preparada para fazer um disco. Já tenho 15 anos de fado, estava na altura certa. Comentei isto com o Diogo e ele também achou que tinha chegado o momento.

Escolheste dar o teu nome ao primeiro disco. Porquê?

Primeiro, porque queria dar-me a conhecer como Sara Correia. Depois, porque a escolha dos fados tradicionais são quase autobiografias minhas, de histórias da minha vida. Pensei que não fazia sentido estar à procura de um mote para este disco. O mote sou eu, Sara Correia, tal e qual como sou.

Compararem-te à Amália é o maior elogio que te podem fazer?

É, mas é também uma grande responsabilidade. Não gosto de comparações. Tenho as minhas referências, como qualquer pessoa. Para mim, a D. Amália Rodrigues é a essência do fado, o seu expoente máximo, desde sempre que a canto. Gravei, inclusivamente, o Fado Português, que pensei várias vezes se devia gravar ou não.

Estavas com receio?

Estava, porque há canções que é impossível fazer melhor. Aquilo que a D. Amália fez é perfeito, o que coloca a fasquia altíssima, mas pensei: “porque não?”. Da mesma forma que gravei fados de outros fadistas que admiro muito.

No dia 21 de fevereiro apresentas este disco no Capitólio. Como vai ser este espetáculo?

Vou fazer umas coisas novas, estou a preparar umas surpresas, mas sempre à volta do cantar fado claro, que é aquilo que sei fazer.

O que te traz o futuro?

Neste momento estou focada neste disco, mas já tenho ideias para o próximo, porque isto não pode parar… Agora estou focada em promover o disco e em dar concertos. Já tenho algumas coisas marcadas, irei novamente atuar no Caixa Alfama, em breve vou estar na Noruega e em Viena de Áustria… É engraçado que o público lá de fora gosta muito de fado. Mesmo não percebendo o que estamos a cantar, é quem mais pede os fados tradicionais, o fado puro e duro.

Qual é a sala de sonho para um fadista?

Tenho muitos sonhos, mas não tenho nenhum palco de sonho. O meu sonho é cantar em palcos, seja onde for, seja para que público for. Esse é o meu sonho: poder cantar para os outros. Conhecer outros artistas, outras culturas musicais.

É já um clássico ver a Companhia do Chapitô a brincar aos clássicos (perdoem-nos a redundância!). Desta feita, e depois de uma versão “sonoro-teatral” de Macbeth, o irreverente coletivo decidiu lançar-se uma vez mais a Shakespeare, agora com Hamlet. É certo não se tratar de uma estreia absoluta porque, entretanto, esta visão muito peculiar da peça andou de armas e bagagens em digressão, depois de em 2018 ter esgotado as lotações da Tenda do Chapitô numa primeira temporada em Lisboa.

Como nos explica José Carlos Garcia, coencenador com Cláudia Nóvoa e Tiago Viegas, o que o público vai ver não é uma remontagem do espetáculo estreado há cerca de um ano, mas sim “uma versão depurada e constantemente trabalhada do projeto original”. Aliás, as produções da companhia têm esse ADN: “são sempre muito dinâmicas e ganham constantemente tempos novos”. Algo que resulta do aprofundamento do “trabalho coletivo que começa de um modo completamente caótico e depois vai ganhando forma”, até atingir esse ponto de rebuçado que tem vindo a conquistar o público, a crítica e um palmarés internacional invejável desde 1996, ano de fundação da companhia.

O incansável e versátil elenco durante o conturbado velório do pai Hamlet.

 

Neste frenético Hamlet do Chapitô, o Reino da Dinamarca dá lugar à Hamlet Tower, sede de uma grande multinacional, e para além da trama já sobejamente conhecida, protagonizada por esse “rapaz às direitas” conhecido mundialmente por Hamlet (aqui, natural herdeiro de um império financeiro, não fosse a vilania do tio usurpador), tudo vai tentando ser o mais fiel possível ao texto original de William Shakespeare. Só que o mundo não para, e por entre os sinais do tempo, lá surgem cenas de luta de classes ao som d´A Carvalhesa ou uma festa de casamento num roof top “ao ritmo disco dos Bee Gees”. E tudo a cappella, ou não fossem os indomáveis, e devidamente engravatados, Jorge Cruz, Susana Nunes, Patrícia Ubeda e Tiago Viegas, atores habilitados para isso e muito mais, como poderá testemunhar a cada noite, entre 24 de janeiro e 24 de fevereiro, no palco mais animado da Costa do Castelo.

Posted by Chapitô on Tuesday, 8 January 2019

A cada peça de Annie Baker, uma sensação de familiaridade envolve o espectador e amarra-o às pessoas que o habitam. “Pessoas” parece ser o termo certo, ao invés de “personagens”, porque, nas suas alegrias e fracassos, estão seres humanos comuns, sem grande história, sem qualquer papel determinante na vida familiar ou comunitária. São, como aponta Pedro Carraca, que pela segunda vez dirige uma peça da autora norte-americana, “pessoas das margens”, e que ai sempre permanecem.

Já em O Cinema (peça escrita posteriormente a Os Aliens) elas estavam lá. Gente comum lutando no seu posto de trabalho pela subsistência, muitas vezes não olhando a meios (e aos outros) para o conseguir, capazes certamente do pior, mas também habilitadas para gestos de extrema generosidade. Nesta peça, o conflito é, talvez, mais subtil e mais íntimo. Os dois homens e o rapaz que a protagonizam não disputam propriamente o lugar do outro, mas lutam consigo mesmo para encontrar um lugar no mundo.

Os Aliens passa-se nas traseiras de um cafezinho de uma pequena cidade da Nova Inglaterra, no norte dos Estados Unidos. Em torno de uma mesa de campismo, KJ (Afonso Lagarto) e Jasper (Pedro Caeiro), dois homens chegados aos 30 anos, afundam-se no tédio das suas existências. Fumam cigarros atrás de cigarros; KJ canta com os olhos postos no céu enquanto beberica um chá de cogumelos psicadélicos e Jasper lamenta-se do abandono da namorada, consolando-se no romance que está a escrever. Entretanto, surge Evan (Pedro Baptista), empregado do café, anunciando que aquele espaço passou a ser de uso exclusivo dos funcionários. Apesar das ordens expressas do patrão, o jovem depressa se percebe impotente para enfrentar os rotineiros visitantes, acabando por estabelecer, sobretudo com Jasper (“um génio”, considera Evan), uma forte empatia.

Afonso Lagarto e Pedro Caeiro são KJ e Jasper neste novo espetáculo dos Artistas Unidos.

 

Para além destas “pessoas”, a força humana que perpassa por Os Aliens (um dos nomes de uma banda que outrora KJ e Jasper tiveram, retirado de um poema de Charles Bukowsky, grande poeta das “margens”) está presente nos silêncios tornados tão preponderantes quanto os diálogos – “há muito silêncio na vida real”, destaca Baker numa entrevista. E depois há ainda aquele espaço confinado onde decorre a ação, como se tudo se passasse não nas traseiras do café, mas nas traseiras da vida, no recalcamento de sonhos caídos e de outros novos, mas tão improváveis: o de Jasper em ser reconhecido como um grande romancista ou o de KJ em abandonar definitivamente aquela cidadezinha.

Vendo bem, para Jasper e KJ, o mundo está sempre fora de cena – emerge quando explodem os fogos do 4 de Julho (feriado que assinala a Independência dos Estados Unidos) e quando a porta que dá acesso ao interior do café é cruzada por Evan, e só por ele. Por isso, mesmo antes que a peça termine, rendido e num tom de otimismo sincero, ouvimos KJ dizer ao rapaz:  “tu vais longe, meu.”

Obra-prima da dramaturgia norte-americana, Do Alto da Ponte conta a história de homens que, citando o texto, ganham a vida “nas docas que se estendem de Brooklyn até ao quebra-mar, onde o oceano começa”. Objetivamente, a peça de Arthur Miller (1915-2005) narra o drama de Eddie Carbone, “um bom homem”, daqueles que “trabalhava nas docas quando havia trabalho, trazia o dinheiro para casa e vivia”. Um dia, a vida normal do estivador Eddie altera-se radicalmente com a chegada de dois primos da mulher, clandestinos, provindos de Itália. Sobretudo quando um deles começa a cortejar Catherine, a sua jovem e adorada “sobrinha”.

“A peça é como que um romance intenso entre várias personagens, com um lado folhetinesco muito cativante”, considera Jorge Silva Melo. A genialidade de Miller está precisamente na “facilidade narrativa, carateristica que conquista o público”. Mas não só. O que é arrebatador no texto são as “personagens dúbias e esse conflito trágico entre duas leis: a da família – siciliana, imigrante e clandestina – e a formal – a americana, liberal e democrática.”

Estreada inicialmente em 1955 (numa encenação de Martin Ritt), em plena “caça às bruxas” do MacCarthismo, esta tragédia moderna sobre amores proibidos, suspeição e delação começou por ser um rotundo fracasso na brilhante carreira do autor de Morte de um Caixeiro Viajante e As Bruxas de Salém. Um ano depois, já reescrita, seria encenada em Londres por Peter Brook, passando a figurar de pleno direito entre as maiores obras dramáticas do século XX.

Assim, mais de meio século passado sobre a estreia, Silva Melo e os Artistas Unidos chegam a este Miller, àqueles anos 50 em que despontava o rock’n’roll, àqueles estivadores e migrantes – os “semi-cidadãos” nas palavras do encenador –, àqueles que buscavam um futuro na “garganta de Nova Iorque que engole toda a tonelagem do mundo”, como escreveu o próprio autor.

Do Alto da Ponte

Traições, contradições, cegueira, leis antigas, leis e morte, sangue de gente pobre. Em palco, fala-se de emigrantes, de escolhas difíceis, dos anos 50, dos dias de hoje. É Do Alto da Ponte, de Arthur Miller / Artistas Unidos, uma encenação de Jorge Silva Melo.No São Luiz Teatro Municipal de 10 a 27 de janeiro.Bilhetes aqui: www.teatrosaoluiz.pt/espetaculo/do-alto-da-ponte

Posted by São Luiz Teatro Municipal on Tuesday, 8 January 2019

O elenco e

as personagens

Apesar de ter visto várias encenações da peça, sobretudo em Inglaterra, Jorge Silva Melo confessa que nunca imaginou encená-la. “Até hoje, quando percebi que os meus atores tinham a idade certa para a fazer”.

Optando pela total depuração e por uma quase austeridade cénica, o encenador recusou na sua montagem de Do Alto da Ponte toda “a tralha naturalista”. Por isso mesmo coube ao “corpo dos atores desenhar uma cenografia para o espetáculo”. Contando nos papéis centrais com artistas que tão bem conhece, o que importa verdadeiramente experienciar a cada récita são essas “personagens que perturbam, comovem e intrigam”. Como nota introdutória à peça, convidámos os atores a fazerem uma breve apresentação sobre elas.

Américo Silva

Eddie

O Eddie Carbone é um estivador com uma vida relativamente estável, embora nem sempre tenha trabalho, que um dia vê a rotina ser perturbada com a chegada de dois primos da sua mulher Beatrice. Em crescendo, a presença deles vai começando a destabilizá-lo, e as coisas complicam-se quando um deles, Rodolpho, começa a cortejar a sobrinha da mulher, uma jovem de 17 anos (e que ele criou como filha) por quem nutre algo mais do que um amor filial. Diria que o Eddie é  um homem que não se conhece a si próprio, e isso acaba por levá-lo ao desespero e a um destino trágico.” 

 

Joana Bárcia

Beatrice

A Beatrice é uma dona de casa, casada com Eddie, que devido à morte prematura da irmã, cria a sobrinha, Catherine, como filha. Percebe-se que, apesar de uma aparência submissa muito típica da mulher dos anos 50, ela conhece bastante bem o marido e vai antecipando as desgraças que estão prestes a ocorrer. Aliás, ela adivinha o protagonismo da sobrinha na vida de Eddie e tenta contrariar isso, lembrando o quanto precisa de que o marido volte para ela. Considero-a uma mulher de garra e muito verdadeira.”

 

Vânia Rodrigues

Catherine

Para a Catherine chegou a hora de ser mulher. Ela é uma jovem de 17 anos movida pela dúvida, dividida pelo conforto da família e o desejo de emancipação, pelo afeto do tio que a criou e a descoberta do primeiro amor… E vai ter de encontrar um caminho e fazer escolhas. É uma personagem que noite após noite me faz descobrir coisas só minhas.”

 

André Loubet

Rodolpho

O Rodolpho é um imigrante ilegal, um jovem que pinta o cabelo de louro, que gosta de cantar e dançar e que sonha estabelecer-se num país novo, que lhe permita cumprir os sonhos. Vai apaixonar-se pela Catherine e entrar em conflito com Eddie, que o acusa de andar apenas atrás de um passaporte. Mas, apesar de toda a hostilidade a que vai sendo sujeito (até porque ele não respeita propriamente os padrões de masculinidade vigentes naquela época), é sempre um personagem vivo, alegre, pacificador e até bastante ponderado.” 

 

Bruno Vicente

Marco

Ao contrário do irmão Rodolpho, o Marco chega à América como ilegal para trabalhar, juntar dinheiro e voltar para a Sicília natal, onde o esperam mulher e três filhos famintos. É um tipo forte, crente nas tradições ancestrais da honra e que não poderá perdoar a traição.” 

 

António Simão

Alfieri

O advogado Alfieri tem uma enorme ambivalência na peça. Ele é simultaneamente personagem – o advogado a quem Eddie recorre a dado momento e que o reconhece como um homem bom, simples e trabalhador – e narrador, como se fosse o coro num paralelismo à tragédia grega. Ao mesmo tempo, é ele quem transmite a opinião do público perante aquilo que está a ver e é quem faz a ponte entre o passado e o futuro, o imigrante e o cidadão americano. Ele é, muito provavelmente, a representação do próprio Arthur Miller.”

LOUIE LOUIE (Escadinhas do Santo Espírito da Pedreira 3)

A loja de Lisboa surge em 2007. Já existia uma Louie Louie no Porto. Jorge Dias era sócio dessa loja e também tivera quota na Carbono. A Louie Louie considera-se uma alternativa às megastores. O vinil veio representar uma salvação para as lojas do género. O substancial aumento do turismo em Lisboa também. Os estrangeiros compram mais, mesmo que em quantidades que levam em conta a viagem de regresso. Jorge Dias distingue três tipos de cliente: o que só compra discos novos, o que só compra usados, e aquele que procura um disco em particular e está-se nas tintas se é novo ou usado. Enquanto falávamos tocaram na loja o Homogenic de Björk e o primeiro álbum homónimo de Caetano Veloso. Da música editada em 2018, a casa recomenda a banda-sonora de Thom Yorke para o remake de Suspiria e o surf-pop com boa onda dos Khruangbin (Com Todo el Mundo).

FLUR (Avenida Infante D. Henrique, Armazém B, loja 4)

A Flur existe desde 2001 e mantém a mesma morada próximo da discoteca Lux Frágil. A loja valoriza a familiaridade que criou com os clientes que nunca trocaram a compra de discos na Flur pelo comércio online. A Flur tem também um site que funciona sobretudo como montra e que juntamente com a newsletter semanal é a única promoção que fazem. Os discos de vinil representam o dobro da faturação relativamente ao CD. Novos custam sensivelmente o dobro do preço também. A música que se escutava na loja naquele momento pertencia ao disco Izlamic Songs, de Muslimgauze. Na altura de escolher discos importantes editados em 2018, Zé Moura, responsável da Flur, referiu o álbum Belzebu, dos Telectu, e Taipei Disco, com inéditos do projecto DWART, ambos com o selo Holuzam, editora muito recente que pertence aos três atuais sócios da Flur.

VINIL EXPERIENCE (Rua do Loreto 65)

O espaço corresponde à designação de sobreloja: “pavimento, geralmente de pé-direito baixo, que fica entre a loja ou rés-do-chão e o primeiro andar”. Na prática é como se José João (Jota) nos recebesse numa divisão da própria casa. Os discos encontram-se de algum modo ordenados mas de certeza que só o responsável consegue localizar algo em específico. Fecham dois dias na semana (3.as e 4.as), além dos domingos. Escutámos durante a conversa uma banda de tributo a Jimi Hendrix, The Purple Fox, e os modernos psicadélicos King Gizzard & the Lizard Wizard. Jota também puxou a brasa à sua sardinha no momento de escolher um disco recente que o tenha marcado: é que o EP 909DemocrashDrug dos portugueses Democrash é edição com selo partilhado pela Raging Planet e pela Vinil Experience.

GLAM-O-RAMA (Rua do Viriato 12)

A Glam-O-Rama foi a porta de entrada de Luís Lamelas em Lisboa. Há 4 anos isso tornou-se realidade. Há menos tempo conseguiu negociar com o proprietário do espaço um valor realista para a renda e a Glam-O-Rama mudou-se para onde antes tinha sido a VGM. A loja promove ainda a apresentação de discos, sessões de autógrafos e concertos acústicos. Conversámos com ele no começo do trabalho e a loja estava em silêncio. Momentos depois já se escutava o surf-rock instrumental de Head Shrinkin’ Fun dos Bomboras. A Glam-O-Rama fatura aproximadamente o mesmo entre CD e vinil; o CD usado está a recuperar terreno por ser mais barato. A conversa termina com a escolha da reedição do álbum A Wind of Knives dos Zygote como um disco importante de entre os muitos que Luís Lamelas ouviu recentemente.

CARBONO (Rua do Telhal 6B)

A Carbono foi a primeira loja de discos usados a surgir em Portugal, corria o ano de 1993. Aquilo que logo impressiona quem entra no espaço da Rua do Telhal é a sua dimensão. Podemos circular à vontade embora estejamos cercados por discos a cada canto e no centro da loja. E há mais material para ver e comprar no rés-do-chão. Para o responsável da Carbono, o vinil está na moda. Os particulares que guardam as boas edições não querem vender e o mercado é cada vez mais atravessado por reedições que não têm o mesmo valor. Também nos diz que qualquer loja por regra vende mais CD que vinil. O preço tem um papel decisivo na equação. A música que se ouvia pertencia ao “bootleg” With your host Bob Dylan 2007/2008. O disco de 2018 que João Moreira escolheu para nós foi Knock Knock, de DJ Koze.

TABATÔ (Rua Andrade 8A)

Entra-se na cooperativa Crew Hassan, desce-se umas escadinhas e damos com a Tabatô. O responsável é o francês Bastien que visitou Portugal em 2010, para fazer uns trabalhos como DJ (world music, reggae), e voltou para ficar. A loja abre em 2015. Os clientes procuram discos raros, música africana, dos PALOP, e recebe muita gente de França, Alemanha e Holanda. A Tabatô fecha aos fins-de-semana e isso talvez explique que segundas e sextas-feiras sejam os dias de maior afluência. Quando falámos com Bastien a loja estava a minutos de abrir e a música chegava do andar de cima onde uma rádio passava The War on Drugs. Bastien escolheu para nós, entre as suas descobertas mais recentes, os álbuns A Regra do Fogo, de Luís Cília, e o maxi-single muito raro do cabo-verdiano Vera Cruz Pinto (funaná).

DISCOLECÇÃO (Calçada do Duque 53)

Após permanência em três outros espaços da cidade, a Discolecção fixou-se na Calçada do Duque. O espaço estava cheio. Escutava-se “a plenos pulmões” The Bracknell Connection, do Stan Tracey Octet, jazz britânico dos anos 1970. Vítor teve sempre e exclusivamente vinil, mas agora podemos encontrar numa área nobre da Discolecção dezenas de CD que em nada divergem do critério geral. É cada vez mais difícil encontrar material desta qualidade em particulares. Vítor continua a deslocar-se à feira de Utrecht que diz ser a maior e mais importante para este mercado. Confia no material exposto, no efeito surpresa e na capacidade de fazer regressar os que ali passam e compram. Escolhe de entre as últimas coisas que o surpreenderam, A Meditation Mass (1974) dos germânicos Yatha Sidra, e Your Daily Gift (1971) dos dinamarqueses Savage Rose. Ambos no género que Vítor Nunes mais aprecia, o rock clássico e suas variantes.

A Ana é licenciada em escultura, mas dedica-se ao canto. Procurando um paralelismo, podemos dizer que cantar ópera é modelar uma personagem em palco através do canto e da representação?

Podemos sim. É também um trabalho de criação. Dentro da interpretação temos um espaço enorme de criatividade para explorar. Se houve algo que retive do passado da escultura e da minha passagem pelas Belas-Artes foi o de ter criado as ferramentas suficientes para alimentar a imaginação que é necessária em ópera e em concerto. Até mais em concerto, porque na ópera temos um contexto que nos ajuda, no concerto estamos sozinhos. Precisamos de imagens e de experiências que nos alimentem essa imaginação e as Belas-Artes deram-me esse vocabulário de imagens tão importante para contextualizar, para me por na pele do “outro”. No fundo, par entender o “outro” e também para melhor me entender.

Não existe ainda a tendência para valorizar um cantor de ópera pelas qualidades vocais, mais do que pelo talento dramático?

Na ópera, desde há bastantes anos, o papel do encenador na escolha do elenco é cada vez mais forte e exige-se cada vez mais ao cantor que, para além da voz, tenha uma presença e saiba encarnar as personagens. Existe um grande poder dos encenadores no sentido de terem alguém talhado para o papel e, por vezes, estão até prontos a fazer algumas concessões musicais em prol da sua ideia da personagem.

Especializou-se no repertório barroco. Porquê?

Esteticamente, é o repertório com que mais me identifico. Quando me iniciei a ouvir música clássica, ouvia Bach, Haendel. Mas também houve um elemento casual porque quando comecei a trabalhar foi com orquestras barrocas e fui-me entusiasmando com o repertório. E há tanta coisa por fazer que nunca foi feita e por descobrir na música barroca. E partir de um repertório quase virgem permite uma criação maior e menos sobrecarregada de referências. O barroco tem uma liberdade que não encontramos nos outros estilos e eu gosto desse trabalho de completar uma partitura que não está terminada, que dá espaço para escolher uma interpretação e até selecionar os instrumentos com que tocamos.

“O barroco tem uma liberdade que não encontramos nos outros estilos e eu gosto desse trabalho de completar uma partitura que não está terminada”

 

No prefácio de Alceste, Gluck propunha-se reformar a ópera tornando-a num verdadeiro drama musical. Que renovação foi esta?

Foi compor a música em função da poesia, do texto. Sem recurso ao artifício, propondo um corte com alguma estrutura previsível do Barroco e alguma permissividade e virtuosismo dos cantores. Gluck queria abolir os excessos em prol de uma linha depurada que fosse direta à emoção. Cantar Gluck exige uma depuração da linha vocal e um lirismo ausente do Barroco.

Fale-nos de Alceste, a personagem que vai interpretar. Como a definiria?

A Alceste é uma mulher que se sacrifica pelo marido. Baseada no peso das interpretações da Alceste nos anos 50 e 60, tinha a ideia de uma heroína determinada e forte que enaltece a sua coragem e toma as rédeas do destino nas suas mãos,. Porém, quendo comecei a ler o libreto apercebi-me que a personagem é mais do que essa estatuária, essa rigidez. Entendo-a como uma anti heroína. Alguém, que não é uma heroína por natureza, mas que faz aquilo que deve fazer e acha que está certo. Toma a opção de se sacrificar como ultima saída. É, afinal, e isso é muito nítido na partitura, uma personagem que está sempre a bascular entre o medo e a coragem. É isso que a humaniza e que a faz avançar. No fundo, é uma personagem com uma certa fragilidade, apesar de toda a sua força e determinação.

Que desafios apresenta este papel?

É um papel muito tenso. Trata-se de uma personagem emocionalmente muito forte e o desafio é saber encontrar o equilíbrio perfeito entre o trabalho de atriz e o trabalho vocal.

Canta a Despina e disse que gostaria de interpretar a Suzana de Mozart. São papéis ligeiros que exigem uma grande vivacidade. Correspondem a outra faceta do seu temperamento?

Sim. Apesar de me sentir muito próxima da Alceste, de possuir uma natureza que me permite abordar este tipo de drama, a verdade é que eu sempre desempenhei papéis ágeis, vivos, picantes, jovens. Esses são até os papeis que me aparecem mais. A Alceste não é um papel que tenha a oportunidade de fazer todos os dias.

Desta nova encenação de Graham Vick, que aspecto gostaria de realçar?

A forma como aborda a personagem. Fui convencida a fazer o papel porque ele viu em mim a capacidade de o fazer, o que não é evidente para a minha voz. A ideia que ele manifesta de uma Alceste que não é necessariamente forte, mas que possui um lado frágil e vulnerável é o que me parece mais interessante e que, justamente, coincide com a visão que eu tenho.

Como convenceria alguém que nunca assistiu a um espectáculo de ópera a vir ver Alceste?

Para assistir a um espectáculo de ópera é preciso vir com disponibilidade para aceitar este tipo de linguagem. E no caso da Alceste, de aceitar a experiência de conviver com uma personagem teatralmente muito forte. Depois é preciso curiosidade, porque o tema do sacrifício, nesta perspetiva, não é muito comum. Mas, a música de Gluck vai direita à emoção, o que torna esta ópera muito comovente. Afinal, é isso que esperamos quando vamos assistir a um espectáculo, de nos sentirmos tocados, emocionados. Essa é, só por si, uma razão valida para vir ver esta Alceste.

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