Se a literatura e a poesia portuguesa são reconhecidas internacionalmente, porque será que a dramaturgia não o é? Estaremos mesmo condenados à opinião de que existe “um atraso crónico do teatro português”? Questões como estas serviram de premissa ao coletivo Teatro Praga para explorar no teatro português motivos para compreender o porquê de algumas opiniões e constatações. E nada melhor do que pegar em 10 peças da dramaturgia nacional e compor um Worst of (que é como quem diz “as piores 10”).

“Consideramos este espetáculo um lamento celebratório por não termos um Shakespeare, um Molière, ou por não termos tido em Portugal autores como os do ‘século de ouro’ em Espanha”, explica Pedro Penim. Sem medos nem receios de afrontar o cânone, os Praga abrem este seu Worst of com – “oh tamanha heresia”, dirão alguns – Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett.

Ao elenco habitual do Teatro Praga, juntam-se Rogério Samora, São José Correia e Márcia Breia.

 

É o primeiro momento, com os atores habituais dos Praga a entregarem-se, sem reservas, a duas cenas emblemáticas de uma das peças mais celebradas da dramaturgia nacional, enquanto fora do diorama, por onde há-de desfilar o restante conjunto de outros “tesouros” pouco abonatórios da qualidade da dramaturgia nacional, um entediado Rogério Samora, acompanhado de São José Correia, Márcia Breia e Vítor Silva Costa, esgrimem frustrações sobre as impotências do teatro português.

A Garrett, seguem-se outras: o celebrado Felizmente há Luar, de Stau Monteiro; o Figado de Tigre, de Francisco Gomes de Amorim; ou o Monólogo do Vaqueiro de Gil Vicente. E ainda excertos de Bernardo Santareno, Alfredo Cortez, Correia Garção, Júlio Dantas, André Brun… E, como o mal é geral, ultrapassa o curso dos tempos e galga visões e perspetivas, o Teatro Praga não se exclui deste top 10 do pior. Em bom português, “tínhamos que atolarmo-nos na merda e não ficar impunes!” Por isso, a peça conclui-se, precisamente, com a própria peça dos Praga.

Haverá salvação para o teatro português? Pedro Penim e Vieira Mendes olham-se e esclarecem: “O teatro não tem de ser todo bom e assumir isso pode ser uma experiência libertadora”. Que se liberte então, sem concessões nem preconceitos, esta “grande merda” que é o teatro português.

Numa cidade costeira do norte de África, um homem europeu seduz uma jovem mulher local. Ele promete levá-la para lá de todo o mar que se lhes depara; ela deseja percorrer com ele tudo o que fica para além daquele mar. No entanto, como numa tempestade que subitamente emerge, algo de trágico estará preste a acontecer.

Pela primeira vez, a peça Retrato de Mulher Árabe que Olha o Mar do autor italiano Davide Carnevali é representada no estrangeiro, numa produção dos Artistas Unidos, encenada por Jorge Silva Melo. Para o encenador, o texto, do qual assume gostar particularmente, é “uma versão de Madame Butterfly e das odaliscas de Matisse”, “uma história típica do ‘orientalismo’” (com Eduard Said bem presente), onde o autor introduz “tantos dos nossos dramas de agora”, nomeadamente o medo do outro e a relação entre culturas distintas.

Jogando com subtilezas e pontuais ambiguidades para caracterizar os seus protagonistas, Carnevali recusa apresentar uma visão estereotipada da mulher “árabe” (ela insurge-se recorrentemente contra ser assim considerada, denunciando mesmo a ignorância dos estrangeiros) e, ao mesmo tempo, do próprio homem europeu. Ela rejeita, precisamente, o padrão da “mulher árabe”, afirmando-se “livre” e “vinda de uma família de visões amplas”; ele é, como indica Silva Melo, “um homem dividido, frágil, inseguro”, independentemente de sustentar “o fantasma sexual da odalisca”, que lhe induz uma certa virilidade eurocêntrica e, consequentemente, colonialista, de superioridade sobre os locais.

Esta história de paixão e vingança contada em dez cenas é, também, uma reflexão sobre a incomunicabilidade. Como refere a tradutora da peça para francês, Caroline Michele, “a questão da língua, omnipresente [Carnevali, no texto original, aponta que os personagens “falam línguas diferentes, que não conhecemos, não conseguimos distinguir”], é consequentemente colocada, desenvolvida, e com ela a da tradução, dos seus pontos fortes e das suas limitações: porque todas as personagens lutam e jogam com a arma que é a sua língua, o seu dialeto, à vez aproximando-se e afastando-se do outro.”

Para além de Inês Pereira e João Meireles nos papéis principais, Retrato de Mulher Árabe a Olhar o Mar conta ainda com interpretações de Nuno Gonçalo Rodrigues e Margarida Correia. E, para acentuar o mar que separa as margens, Jorge Silva Melo decidiu introduzir várias telas do pintor Pedro Chorão, pois “se há alguém que fale das águas transparentes do sul, é ele.”

Bernardo Santareno

O Judeu

“Ninguém é completamente inocente”. Esta deixa proferida pela personagem do Inquisidor-mor na peça o Judeu, de Bernardo Santareno, podia facilmente ser atribuída à polícia política do Estado Novo. Este texto, um dos mais notáveis da dramaturgia portuguesa, cria um paralelo entre as práticas da Inquisição e as do Regime salazarista. Para tal, serve-se da personagem de Cavaleiro de Oliveira, escritor português de setecentos, defensor da liberdade, convertido ao protestantismo e exilado em Inglaterra, que narra e comenta a acção e interpela directamente os espectadores do século XX. Em 1966, Bernardo Santareno parte do romance homónimo de Camilo Castelo Branco e narra a vida do dramaturgo António José da Silva, mais conhecido como “o judeu”, condenado à fogueira pela Inquisição. O protagonista surge representado como o modelo do artista que diz a verdade contra tudo e todos. E, tal como as comédias do “judeu”, mas num estilo muito diferente, também esta obra notável de Santareno “cavalgou sobre o medo, sacudiu ancestrais fantasmas, poeirou o ódio”.

E-Primatur

 

Bispos e Arcebispos de Lisboa

Bispos e arcebispos de Lisboa apresenta 47 biografias de prelados entre 1147 e o início do século XVIII; os patriarcas a partir de 1716, não incluídos no presente volume, já foram objeto de estudos biográficos. Dirigida pelo investigador do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa, João Luís Inglês Fontes, esta obra monumental propõe uma nova perspectiva sobre a biografia dos bispos que presidiram à diocese de Lisboa, estudando-os na sua relação com o contexto de onde chegaram, origens familiares, percurso de formação, relação com as esferas da administração política e jogos de poder, para além da sua dimensão pastoral, do modo como intervieram nas dioceses. Resultado de quase quatro anos de trabalho de 55 colaboradores, com a coordenação de António Camões Gouveia, Maria Filomena Andrade e Mário Farelo, inclui também a forma como os prelados se fizeram representar ou foram representados: heráldica, tumulária, selos, retratos, os livros que leram, escreveram ou patrocinaram, as obras artísticas de que foram mecenas.

Livros Horizonte

 

Alan Hollinghurst

O Caso Sparsholt

O jovem e atlético David Sparsholt chega a Oxford, em 1940, e a sua presença afeta de forma decisiva os que o rodeiam. Ao longo de três gerações, do início da Segunda Guerra Mundial aos dias de hoje, o presente romance segue a existência desta personagem e a influência pública e privada que exerceu, através de um denso labirinto de histórias cruzadas que unem o seu grupo de amigos da universidade ao seu filho e neta. Mas este romance é muito mais do que isso. Os livros de Hollinghurst remetem para uma certa tradição literária inglesa (Henry James, E.M. Forster, Evelyn Waugh) e constituem, invariavelmente, uma experiência estética inesquecível: o romancista reflete sobre as relações entre passado e presente, memória e realidade, arte e vida, e escreve com requintada erudição sobre pintura, arquitetura, design, decoração e antiguidades, música e literatura. E, tal como nos romances anteriores, também o tema da sexualidade ocupa um lugar central nesta obra, tema a que o autor associa a tragédia do envelhecimento: a beleza passa, o corpo definha, mas o desejo permanece.

Dom Quixote

 

Gonçalo M. Tavares

Breve Notas Sobre a Literatura-Bloom

Este livro fascinante assume-se como “dicionário literário”. Porém, na entrada correspondente a dicionário lê-se a seguinte definição: “Toda a literatura-Bloom é feita contra os dicionários. (…) Qualquer palavra poderá sempre significar uma outra coisa”. O autor também escreve que é “no espaço vazio entre as palavras e as letras que a realidade-Bloom existe”. Segundo Borja Bagunyà, escritor e ensaísta catalão que assina o posfácio desta edição, “a ética-Bloom implica tanto o escritor como o leitor (…) Daí que tenha de assumir necessariamente, se quer ser consequente, a forma de dicionário: os conceitos estão aí, mas sob a ordem arbitrária do alfabeto. É a nós que cabe pô-los em relação, submetê-los a uma sintaxe, responderes-lhes. Se tudo correr bem, cada uma destas constelações – cada uma destas frases, destes lançamentos de dados – conformará um livro-Bloom”. Lembremos a definição de livro de Gonçalo M. Tavares: “O livro deverá ser um perigo encadernado. Paginar o perigo não implica organização, é apenas delicadeza”.

Relógio D’Água

 

Jordan B. Peterson

12 Regras para a Vida

Jordan B. Peterson cresceu na dureza dos desertos gelados da Alberta do Norte (Canadá) e terá sido também daí que vem o seu pragmatismo aplicado a todas as situações. Começou por se notabilizar em grupos de discussão na internet e de uma popularidade crescente decorreu o convite para escrever este livro. Professor catedrático de Psicologia, desenvolveu alguns dos tópicos que lhe tinham trazido mais comentários e elaborou 12 Regras Para a Vida – Um Antídoto Para o Caos. Baseando-se por vezes em exemplos da Bíblia ou do mundo natural, Jordan B. Peterson refere-se a atitudes corporais e comportamentais que despertam no leitor o sentido da responsabilidade firme, primeiro dirigido a si próprio, mas que produzirá igualmente efeitos ao redor. Conta ainda episódios da sua vida, dá exemplos que testemunhou directamente (em situações familiares, por exemplo), sem conceitos elaborados ou exposições esotéricas. Muitas práticas são baseadas no que tradicionalmente se aplicava e hoje é posto em causa com a relativização do conceito moral de ordem. Jordan B. Peterson recentra a nossa atenção no essencial à medida que a leitura avança. RG

Lua de Papel

 

Portugal Contemporâneo

J.P. Oliveira Martins

Oliveira Martins traça, nesta obra que culmina no período da Regeneração (1851-1868), um retrato da guerra civil que dilacerou o país na sequência da morte de D. João VI, conflito que passou à História com o nome mais conhecido de Guerras Liberais, que opuseram absolutistas (os partidários de D. Miguel) a liberais (os partidários de seu irmão, D. Pedro, antigo imperador do Brasil e que em 1826 se aclamou rei de Portugal, como D. Pedro IV). O conflitou lavrou durante 6 anos, mas teve sequelas que resultaram em mais algumas décadas de lutas intermitentes, de golpes e contragolpes, com consequências terríveis para o país, devastado (na sua agricultura e na economia), dividido e endividado (devido aos sucessivos empréstimos pedidos para financiar o reino). Oliveira Martins, figura-chave da historiografia portuguesa, termina a presente obra com uma conclusão que se podia aplicar, mutatis mutandis, a tantos outros períodos históricos nacionais anteriores e também, desgraçadamente, posteriores: “Assim estão as classes que nos governam; e até hoje, força é dizer que o povo não descobriu ainda meio de se libertar delas. Nem descobriu o meio nem demonstrou a vontade. Dorme e sonha? Ser-lhe-á dado acordar ainda a tempo?” Esta edição conta com várias notas e apêndices que ajudam a contextualizar o leitor contemporâneo.

Bookbuilders

 

Catarina Sobral

Impossível

Antes de nós existirmos, há quase catorze mil milhões de anos, o Universo estava contido num minúsculo ponto final. (como este) – Pois é, parece impossível mas foi mesmo assim que tudo começou. Não se sabe como apareceu, mas sabe-se que o Universo teve origem num espaço mais pequeno que a ponta do lápis mais afiado do mundo! Em Impossível, o mais recente livro de Catarina Sobral, explica-se o nascimento do Universo aos mais pequeninos, desde o Big Bang ao aparecimento do homem, através de uma longa viagem entre partículas, estrelas e dinossauros. A autora e ilustradora, que também faz cinema de animação e tem participado em vários festivais, exposições e feiras nacionais e internacionais, já recebeu múltiplos prémios, nomeadamente o Prémio Internacional de Ilustração da Feira do Livro de Bolonha, em 2014, com o livro O meu avô. Agora, Catarina Sobral presenteia os miúdos – e graúdos – com Impossível, criado a partir do espetáculo com o mesmo nome. Dá mesmo para acreditar que tudo começou quando tudo estava no mesmo sítio? Parece impossível! ARV

Orfeu Negro

Começava por perguntar a origem do vosso nome, Danças Ocultas…

A nossa música vive de um instrumento que está muito ligado à dança e ao folclore, a concertina, mas tomámos algumas opções que não estão diretamente ligadas à dança. Diria que a nossa música é mais melancólica, introspetiva. Nesse sentido, a dança está ‘oculta’. Ou seja, o instrumento está associado à dança, mas a música que fazemos não é propriamente ‘dançável’.

Em que altura decidiram começar este projeto?

Começámos muito novos. Aliás, acho que o segredo para a longevidade do grupo é o facto de termos começado tão novos. Acho que as relações mais sólidas que temos são as mais antigas. Começámos a tocar cedo, estávamos ligados a grupos folclóricos e éramos amigos, andávamos na mesma escola. Tocávamos o mesmo instrumento e começámos a juntar-nos para ensaiar. A certa altura o Artur (Fernandes) (que é mais velho do que eu, do que o Filipe (Ricardo) e do que o Francisco (Miguel)) fez a tropa com o Rodrigo Leão. Os dois ficaram amigos e começaram a partilhar gostos e influências musicais. Entretanto o Rodrigo passou uma cassete nossa ao Gabriel Gomes, que era o acordeonista dos Madredeus, e ele achou muita piada e começámos a trabalhar juntos. Foi ele que gravou os nossos três primeiros discos. Tivemos esse empurrãozinho do Gabriel Gomes, que foi muito importante, porque ele tinha acesso aos meios, morava em Lisboa. Nessa altura morávamos no Norte, nem sabíamos o que era um estúdio a sério…

Usar a concertina para criar música que não seja folclórica é um grande desafio?

A música que ouvíamos não era folclore, mas a concertina era o instrumento que sabíamos tocar, era a ferramenta que tínhamos. Lembro-me que nessa altura ouvia música muito alternativa: Joy Division, Bauhaus; o Artur ouvia muito Astor Piazzolla… Esses outros tipos de música começaram a influenciar as nopssas composições. É curioso porque, nessa altura, afastámo-nos um bocadinho da tradição. Às vezes temos algum preconceito em relação às nossas próprias tradições e às dos outros não temos, porque achamos exótico. Foi interessante termos ido ao Brasil fazer o último disco e termo-nos deixado influenciar, de forma tão permeável e tão aberta, pela música popular brasileira. A tradição faz parte de qualquer cultura, e neste disco assumimo-la de uma forma muito descomplexada.

O grupo é constituído por quatro elementos. Têm as vossas funções bem definidas?

Do ponto de vista pessoal sim. Conhecemo-nos muito bem, crescemos juntos, por isso respeitamos muito as nossas diferenças. Relativamente às questões estéticas, no início cada um fazia um bocadinho de tudo, mas fomo-nos especializando cada vez mais. Grosso modo, cada um tem a sua função dentro do grupo.

©Alípio Padilha

O facto de grande parte das vossas músicas não ter acompanhamento vocal faz com que cheguem ao público de forma mais imediata?

A nossa música, por ser instrumental, tem um lado mais permeável, porque a linguagem dos sons é mais universal do que a língua, embora a língua também o seja. O Fado é o estilo musical português que mais exporta, e não é instrumental. Tem depois outras densidades, tanto da guitarra portuguesa, como da interpretação dos cantores, que faz com que passe uma mensagem mesmo quando quem ouve não percebe a letra. Ou seja, nem sempre a língua é uma barreira.

Certamente que é diferente compor uma melodia meramente instrumental e compor para voz…

Sim, é muito diferente. Os contornos melódicos são diferentes, as preocupações são outras. Começámos esse processo com a Dom La Nena, uma artista brasileira fantástica. Foi com ela que trabalhámos o formato canção a sério e aí debatemo-nos com alguns desafios. A amplitude da voz, as repetições, determinados contornos melódicos que num instrumento, por serem repetitivos ficam menos interessantes mas na voz não; determinados pormenores que ficam bem no instrumento, mas na voz não… É um desafio muito diferente.

Trabalharam com Jacques Morelenbaum no álbum Dentro desse Mar, que saiu recentemente. Como foi a experiência de gravar no Brasil?

Lembrámo-nos que seria interessante ter alguém de fora, com outras influências. A primeira escolha foi o Jacques Morelenbaum, que não conhecíamos pessoalmente. Escrevemos-lhe, ele já tinha trabalhado com a Carminho e com a Mariza, portanto havia uma ligação a Portugal. Ele aceitou, e então decidimos ir gravar ao Brasil, com músicos que ele conhecia bem. A Dora, a filha dele, canta no disco, bem como a Zélia Duncan. De Portugal levámos as concertinas e a Carminho [risos].

Este ano voltam a atuar no Misty Fest. Como vai ser este concerto?

Vamos ter connosco o Jacques e a Dora Morelenbaum. O Jacques não é um mero convidado. Para além de produzir o disco ele toca em quase todos os temas, ele é que convidou os músicos. O disco é muito dele.

Da restante programação do Misty o que não gostariam de perder?

Tenho grande curiosidade em ouvir o Scott Matthew e a Anna von Hauswolff, sem menosprezo por nenhum outro.

Para além de atuarem em Coimbra, Lisboa, Aveiro e Porto no âmbito do festival, têm mais concertos agendados?

Entre o concerto de Aveiro e o de Lisboa vamos à Filarmónica do Luxemburgo, que é uma sala fantástica. Depois faremos uma tournée pela Alemanha e terminamos em Viena.

Estão juntos há praticamente 30 anos. Que balanço fazem do vosso percurso musical?

O balanço é o de termos feito coisas muito diferentes. Gostaria de salientar o Ballet Gulbenkian, com quem fizemos uma colaboração muito bonita. Inclusive participámos no último espetáculo deles, é algo que nos está no coração, foi muito emotivo. Fizemos coisas muito bonitas, não nos podemos queixar.

Como surgiu a ideia de adaptar o romance Seara de Vento, de Manuel da Fonseca?

Quando preparei o documentário Alentejo, Alentejo, tentei perceber o que podia ajudar a compreender um Alentejo profundo, ancestral, que não só motivava o canto, mas também a maneira de ser das pessoas. Uma das coisas que sempre me impressionou no Alentejo é a maneira cuidada como as pessoas se expressam, o seu silêncio. Na altura do documentário todos me falaram neste romance, Seara de Vento. Quando o li reconheci as questões sociais sobre o Alentejo que estava habituado a ouvir, mas expressas de uma maneira limpa e depurada, mas muito poderosa. Fiquei imediatamente apaixonado por uma das personagens, Amanda Carrusca, e pensei logo na Isabel Ruth para o papel. Foi este o ponto de partida.

Tem afirmado que este é um filme fora de moda. Porquê?

Primeiro o preto e branco não vende. Depois a forma seca da narração é o contrário do mainstream. As minhas inspirações fundamentais estão mais ligadas ao cinema mudo. Embora o filme não seja hermético e difícil, não está construído para a manipulação emotiva através da música, que aqui não tem o papel de conduzir o espetador. Também não há um processo de identificação com as personagens, o espetador está distanciado, sendo levado a interrogar-se sobre o porquê das coisas. Trabalho de uma forma depurada, prefiro contar a história dentro do contexto da época do que transpor a existência do Palma (personagem principal) para a realidade contemporânea, transformando-o, por exemplo, num traficante de droga dos dias de hoje.

Se não existisse referência temporal no filme seríamos levados a pensar que a ação se situa numa data mais remota, numa realidade quase feudal…

A matriz é essa! Essa realidade social não evoluiu com o passar dos séculos. O proprietário da terra nos anos 50 era quem mandava no poder político local, quem mandava na igreja, quem era dono dos homens. Deixar de dar emprego a alguém, num lugar onde se é o único empregador é condenar uma pessoa à morte.

O vento, personagem determinante no romance, quase nunca se ouve no filme. Porquê?

Pensei muito nisso, mas um filme que é inteiramente vento é algo horrível. O Cavalo de Turim, do Bela Tarr, é lindíssimo, mas o barulho do vento é interminável e eu não gosto. Trabalhei com um misturador muito sofisticado que faz os filmes do Kusturica e do Farhadi. Por exemplo, quando a Amanda sobe a encosta existe uma mistura de pelo menos 12 ventos diferentes, o que permitiu uma composição subtil e não exagerada. Pensei muitas vezes no vento e há momentos exteriores em está presente, mas são três ou quatro lugares pontuais, se assim não fosse, acabava por afogar as outras coisas.

Sérgio Tréfaut ©H. Mouco/CML-ACL

A personagem da Catarina Wallenstein, filha do proprietário, revela uma grande ambiguidade. Porquê?

Foi a minha maneira de respeitar a forma como o Manuel da Fonseca escreveu o romance. Existem descrições longas que retratam a atração erótica que a filha do proprietário rural sente pelo Palma. É algo explícito no livro e que tem uma enorme força. Houve aliás duas tentativas de adaptação do livro, em Espanha e nos Estados Unidos, das quais o Manuel da Fonseca se afastou, porque transformaram a história num romance entre a filha do patrão e o empregado. Eu quis manter aquilo que ele transmitia no livro, mas de uma forma mais subtil, mantendo no entanto alguma tensão.

Num elenco de atores veteranos, o protagonista Hugo Bentes não é profissional. Como foi escolhido?

Sou muito intuitivo, tenho uma paixão por caras e presenças. No início pensei: vou contratar o Javier Bardem (risos), mas depois havia uma série de constrangimentos, nomeadamente ao nível da língua e de dinheiro, e essa ideia foi posta de parte. Embora existam atores portugueses extraordinários, não encontraria facilmente alguém que expressasse a terra, o orgulho e a ancestralidade do Alentejo no olhar e na maneira de estar, como o Hugo. Já tinha trabalhado com ele no Alentejo Alentejo e até o escolhi para a imagem do cartaz.

O Alentejo tem sido o seu território de eleição. Porquê este fascínio?

É um Alentejo de que eu gosto e que neste filme tento respeitar dentro da ótica do Manuel da Fonseca. Este Alentejo é visto por um italiano como o sul de Itália, por um sírio como a Síria. Foi algo com que me deparei em vários festivais. Há um denominador mediterrâneo comum e as histórias são arquétipos, são as mesmas no México, no nordeste do Brasil, com algumas nuances apenas.

A circularidade da acção é uma metáfora da ideia “de que nada muda” ou é apenas uma maneira de contar a história?

É uma maneira de contar a história, mas também de criar uma ligação com o espetador pedindo-lhe que se posicione de determinada maneira. Tem como referência a ideia de que embora a narrativa possa ser contada de várias maneiras, a história é sempre a mesma. Talvez não seja impossível mudar, mas mudar é muito difícil. O filme retrata uma época em que ainda não há luta de classes, onde é impossível haver uma resposta à opressão e ao abuso e a única coisa que se gera é uma raiva enorme. Nisto encontro algum paralelismo com a vida contemporânea, onde a maior parte das pessoas que trabalha deixou de ter a possibilidade de se defender, sujeita a uma relação selvagem de abuso, onde cada um se tenta safar.

O trabalho que tem desenvolvido é essencialmente na área do documentário. Considera que há mais liberdade artística na ficção?

Eu sofro muito com equipas grandes, durante uma rodagem ter 50 pessoas às costas é um peso. A liberdade num documentário é infinitamente maior, há um respirar. A responsabilidade na ficção é dolorosa para mim. Acho os documentários tão ficcionais como a ficção, a grande diferença está na produção e não no princípio.

 

 

A Rua General Silva Freire, que tem início nos Olivais Norte e termina na Encarnação, na Rua dos Logistas, serve de ponto de partida a este itinerário. Mais concretamente no resquício do Aqueduto da antiga Quinta de São João da Panasqueira, antigo local de azinhagas e quintas. A política de Obras Públicas do Estado Novo trouxe grandes transformações a este local. Na época, Oliveira Salazar pretendia expandir a cidade, edificando a “casa portuguesa” para vários grupos sociais: funcionários públicos, comerciantes, entre outros. Duarte Pacheco foi o ministro que levou a cabo o programa Novos Bairro que dá origem ao Bairro Social da Encarnação, entre 1940 e 1946. Nos anos de 1960, o Gabinete Técnico de Habitação da Câmara Municipal de Lisboa inicia o primeiro projeto de habitação social nos Olivais-Norte. Numa área de 40 hectares a construção é dividida em células, que seguiam os pressupostos urbanísticos contemporâneos para a época, provenientes da Carta de Atenas.

Seguimos caminho até à Escola Primária, nº 175, da autoria de Joaquim Bento de Almeida e Victor Palla. Construída ao abrigo do Plano dos Centenários, programa de construção em larga escala, promovido pelo Estado Novo com o objetivo de criar uma rede escolar de abrangência nacional, é exemplo de uma viragem na arquitetura moderna. Sem monumentalidade, apresenta uma visão humanizada e funcional do edifício. Atualmente este espaço alberga a escola básica do 1.º ciclo e jardim-de-infância de Santa Maria dos olivais.

Um pouco mais adiante, ainda na R. General Silva Freire, ergue-se o edifício de habitação 55-55 A, Prémio Valmor, em 1967, projetado pelos arquitetos Nuno Teotónio Pereira e António Pinto Freitas para a Sociedade Cooperativa O Lar Familiar. Pela primeira vez um edifício de tipologia social é digno deste reconhecimento, no entanto a distinção gerou alguma polémica, uma vez que já existiam outros cinco edifícios de traça igual. A torre, mais alta do que os edifícios circundantes, correspondia à conceção inovadora do espaço que se pretendia para a zona – delimitações específicas para peões e veículos, abundância de áreas verdes e boa exposição solar. Cada uma das torres tem 8 pisos, sendo os apartamentos construídos em torno de uma zona de escadas, ascensor e patamar excecionalmente ampla. O objetivo era favorecer a permanência e sociabilização entre os moradores. Um tratamento escultórico na área das escadas e exterior pretendia oferecer uma certa dignidade ao ambiente das edificações económicas.

A marcha prossegue e chegamos à Rua dos Lojistas, uma das mais emblemáticas do Bairro da Encarnação. Da autoria do arquiteto Paulino Montez, o Bairro da Encarnação é inaugurado em 1946. Reproduzia o modelo de aldeia portuguesa e apresenta a forma de uma borboleta, podendo ser admirado através de vista aérea. As casas da Encarnação são unifamiliares, com três tipologias e rodeadas por um jardim próprio, daí a denominação de Bairro Jardim. Na Praça Norte do bairro, frente ao Mercado, somos surpreendidos pela estátua A Varina. Em bronze, com dois metros de altura, foi executada pelo escultor José Laranjeira Santos, em 1965 e ali colocada numa alusão ao local onde funciona, hoje, o Mercado da Encarnação Norte.

Chegamos ao cimo da Alameda da Encarnação onde se ergue a Igreja da Encarnação, também conhecida como Igreja de Santo Eugénio. Da autoria do arquiteto Fernando Peres é uma igreja de linhas simples que apresenta diversos elementos que remetem para a relação papal. O nome evoca Stº Eugénio de Toledo, numa homenagem ao nome de batismo do Papa Pio XII (Eugénio Pacelli). Destaque para o fresco de Lino António que cobre o fundo da capela-mor e que apresenta várias cenas relativas a Pio XII, entre elas a ordenação episcopal a 13 de maio de 1917 e a aparição de Nossa Senhora de Fátima aos pastorinhos. O próprio Papa oferece para adornar o altar-mor, a imagem em bronze de Santo Eugénio.

No extremo norte da Alameda da Encarnação é de notar a estátua do General Ferreira do Amaral. Militar e político português da primeira metade do séc. XIX, João Ferreira do Amaral (1801-1849) foi governador de Macau e ficou para a história por ter conseguido conquistar a autonomia do território face à China. Os chineses mataram-no, insatisfeitos com as políticas que defendia a favor de Portugal. A estátua em bronze que agora se encontra na Encarnação é da autoria de Maximiliano Alves, e data de 1940. Enviada de Macau para Portugal quando é feita a transição do território macaense para a China, é inaugurada em Lisboa, em 1999. Consta que muitos habitantes do bairro foram surpreendidos por esta obra, que lhes apareceu à porta de um dia para o outro.

Passamos pelo Mercado da Encarnação Sul e seguimos em direção à Avenida de Berlim conhecida em tempos como a avenida de ligação entre aeroportos (o Aeroporto da Portela e o Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo, onde até meados dos anos 1940 amaravam hidroaviões) que divide os Olivais Norte e Sul. Na confluência desta avenida com a Av. Dr. Francisco Luís Gomes é possível vislumbrar uma obra em sucata de aço, chapa metálica e ferro, com 3 toneladas de peso que pretende ser uma alegoria à Reconstrução do Homem. Intitulada Recriação, é da autoria de Lúcio Bittencourt. A caminho dos Olivais Sul passamos pela Piscina Municipal dos Olivais, construída em terrenos cedidos pela Viscondessa de Valdemouro. Projetada pelos arquitetos Aníbal Barros da Fonseca e Eduardo Paiva Lopes abriu portas em 1967 e foi a primeira a existir na cidade com características olímpicas.

Um pouco mais à frente situa-se a SFUCO – Sociedade Filarmónica União e Capricho Olivalense, coletividade da freguesia de Santa Maria dos Olivais fundada em 1886. A importância da instituição não provém apenas dos seus 132 anos de história, que fazem da coletividade a mais antiga da freguesia, mas também da relevância cultural que tem. A sua atividade desenvolve-se, quase exclusivamente, no campo da cultura musical, através da Centenária Banda e Escola de Música de onde saem os executantes que a compõem. A banda tem apresentado concertos em diversos pontos de Portugal e Espanha e é dirigida desde 2012, pelo Maestro Luís Filipe Henriques Ferreira.

A caminho da Quinta da Fonte do Anjo, nos Olivais Sul, é-nos dado a conhecer um pouco da história do Convento de São Cornélio que, em 1674, acolhia uma comunidade de frades arrábidos. No terreno onde se erguia o convento encontramos hoje o Cemitério dos Olivais. Estacamos frente ao portão da Quinta da Fonte do Anjo, da qual existem registos que remontam a 1384. A construção pombalina está inserida num complexo rústico. Em 1762 é construída a capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição, revestida com azulejos historiados que representam a vida da Virgem. Em 1834 o primeiro Duque de Palmela compra a quinta e oferece-a à Duquesa, sua mulher, como forma de recompensa pelas joias que esta vendeu e que lhes permitiu subsistir durante as Lutas Liberais. Com a expansão urbana e a expropriação de terrenos levadas a cabo por Duarte Pacheco, na década de 1940, a área da Quinta foi diminuindo. Hoje, ainda é habitada pela família do Visconde de Valdemouro.

Quase a finalizar o percurso chegamos à Igreja Matriz de Santa Maria dos Olivais, situada na zona conhecida como Olivais Velho. Reza a lenda que a imagem da padroeira terá aparecido numa oliveira, acontecimento que levou à construção da igreja neste local. A primeira referência à igreja remonta ao século XIV, mas é no século XVI que esta zona dos Olivais se começa a definir, com a construção de casas em redor da matriz. A traça da atual igreja data do século XVII. Com o Terramoto de 1755 o edifício fica muito danificado, mas foi prontamente reconstruído. Perto da igreja há um edifício com uma inscrição que faz referência a F. A. Gouveia. As iniciais são de Francisco Alves Gouveia, industrial que em 1874 funda a Estamparia Alves Gouveia. Cerca de 20 anos antes nascia o caminho-de-ferro (1856) que fazia a ligação entre Lisboa e o Carregado. Os Olivais tinham uma estação própria o que facilitava o escoamento de produtos e como consequência a fixação de várias indústrias no local. Foi o caso da atividade deste empresário que edificou parte das casas da zona para albergar os seus funcionários.

Terminamos o percurso na chamada Praça da Viscondessa, situada na zona posterior à Igreja Matriz. O Rossio – mais tarde Pç. da Viscondessa –começa a desenhar-se depois do terramoto. Surgem assim os primeiros arruamentos, como a Calçadinha dos Olivais, a Rua Nova ou a Rua das Casas Novas. A praça é definida por uma série de edifícios construídos entre os séculos XVII e XIX, e dos quais se destacam o antigo asilo-escola da Viscondessa, a Casa dos Almadas, a Quinta de Santo António da Boiça e a Quinta dos Buracos. Entre 1891 a 1896, foi erguido um chafariz, um urinol público em ferro e um coreto, onde a Filarmónica Capricho Olivalense atuava, e que é também símbolo dos ideais revolucionários e republicanos. A prová-lo uma referência subtil que se encontra na sua base: uma pedra em forma de barrete frígio, símbolo da liberdade adotado pelos republicanos.

Entre outras valências, o Polo Cultural Gaivotas | Boavista tem primado por possibilitar a novos artistas e criadores espaços para ensaio, essenciais para o desenvolvimento dos mais variados projetos artísticos. Mas, sempre problemática é a escassez de locais para a apresentação desses mesmos projetos.

A pensar especificamente nessa dificuldade, o polo municipal da Rua das Gaivotas abraçou a Biblioteca de Marvila, e uma valência essencial que este equipamento possui: um moderno auditório com 172 lugares. Assim, eis-nos chegados à primeira edição de Gaivotas em Marvila, um programa que, para além de permitir a estreia de novos projetos nas artes performativas, tem como objetivo vital esbater as fronteiras entre o centro e a periferia, levando o palco para a zona oriental da cidade.

Nesta primeira edição, o teatro é está em destaque com dois espetáculos assinados por estruturas emergentes – o Coletivo Caroço e os Ás do Acaso. Aos primeiros cabe uma imersão no universo de Harold Pinter com É Só Isto (2 e 3 de novembro); os segundos estreiam um texto original de Miguel Viana, As Pessoas Falam Demais (dias 3 e 4) centrado nas aventuras de três irmãs. Em comum, tratam-se de espetáculos protagonizados por mulheres.

Comemoras 20 anos de carreira. Que memórias guardas desse início?

Foi um início de incerteza, ansiedade, desconfiança, de alguma insegurança, de receio de cair no ridículo. Vejo muita gente a cair no ridículo: a maneira como se expressam em televisão, como se mostram nas redes sociais… Expõem-se demais nas redes sociais. Esquecem-se de que têm um futuro à frente. É que nem sempre se está lá em cima; quando estão cá em baixo fica um silêncio terrível e não serão capazes de lidar com esse silêncio. Hoje acham-lhes graça, mas haverá um momento em que cairão em desgraça. Eu sempre contei com essa desgraça. Essa timidez que as pessoas acharam que eu tinha era propositada, no sentido de não dar confiança, para que não invadissem o meu mundo, o meu espaço. Se corresse tudo mal, eu já estava preparado para isso.

Sempre foste muito recatado em relação à tua vida pessoal…

O Eddie Vedder diz uma coisa com a qual sempre concordei: “músico que é músico só deve falar sobre música e nunca sobre a sua vida pessoal para não ficar exposto e não haver qualquer tipo de preconceito”. Houve momentos em que as editoras me diziam que eu devia ir a determinado programa falar sobre a minha vida, mas nunca me quis expor, sempre disse que isso não era importante, não era isso que me ia fazer vender discos ou mais espetáculos, simplesmente ia expor-me mais.

Foste um promissor lutador de lutas greco-romanas. Alguma vez te arrependeste de ter deixado o desporto para trás?

Costuma-se dizer que já temos a vida traçada. Não sei se será bem assim, mas há coisas que acontecem na nossa vida por uma decisão do momento em que tudo se perde ou tudo se ganha, que foi o que aconteceu com a minha participação no Chuva de Estrelas. Nunca me arrependi, no sentido em que o desporto continua a fazer parte da minha vida, nunca o deixei. Continuo a envolver-me nas lutas, a acompanhar jovens atletas (fui a Las Vegas acompanhar o campeonato do mundo, fui a Paris e a Madrid acompanhar torneios) mas, tendo a consciência de que a minha vida agora é musical e de que sou cantor das minhas canções.

Ficaste conhecido do grande público depois de teres participado num programa de televisão. Imaginavas que ias chegar aqui?

Não, não imaginei e isto não é demagogia alguma, simplesmente não sou hipócrita. Eram tempos diferentes, não havia nada parecido, o programa dava às sextas-feiras e tinha uma audiência de dois milhões de pessoas. Hoje a informação é tanta que as pessoas dispersam-se mais. Na altura eu era atleta de alta competição de luta greco-romana, pertencia à seleção nacional. Representava a seleção em campeonatos do mundo, da Europa… Ainda hoje treino e a minha vida continua a ser como era, o que mudou foi o facto de me expor publicamente a cantar. De resto não mudou nada, continuo a ter o meu silêncio, o meu espaço. Continuo a sentar-me no Jardim da Estrela a pensar, sozinho. Ainda não me deu para falar sozinho [risos], isso é só quando estou a compor. Sou um monólogo de mim próprio.

Incomoda-te quando as pessoas te abordam?

Não me incomoda nada, desde que sejam educadas. Nesse aspeto tenho tido sorte, nestes 20 anos as pessoas sempre me respeitaram.

Ao longo desses anos de carreira trabalhaste com muita gente, inclusivamente fizeste uma tournée com o Bryan Adams. Quando se chega a esse patamar consegue-se manter a humildade?

O desporto deu-me a decência de saber estar, de respeitar, de não subestimar o outro. Não sou um dado adquirido, há sempre alguém melhor do que eu. Vivo da minha criatividade, mas também sou influenciado pelo que leio e ouço, mas tenho a consciência de que não inventei nada.

©Nuno Fontinha

Sempre foste um artista muito acarinhado pelo público e pelas rádios. Os teus clássicos mais antigos passam com frequência. O que sentes quando ouves uma canção tua?

Fico envergonhado [risos], porque hoje em dia já não canto essas músicas da mesma forma. Hoje já têm mais tempero, mais sal. Acho que as pessoas gostavam das minhas canções pelas melodias e não pela minha forma de cantar. Foi isso que chegou às pessoas. Acho que algumas dessas canções foram mal produzidas. Os produtores eram ingénuos, não tinham muita experiência com o meu tipo de música, queriam fazer as coisas à sua maneira. Hoje ouço e não gosto. Respeito, porque faz parte da minha história, mas sou muito mais exigente e crítico, e sei que faço muito melhor.

Revês-te nas letras dessas canções mais antigas?

Sim. Revejo-me, por exemplo, no Ninguém é de Ninguém. Acho essa letra brutal e muito atual. Alguns homens pensam que são donos das mulheres e depois há aquele provérbio estúpido, que diz que “entre marido e mulher ninguém mete a colher.  Por isso é que têm morrido uma data de mulheres, porque ninguém se meteu! Se alguém se apercebe que as coisas estão mal, então devem meter-se, sim. Devem queixar-se, devem dizer. Eu pertenço a mim próprio. Quem estiver comigo também não me pertence. É um acordo de amor enquanto estivermos juntos.

O processo de escrita alterou-se com o teu amadurecimento?

Claro que sim, tenho mais cuidado, mais confiança, se bem que isso às vezes pode ser perigoso porque, antigamente, eu escrevia aquilo que me saía e não pensava mais no assunto. Hoje não, já sou mais exigente comigo próprio, o que pode tirar alguma autenticidade ao processo.

És uma pessoa muito reservada no que toca à tua vida privada, no entanto, escreves as tuas próprias letras, onde partilhas pedaços da tua vida. Isso faz-te sentir exposto de alguma forma?

Claro que sim, porque as canções são autobiográficas. É um risco que corro porque a minha vida é contada nas canções: as minhas relações, amizades, experiências…

Isso também serve de terapia?

Uma vez um colega meu disse-me que eu nunca estava sozinho, porque pego na viola e estou comigo. É verdade, nunca tinha pensado nisso…

O teu filho também é músico. É caso para dizer que ‘filho de peixe sabe nadar’?

Sim, tem muita influência. Mas, muita atenção, porque ele é muito melhor do que eu. Ele sabe o talento que tem como baterista, guitarrista e cantor. Ele quer construir o seu caminho, mas se tiver que ser comigo ele prefere não seguir, não quer dormir à sombra do apelido. Sabe bem o que quer e toca mesmo muito…

Este mês atuas em dose dupla no Coliseu, em dois concertos praticamente esgotados. O que estás a preparar?

Vai ser um concerto para reavivar memórias e histórias. As músicas mais antigas terão novas roupagens, mas sem descaracterizar, sem fugir à harmonia. Improvisando mais, sentindo-me mais à vontade com as próprias canções. Vou ter um quarteto de cordas, vou ter o Keith Scott (guitarrista do Bryan Adams) a tocar comigo. Haverá momentos em que estarei só eu a cantar com a viola, ou com o piano, assim uma coisa mais despida.

Para quando um novo disco?

Já estou a compor, não posso parar. A minha continuidade na música depende da minha criatividade, e nesse aspeto não vivo do passado. Há pessoas que vivem do passado, tocam sempre as mesmas canções com 30 anos. Isso faz-me muita confusão. As pessoas querem coisas novas. Claro que tenho que cantar as coisas mais antigas, mas tenho que dar a conhecer o que vou fazendo, que é atual. Espero ter um novo disco de originais já em 2019.

 

Na peça de Federico García Lorca, a última escrita pelo autor andaluz antes de ser executado pelas forças falangistas durante a Guerra Civil Espanhola, a viúva Bernarda Alba toma com mão de ferro as vidas das suas cinco filhas (Angustias, Madalena, Amélia, Martírio e Adela). A casa é o cárcere onde a matriarca enclausura e oprime todas as pulsões das suas descendentes.

Partindo do enredo desta obra-prima absoluta, João Garcia Miguel (que há uns anos levou à cena outra das peças essenciais do autor, Yerma) escreveu um texto como se procurasse “o segredo oculto e inacessível que ela contém”. Suprimindo algumas personagens, o espetáculo explora “uma conexão profunda com a terra e o corpo” que o encenador descortina na escrita e no universo de Lorca e da qual se apropria. Por isso, A Casa de Bernarda Alba segundo Garcia Miguel afasta-se “do olhar sobre o quotidiano para mergulhar no mais íntimo de cada um de nós.”

Sean O´Callaghan, Paula Liberati e Duarte Melo numa cena da peça.

 

A personagem de Bernarda Alba – aqui interpretada surpreendentemente pelo consagrado ator irlandês Sean O’Callaghan – é paradigmática desse olhar, como se a crueldade fosse, enfim, uma expressão do humano. “Para salvar a família, Bernarda transforma-se na déspota. O luto não é a catarse, mas sim a barbárie”, sublinha o encenador. “No fundo, esta personagem encarna o ciclo invisível entre extremos que cada um de nós tem dentro de si e que a qualquer momento, sem que muitas vezes o consigamos compreender, se revela.”

Num dos vértices desses extremos, surgem Bernardas Albas que “crescem à luz cruel dos nossos dias, tornando-se cada vez mais coercivas, com discursos onde admitem mecanismos de repressão e censura, em nome da liberdade”. Mas, pelo menos neste palco, mais do que abordar economia, política ou a sociedade em geral, “aquilo que verdadeiramente importa é escavar bem no íntimo do humano”, sobretudo numa busca de tudo aquilo que está para além da razão.

As atrizes brasileiras Annette Naiman e Paula Liberati interpretam as irmãs Martírio e Adela.

 

Um elenco internacional

Nesta produção da Companhia João Garcia Miguel, o encenador conta apenas com um ator português, o jovem Duarte Melo, com que trabalhara anteriormente em Tio João. “É um intérprete de enormes recursos, com uma impressionante fisicalidade, daqueles que tem a marca do tipo de trabalho que desenvolvemos”. A ele cabe o papel da governanta Poncia. Mas, como vimos, não é a única “supressão” de género que o espetáculo contém, já que Sean O’Callaghan interpreta a mãe castradora Bernarda Alba.

Para o ator com vasto currículo em produções do Shakespeare’s Globe e da Royal Shakespeare Company, “trata-se de um enorme desafio por se tratar de uma das mais importantes personagens da dramaturgia mundial. Curiosamente, hoje há grandes atrizes a interpretar personagens masculinos. Na Grã Bretanha tem sido recorrente ver mulheres a fazer o Lear ou Ricardo III. A mim coube-me a Bernarda e sinto que é um trabalho de uma enorme liberdade, tão grande que ultrapassa a questão de género.”

Para Garcia Miguel, ambas as escolhas permitem “evitar uma imagem previamente determinada das personagens”, dado que “o teatro não é mais o mundo do naturalismo, mas sim das possibilidades”. E, como iria o encenador não aproveitar a possibilidade de ter em palco, sob sua direção, um ator como Sean O’Callaghan, confesso admirador do trabalho de Garcia Miguel?

A presença declaradamente feminina está nas intérpretes brasileiras, Annette Naiman e Paula Liberati, a quem Garcia Miguel distribuiu os papéis das filhas Martírio e Adela. Para ambas, “não se trata só de trabalhar com um homem de teatro tão reconhecido como Garcia Miguel. Fazer esta peça, tendo em conta o Brasil que deixámos há dois meses e meio, tem um significado muito especial para nós ou não andassem as Bernardas Albas por lá à solta.”

Em antestreia no Teatro Ibérico, de 18 a 20 de outubro, este visceral e empolgante olhar sobre A Casa de Bernarda Alba volta ao mesmo palco entre 12 e 22 de dezembro. Antes dessa temporada mais extensa em Lisboa, o espetáculo passa pelo Brasil durante o mês de novembro.

A decana das companhias de teatro profissionais portuguesas, o Teatro Experimental do Porto, regressa a Lisboa com três peças da autoria de Gonçalo Amorim e Rui Pina Coelho que refletem sobre o papel da juventude na História portuguesa contemporânea.

Salutar provocação ao influente Pequeno Tratado de António Pedro (membro fundador da companhia), O grande tratado de encenação é um olhar sobre a geração dos anos 50: num sótão, três jovens (Catarina Gomes, Paulo Mota e Sara Barros Leitão) anseiam por um teatro novo, como se ele pudesse forçar a entrada num mundo diferente daquele que está lá fora, nas ruas, no país de Salazar.

Em A Tecedeira que lia Zola, ensombrados pela Guerra Colonial e por uma ditadura que não tem fim, um grupo de jovens universitários (Bruno Martins, Catarina Gomes, Paulo Mota e Sara Barros Leitão) parte para os campos e para as fábricas, com a cabeça cheia de livros, para plantar as sementes daquilo que virá a ser a Revolução.

A encerrar a trilogia, Maioria Absoluta, ou um olhar sobre a geração que o cavaquismo gostou de apelidar de “rasca”: eles e elas (Carlos Malvarez, Catarina Gomes, Eduardo Breda, Íris Cayatte, Mariana Magalhães, Paulo Mota e Pedro Galiza) envergam camisas de flanela e calçam All Star e Doc Martens, ouvem grunge, e lutam contra propinas ou provas gerais de acesso ao ensino superior, “manifestando-se dia sim dia não” em busca de um rumo, de uma via criativa para um período em que o país vivia a ilusão do asfalto e do cimento a expensas de fundos comunitários.

A 27 de outubro, os três espetáculos são apresentados, respetivamente, às 16h30, 18h30 e 21h30.

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