Georges Vigarello (Direcção)
História da Virilidade I
A virilitas romana, da qual a palavra virilidade deriva, funde as qualidades sexuais (do marido possante, procriador) com as qualidades psicológicas (do homem ponderado, vigoroso, corajoso e comedido), num ideal de força e vontade, segurança e maturidade, certeza e dominação, autoridade física e moral. Esta obra monumental reflete sobre a transformação do ideal viril nas sociedades ocidentais segundo as culturas e os tempos: os universos sociais, as subculturas, o ambiente urbano ou rural, guerreiro ou letrado. Uma questão deu origem ao presente estudo: a virilidade está em crise nas sociedades contemporâneas? Será ela própria um ideal anacrónico, fechado no passado ou estará a passar por mais um processo de metamorfose em busca de novas identidades? O primeiro de três volumes, dirigido por Georges Vigarello, diretor na École des Hautes Études en Sciences Sociales e autor de inúmeros trabalhos sobre as representações do corpo, descreve a formação do ideal viril na Grécia e na Roma Antiga e acompanha as suas variações durante a época medieval e a Renascença.
Orfeu Negro
Eça de Queiróz
As Farpas
Em 1881, Fialho de Almeida louvava As Farpas e o “humor cáustico dos dois cintilantes espíritos”. Escritas e publicadas por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão ao longo dos anos de 1871 e 1872 em fascículos mensais de cem páginas, As Farpas foram sempre reeditadas em conjunto sem indicação das respectivas autorias. Destinadas, pelo autor de Os Maias, ao “leitor de bom senso”, estas “páginas irónicas, alegres, mordentes, justas”, pretendiam descobrir “através da penumbra confusa dos factos, alguns contornos do perfil do nosso tempo”. Os artigos reunidos nestes opúsculos de capa alaranjada, decorada com o diabo Asmodeus, constituem crónicas brilhantes sobre um país em crise que, segundo Eça, “perdeu a inteligência e a consciência moral”, onde “ninguém se respeita”, “não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos”, “ninguém crê na honestidade dos homens públicos”, “a classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia”, e “o povo está na miséria”. Esta edição publica, pela primeira vez, As Farpas integrais de Eça de Queiroz, separadas das escritas por Ramalho Ortigão.
Relógio D’Água
Charles Bukowsky
Os Cães Ladram Facas
A personalidade de Charles Bukowsky (1920-1994) foi marcada pela experiência de uma infância violenta e infeliz e o seu rosto pelas marcas profundas da acne, dando origem a um sentimento constante de rejeição. O poeta e romancista incarnou o mito do autor marginal, que desprezava as convenções sociais e se identificava com os loucos, alienados e alcoólicos, procurando, como salienta Valério Romão, seleccionador e prefaciador da presente antologia poética, “uma forma de estar no mundo sem o estar”. Na sua poesia, Bukowski recorre aos seus temas habituais; o sexo e a mulher, a infância e o álcool, os hipódromos e as apostas, a escrita e os outros escritores. O estilo, inspirado por Hemingway, é direto e recusa a complexificação geralmente associada à prática poética. A radical honestidade dos seus versos, nos quais não hesita em descrever-se nos termos menos lisonjeiros, contamina-os de uma profunda e impressiva humanidade: “demorei 15 anos a humanizar a poesia / mas vai ser preciso mais do que eu / para se humanizar a humanidade”. Tradução de Rosalina Marshall.
Alfaguara
John le Carré
A Rapariga do Tambor
“Tenho um caso de amor com a palestina, como no passado tive um caso de amor com os judeus”, referiu John le Carré a propósito deste seu romance de espionagem, publicado em 1983. O autor agradece na nota prévia aos inúmeros palestinos e israelitas que o ajudaram a escrever o livro. De facto, o escritor entrevistou membros dos dois lados do conflito do Médio Oriente (agentes da Mossad, Yasser Arafat) e visitou campos de refugiados em Beirute, materializando na obra uma preciosa apreensão do real e um profundo sentido de atmosfera. Inspirado, segundo se julga, em Vanessa Redgrave, narra a história de Charlie, uma atriz de teatro com convicções de extrema-esquerda e empenhada na causa de libertação da Palestina. Charlie aceita um contrato pra representar numa Ilha Grega sem imaginar que se trata de uma armadilha dos serviços secretos israelitas para capturar Khalil, um terrorista palestino. Obra admirável sobre os meandros labirínticos da espionagem internacional com uma narrativa constantemente intensificada pela suspeita, tem no centro uma trágica história de amor e de lealdades divididas.
Dom Quixote
João Seixas (Coordenação)
Projecções de Lisboa
Na introdução do presente livro, escreve João Seixas, coordenador do projecto: “As cidades são, por excelência, espaços de diálogo e de confronto perante lógicas múltiplas e papéis diversificados. Como notáveis acumulações de energia humana, como esteios da cultura e da política, tem sido sobretudo através das cidades que se têm desenvolvido muitas das mais pronunciadas e sempre incertas utopias, visões e projecções da humanidade”. A obra refete sobre as razões, os desejos, as condições, os processos de como e porquê, ao longo dos tempos se pensou e projectou a cidade de Lisboa. Sobre os seus momentos de transformação e as projecções utópicas e estratégicas para o seu desenvolvimento num período que decorre entra a Lisboa ainda medieval, mas já proto-imperial, e a atual Lisboa metapolitana, europeia e globalizada.
Caleidoscópio
Oliver Jeffers
Aqui Estamos Nós
Quando chegamos ao mundo podemos sentir-nos perdidos, pois tudo à nossa volta parece demasiado confuso. Aqui Estamos Nós funciona como guia prático para o compreendermos melhor, numa viagem maravilhosa à descoberta do planeta Terra. Este livro é um hino ao respeito pelo nosso lugar no mundo, que aborda temas como a gentileza, a consideração, a tolerância e a igualdade. Através de uma linguagem clara e direta e de ilustrações apelativas e emocionantes, Oliver Jeffers – um dos maiores autores de literatura infantil – desperta no leitor a absoluta necessidade de amar e respeitar todos os seres humanos e o planeta em que vivemos. Aqui Estamos Nós, vencedor do Prémio Design Book Awards 2018 para o melhor design de livro ilustrado para crianças, é um livro repleto de esperança e de mensagens essenciais. Afinal, isto é tudo o que temos.
Orfeu Negro
O que a levou a fazer um filme sobre esta família?
Durante muito tempo tive vontade de fazer alguma coisa junto ao rio Tejo, que se passasse em Vila Franca porque foi onde nasci e sempre vivi. Aqui há 8 ou 9 anos, pediram-me para ir filmar à praia dos Cavalos, um sítio só acessível por barco, a norte de Vila Franca e quem me deu boleia foi o Albertino. Quando estava no barco com ele tive aquela imagem do herói, do cowboy sem cavalo, era a figura de alguém que estava realmente no seu habitat natural. Senti mesmo que ele pertencia ao rio. Durante quatro anos essa imagem nunca me saiu da cabeça. Comecei a pensar que a personagem para aquela tal ideia, aquela sensação de fazer alguma coisa em Vila Franca, junto ao rio, seria o Albertino. O filme nasceu da minha ligação a esses dois pontos, o rio/Vila Franca, e o Albertino.
De que forma o quotidiano deste homem e da sua família, é diferente dos outros que ali vivem?
Mais do que um filme etnográfico sobre a pesca, interessava-me muito trabalhar a relação dele com o rio, que é muito emocional. Queria trabalhar a ideia de pertença a um lugar. Na viagem inicial que fiz de barco com o Albertino percebi que ele tem uma relação com a natureza que poucas pessoas têm. Depois percebi que também existia o lado familiar e por isso o filme foi naturalmente seguindo esse curso e passou não só a ser um retrato do Albertino enquanto pescador, mas também um retrato familiar.
Em Terra Franca regressa a um local que lhe é familiar. Também nos trabalhos anteriores as suas origens estão presentes. Porquê?
Não sei fazer filmes de outra maneira, os meus filmes têm de ser sempre pessoais e tenho de estar sempre implicada. Não sei falar de outras coisas que estejam longe de mim, não conseguiria implicar-me, nem dar tanta importância. Por outro lado, sinto que ainda não tenho conhecimento suficiente para dar esse salto e trabalhar sobre uma coisa que não tenha conhecimento próprio.
Ao longo do filme as estações do ano vão sendo assinaladas. Foi intencional o paralelismo que existe entre a vida dos personagens e a passagem do tempo?
Sim, foi. A partir do momento em que decidi que era importante passar um ano na vida desta família, soube que não era só passar um ano na vida das personagens, mas também perceber de que forma é que o espaço muda e como esse espaço e a luz influenciam as personagens. Queria muito que se sentisse esta passagem do tempo, que estamos a viver um ano com estas pessoas neste sítio e por isso todas as transformações não só físicas, mas também psicológicas.
A banda sonora do filme contrasta com a realidade apresentada. É quase como se fosse um elemento estranho. Qual foi a intenção de escolher temas da soul americana?
Quis ir mais longe e mais do que fazer um documentário, onde de uma forma geral não há muito a utilização de música e o que transparece é a realidade em frente à câmara, por isso procurei agarrar todas as ferramentas que o cinema me dá, talvez as mais ligadas à ficção, mas que na verdade podem ser aplicadas ao documentário, enaltecendo-o. Achei que estes momentos musicais ajudavam imenso a trabalhar toda a parte interior e tudo aquilo que o Albertino poderia estar a sentir. Acima de tudo há uma nostalgia que existe nessas músicas que têm muito a ver com o Albertino. Ele não é uma pessoa de agora, é de outro tempo e carrega uma nostalgia que essas músicas também transmitem.
Também a fotografia do filme, em particular as cenas em que Albertino está sozinho no barco, é de uma enorme beleza conferindo-lhe um lirismo, que contrasta com a sua vida simples. Foi esse o objectivo?
A ideia era tentar fazer com que o filme, embora fosse um documentário, se parecesse ao máximo com uma ficção na maneira como era feito, filmado e construído. Tal como com o som, o mesmo aconteceu com a fotografia. Há esta ideia de que no documentário o que interessa é o conteúdo. A câmara acaba por ser um bocado sacrificada. É geralmente uma câmara à mão, muito instintiva que aponta para o que está a acontecer. Queria muito que também através da fotografia, o rio e o valor das personagens fossem enaltecidos.
Albertino e a família não são atores. Como foi filmá-los? Houve algum tipo de direcção?
Houve um fator que me ajudou imenso, que foi o tempo. Passei cerca de dois anos a filmar estas pessoas e de certa forma esse tempo e disponibilidade permitiram que nos conhecêssemos melhor. A certa altura eu estar ali já era algo habitual, eu já fazia parte da família. Mais do estranharem a câmara, eles confiavam na pessoa que estava atrás dela. Naturalmente que há cenas que foram encenadas, mas a maioria do filme foi espontâneo.
Esta é a sua primeira longa-metragem. O que a levou a optar por este formato?
Inicialmente a ideia era fazer uma curta. Mas à medida que ia estando com eles percebi que havia tanta coisa para dizer que o espaço de uma curta não seria suficiente. Se eu queria estar um ano na vida de uma pessoa seria muito difícil resumir esse ano a 20 minutos. Naturalmente percebemos que não era possível e o projeto cresceu para uma longa.
Todos os trabalhos que realizou são documentários. Já pensou em fazer ficção?
Tento em cada filme que faço experimentar coisas novas e procurar sempre características de ambos os géneros. Mas a verdade é que hoje em dia as coisas esbatem-se muito e é difícil definir o que é um documentário e uma ficção. O que importa explorar é a junção das duas coisas. Mas essencialmente interessam-me pessoas reais, pessoas que existem e ao trabalhar com elas perceber também de que forma o filme faz sentido para elas. Porque o cinema está muito relacionado com este tipo de partilha: o que dou e o que me dão.
O filme já ganhou uma série de prémios. O que representam para si?
Os prémios nunca dependem de mim, só o filme depende de mim. Obviamente fico feliz porque é o reconhecimento do meu trabalho e da minha equipa. Quando se ganha algum prémio importante as pessoas falam do filme, e é gerada uma curiosidade para se ver o filme. Isso é o que mais quero, que o maior número de pessoas tenha acesso ao filme. Por outro lado, os prémios permitem que quando surge um novo projeto seja mais fácil o financiamento.
Em estreia no Cinema Ideal, Cinema NOS Amoreiras e Cinema City Alvalade
Cenas de beira-mar em praias do Levante, pescadores na faina na zona costeira de Valência ou crianças e jovens veraneantes em brincadeiras estivais são algumas das imagens mais marcantes da obra de Joaquín Sorolla y Bastida (Valência, 1863 – Cercedilla, 1923). Em parte, são aquelas que lhe granjearam fama e popularidade em vida, mas também uma notória indiferença, e até irrelevância histórica e crítica, ao longo de décadas. Em Portugal, como António Filipe Pimentel e José Alberto Seabra Carvalho apontam na recensão incluída no catálogo da presente exposição, Sorolla foi praticamente ignorado pela historiografia da arte, tendo sido alvo de “uma simplista e estereotipada interpretação da sua obra, ao ponto de muitos o entenderem como uma espécie de Malhoa espanhol.”
Como consideram o diretor e subdiretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), respetivamente, o valenciano foi “um grande pintor, moderno no seu tempo embora não «vanguardista», inovador mas comprometido com os mestres do passado”. Por isso mesmo, essencial para a compreensão da “pintura finissecular do século XIX e das primeiras décadas do século XX, sem obediência às narrativas oficiais e académicas que, por assim dizer, passam do impressionismo e do pós-impressionismo para o cubismo ou o modernismo, como se entre ambos não mais tivesse havido do que um deserto.”
A comissária de Terra Adentro – A Espanha de Joaquín Sorolla, Carmen Pena, explicita mesmo, como causa para tantos equívocos e preconceitos em relação à obra de “luministas” como Sorolla, o facto da historiografia da arte do século passado ter privilegiado os impressionistas, “considerados pintores de vanguarda do século XIX”. Afinal, foram esses “contemporâneos” que detiveram “um papel hegemónico nessa narrativa, que privilegiou os fenómenos vanguardistas enquanto processo explicativo da arte contemporânea.”
Não sendo, portanto, um vanguardista, o que existe de tão “moderno” na obra de Sorolla, e como é que o pintor recuperou internacionalmente um lugar destacado na historiografia da arte (lugar que, aliás, os espanhóis nunca lhe recusaram)? Carmen Pena justifica-o com a “oficialização” das vanguardas, que passaram de “transgressoras a modelos canónicos”, e com isso ajudaram a relevar na história da arte de finais do século passado alguns desses denominados “modernos integrados”, ou seja, “pintores da moda” na sua época, formados nas escolas nacionais, entre os quais se incluía Sorolla, e que fizeram frisson nos salões de Paris e nas exposições universais.
O “moderno” na obra do pintor valenciano acentua-se naquilo que Pena considera o “denominador comum da sua obra”: “conseguir captar os infindáveis e mutáveis efeitos da luz ao ar livre, no contexto da física moderna das cores e como uma aplicação experimental”, e com isso “conseguir modernos efeitos lumínicos”, a que não será de modo algum estranho a “nova” arte da fotografia a que era particularmente atento. Aliás, tal como os seus contemporâneos luministas e impressionistas, como Degas ou Monet, na pintura de paisagem.
É precisamente no outro Sorolla, o “introspetivo”, o da Terra Adentro, como que em contraste com o Sorolla “solar” das praias mediterrânicas, que se afirma o génio de um “moderno”. Como refere Román Casares, da Fundação Museo Sorolla, foi “nas paisagens espanholas do interior, às vezes despidas, severas, imponentes” que o pintor descobriu “outros motivos para a sua pintura e outras razões para perceber o seu país.”
Nesta magnífica exposição do MNAA, o visitante poderá testemunhar os dois lados de Sorolla: o do realista “otimista e luminoso”, que tantos conhecem; e esse que ainda permanece quase desconhecido – o das solitárias paisagens de uma Espanha sonhada, demonstrativa, como sublinha Carmen Pena, do “pensamento regenerador espanhol da sua época”, que procurou através da pintura novos “ícones identitários”. Este último, com certeza, uma grande revelação.
Numa cena de A Mentira, Miguel (personagem interpretado por Miguel Guilherme) confronta a mulher com uma quase evidência que acaba por nortear todo o espetáculo: “Se toda a gente dissesse a verdade não existiria um único casal à face da Terra”. Do outro lado, em A Verdade, Paulo (Paulo Pires) dirige-se à amante, como se interpelasse o público, questionando o efeito que teria no mundo se todos nós só disséssemos a verdade.
Numa época em que na ordem do dia estão as chamadas fake news e as “verdades” alternativas, constantemente veiculadas nas redes sociais e, infelizmente, um pouco por toda uma imprensa em crise e ávida de audiências, João Lourenço abraçou o desafio de encenar, em simultâneo, duas peças da autoria do jovem autor francês Florian Zeller, revelado entre nós há dois anos, precisamente no Teatro Aberto, quando da encenação de O Pai (espetáculo que valeu a João Perry o Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para Melhor Ator de Teatro). Embora nenhum dos textos aborde diretamente as notícias falsas, que “instalam um culto de mentira em toda a sociedade”, o encenador considera de uma enorme pertinência e atualidade a temática. Porém, aqui, a mentira é o eixo de duas comédias de costumes, centradas numa teia de enganos e infidelidades entre casais e amigos, e que, no caso, surgem em cena interpretadas por um mesmo elenco.
Em A Mentira, a proposta passa por transmitir, “com toda a transparência”, as regras do jogo, convidando o público a passar previamente pelo palco para visitar o cenário e apreciar cerca de duas dezenas de reproduções de obras de arte que têm como tema a mentira e a máscara enquanto instrumento de ocultação (ou revelação) da verdade. O espectador é então encaminhado para o seu lugar na plateia e segue-se o drama: antecedendo um jantar entre casais, Joana (Joana Brandão) conta ao marido, Miguel, que viu o melhor amigo deste, Paulo, a beijar uma mulher. Incomodada, propõe contar tudo a Patrícia (Patrícia André), ou não fosse ela uma das suas melhores amigas. Miguel discorda e coloca-a perante o dilema de uma pressuposta virtude da mentira “piedosa”. E, mais não revelamos, mas, prepare-se, porque poderá ser chamado a tomar partido quando a discussão atingir o clímax e o que estiver em jogo for algo mais do que escolher entre a verdade ou a mentira.
Como o leitor já terá percebido, as personagens têm o nome próprio dos atores. “Uma perversãozinha” que João Lourenço decidiu juntar às muitas que os dois textos comportam, mas que, no conjunto, acaba por dar ao espectador uma certa sensação de conforto. Mais a mais, entre tantos “puxar de tapete” numa e noutra peça, sabe bem um pouco de aconchego, sobretudo para aqueles que sejam mais dados a inconfessáveis segredos.
Chegados a A Verdade, encontramos Paulo amantizado com Patrícia e casado com Joana. Certo é que Paulo é também o melhor amigo de Miguel, marido de Patrícia, e apesar de ser um mentiroso compulsivo depressa percebemos que, como o próprio Zeller considerou, é “um mentiroso a quem toda a gente mente”. Num tom de constante dissimulação, as quatro personagens vão demonstrado como a verdade é muito pouco interessante, até mesmo quando a mentira começa a escaldar (e muito) para lá dos lençóis.
Reconhecendo alguns traços comuns com o teatro de Harold Pinter, sobretudo nas ambiguidades e nos silêncios que funcionam como subtexto, Lourenço optou por situar a ação de A Verdade no final da década de 1950, criando um “ambiente propenso a uma época de otimismo” e onde se desenhava no horizonte uma revolução sexual que abalaria fortemente os costumes. A citação à série Mad Men e ao mundo da publicidade é bem evidente, e Paulo Pires, enquanto personagem central nesta visão daquilo que é originalmente uma peça de vaudeville passada na atualidade (escrita por Zeller em 2011 para o ator Pierre Arditi, nome incontornável na filmografia do cineasta Alain Resnais), torna-se uma escolha de particular consistência.
A Mentira, de Florian Zeller | EM CENA | Sala Azul
A Mentira,de Florian Zeller | EM CENA | Sala Azul
Posted by Teatro Aberto on Monday, 21 January 2019
Como faces de uma mesma moeda, este compêndio de enganos, desenganos e novos enganos de cariz conjugal, vai estar em cena até ao final de março nas duas salas do Teatro Aberto. A Verdade e A Mentira prometem divertir, mas também inquietar, até porque, como remata João Lourenço, “não acredito que alguém não tenha passado já por qualquer destas situações”. Vai uma aposta?
A zona de 50 hectares onde se situa aquele que é hoje o Parque das Nações e que percorre o rio ao longo de cinco quilómetros era, no final dos anos 80, um campo de contentores, matadouros e indústrias poluentes, onde as habitações próximas eram decadentes, pobres e insalubres. Em 20 anos, muito coisa mudou nesta zona oriental da cidade, principalmente na fase de preparação dos terrenos para a Expo’98. No final da exposição mundial, houve a preocupação de que os equipamentos do recinto tivessem utilização posterior, de forma a evitar o seu abandono e degradação. Ao mesmo tempo, lançaram-se grandes empreitadas públicas, como a Ponte Vasco da Gama, um interface ferroviário e uma nova linha do metropolitano com sete estações. Esta zona passou a ser um dos bairros mais modernos da cidade, reunindo áreas comerciais, culturais e de lazer e atraindo muitas empresas e instituições, tudo com uma vista privilegiada sobre o Tejo.
A Estação do Oriente, construção arrojada de Santiago Calatrava, marca o ponto de partida deste itinerário. Com uma estrutura à base de aço, é frequentemente comparada a uma catedral gótica, mas rompe com a tradição medieval da horizontalidade da linha de fecho. Na sua criação, o arquiteto espanhol aproveitou a tradição e a modernização como uma ponte entre o passado e o futuro e, na plataforma superior, Calatrava usou a iconografia da árvore relacionada com as colinas de Lisboa. A estrutura, que venceu o Prémio Brunel em 1998, acomoda uma das estações ferroviárias e rodoviárias mais importantes de Lisboa, uma estação de metropolitano (Oriente) e um espaço comercial.
De costas para a Estação do Oriente, no cruzamento da Avenida D. João II com a Avenida do Pacífico, ergue-se o edifício da Vodafone, de Alexandre Burmester e José Carlos Gonçalves. Prémio Valmor 2005, esta construção desenvolve ao nível da fenestração uma reinterpretação contemporânea de alguns temas da arquitectura do Renascimento, sendo possível estabelecer uma analogia entre ela e a Casa dos Bicos. Apresenta duas faces distintas, uma aberta ao rio e outra à avenida, e conta com uma área de construção de aproximadamente 70 mil metros quadrados. É um edifício com grande impacto urbanístico, quer pela sua dimensão e valor arquitetónico, quer pelos desafios tecnológicos que envolve.
Ao fundo, avista-se o Pavilhão de Portugal, da autoria de Álvaro Siza Vieira e que agora pertence à Universidade de Lisboa, responsável pela sua manutenção. É um edifício composto por dois corpos separados, em que um corresponde ao edifício – um volume sólido e sóbrio -, e o outro corresponde a uma ampla praça coberta por uma imponente e gigantesca pala de betão. Aquela que é uma prodigiosa obra de engenharia, baseia-se na ideia de uma folha de papel pousada sobre dois tijolos.
Dali, é possível ver ainda as Torres de São Rafael e São Gabriel, edifícios de habitação com 110 metros de altura de José Quintela. A arquitetura é visivelmente inspirada na simplicidade e elegância da proa de um barco em direção ao rio. No topo, surgem duas velas.
Seguindo pela Avenida D. João II, ao lado no Centro Comercial Vasco da Gama e no cruzamento com a Avenida do Índico, surge o edifício do Atelier ARX, dos arquitetos Nuno e José Mateus. Destinado a escritórios, comércio e estacionamento, esta construção consiste numa caixa de granito negro absoluto amaciado. Conta com uma singularidade identitária e contemporânea e com uma concepção bio-climática. Esta caixa é perfurada nos cantos, abrindo-se sobre a envolvente e emitindo conteúdos audiovisuais para o exterior.
Ao fundo, vislumbra-se o Altice Arena, de Regino Cruz, hoje uma das principais salas de espetáculos do país e que acolheu, ao longo destes 20 anos, diversas iniciativas como a Web Summit e a Cimeira da Nato.
Continuando na Avenida D. João II, contornando o edifício da NOS, encontram-se seis painéis de azulejos de Leonel Moura que retratam sereias, inspirando-se na pintura ocidental, mais concretamente em clássicos de nus femininos. Depois de escolher as imagens de nus que pretendia, tendo em conta a sua posição, encaixou a cauda de peixe através de uma colagem digital. Para completar a obra, o artista recorre ao excerto canto das sereias, do poema épico Odisseia, de Homero, para o painel do lado esquerdo.
Depois de atravessar a avenida, é altura de parar em frente ao VIP Executive Art’s Hotel da autoria de Frederico Valsassina, Prémio Valmor 2004, para apreciar o painel de azulejos de Erró. Neste painel Pop Art, o artista plástico islandês representa personagens da banda desenhada e da ficção científica norte-americanas. Erró, último discípulo vivo de Roy Lichtenstein, cedeu os direitos de autor deste painel à Fábrica Viúva Lamego.
Na rotunda adiante, desce-se pela Avenida da Boa Esperança onde, do lado esquerdo, se erguem os edifícios de Tomás Taveira, o principal representante da arquitetura pós-moderna em Portugal.
Continuando a descer a avenida, chega-se à Torre Vasco da Gama, transformada recentemente em hotel da autoria do arquiteto Nuno Leónidas, cuja estrutura simboliza duas velas que abraçam a torre.
Do lado esquerdo, encontra-se Cursiva, uma escultura de Amy Yoes em ferro pintado que lembra um gigantesco molde de uma caracter tipográfico ou a tridimensionalidade de uma capitular de um códice medieval e que evoca o vocabulário barroco português. É possível entrar na escultura e percorrê-la, rodeá-la e tentar escalá-la, o que permite ganhar, a cada movimento, perspetivas internas diferentes e novos enquadramentos exteriores.
Imediatamente atrás, descobre-se Haveráguas, um painel de azulejos desenhado especialmente para a Expo’98 pelo artista chileno Roberto Matta, último expoente da geração surrealista. Um pouco mais adiante, e ainda no âmbito da arte pública, surge O Homem Muralha, uma obra de Pedro Pires constituída por cinco esculturas antropomórficas orientadas em distintas direções, com pequenas diferenças entre si. Compostas por pequenos quadrados de ferro que agem como píxeis numa fotografia, estas figuras pretendem questionar o conceito de identidade no mundo industrial contemporâneo. Seguindo pelo Passeio dos Heróis do Mar, passar pelo Cais dos Olivais, onde se destaca Montanha Rio, uma escultura de Rui Sanches composta por três plataformas circulares cortadas por um muro, que pretende ilustrar uma ilha de repouso. A parede é rasgada por uma janela que permite ver o rio, como uma pintura, e a montanha, representada pelo bloco de pedra.
Atravessando o jardim em direção ao rio, entrar no Passeio do Tejo, percorrendo-o até chegar à escultura da Rainha D. Catarina de Bragança. Da autoria de Audrey Flack, esta é uma réplica de dez metros de altura de uma estátua construída nos Estados Unidos da América, pela Associação Friends of Queen Catherine, para celebrar o facto do Borough de Queens, em Nova Iorque, dever o seu nome a esta rainha.
O díptico de Mickaël de Oliveira inscreve-se numa tetralogia que o dramaturgo e encenador português, nascido em Paris, dedicou à reflexão sobre questões políticas, e na qual estão incluídas, para além das duas peças que compõem Sócrates tem de morrer (2017-18), No(s) Revolution(s) (2015), A Constituição (2016) e A Sauna (2017).
Em A Morte de Sócrates, Oliveira parte de Fédon, de Platão, para acompanhar os últimos dias de Sócrates (interpretado por Albano Jerónimo) na prisão, à espera da execução. Ali, vários amigos íntimos equacionam a fuga, apesar do filósofo estar convicto de que a morte será preferível à vida. Depois de os convencer da inevitabilidade do destino para si traçado pelo tribunal ateniense, começa a arquitetar-se a utopia de um mundo livre, através da formação de um grupo terrorista e de uma Academia que perpetue, para lá da vida, o seu pensamento.
Em A Vida de John Smith, o filósofo acorda do longo sono da morte no corpo de John Smith e, muito provavelmente, num outro planeta. Aos amigos que conheceu, enquanto Sócrates, junta-se um trio de fiéis seguidores da Academia que o irão guiar pelo mundo que germinou da utopia, e que forma uma comunidade que dá primazia à alma em detrimento do corpo. Porém, uma ameaça real e humanamente monstruosa está prestes a surgir.
Apesar de construídos como episódios de uma só peça, os espetáculos podem ser vistos individualmente.
Aparentemente, o vosso trabalho é muito diferente mas, o certo é que esta é a segunda vez que encenam juntos…
Ricardo Neves-Neves (RNN) – Tanto a João como eu fazemos um trabalho mais parecido do que aquilo que aparenta…
Maria João Luís (MJL) – Até podemos não ter o mesmo gosto – aliás, como se comprova pela forma como viemos vestidos! Mas, vendo bem, tudo combina, mesmo que não se perceba porquê. [risos]
Mas gostaríamos de tentar perceber como combinam, ainda mais com um texto como o de Carroll…
RNN – Há determinadas zonas… a João tem uma proximidade muito forte com o surrealismo e eu com o non sense e o absurdo. A Alice é um texto com muito destes dois géneros: há muito de surrealismo no non sense e no absurdo e há muito de non sense e absurdo no surrealismo. E, para mim, fazer a Alice parte de uma vontade de continuar a trabalhar autores que tocam o absurdo, desde as aproximações que fiz a [Edward] Albee, a Martin Crimp, a Copi ou a [Karl] Valentin (que, por sinal, a João encenou antes de mim). O Lewis Carroll faz, digamos assim, parte desse estudo que tenho vindo a realizar e que encontra lugar nos espetáculos que tenho encenado.
MJL – Também me interessa esse lado de pesquisa. Apesar do meu universo ser mais em torno do surrealismo, ou a procura do que isso é – as explicações nunca me convenceram, acho-as mesmo vagas, e há uma coisa de que estou certa: a expressão “isto é surrealista” não se aplica de todo! Analisando bem, o apelo da Alice remonta ao tempo em que tive as bandas de rock e me ocorria esse universo, como se pudesse transportá-lo para uma zona de rockalhada pura que extravasasse com tanta energia todas as possibilidades através da música. Até porque, à semelhança do rock, este é um texto de extrema irreverência.
Isso justifica a música ao vivo no espetáculo, e mais concretamente a presença da banda rock Sinistros?
MJL – Tanto eu como o Ricardo gostamos muito de música nos espetáculos. Mas, para além do rock dos Sinistro, vamos ter uma banda de jazz em palco. E ainda 14 atores a interpretarem as 48 personagens do romance.
Como é que nasceu a vontade de adaptar o livro?
RNN – Como o Conto de Natal correu tão bem, a João desafiou-me logo para fazermos uma Alice. E aquilo despertou-me para uma memória do verão de 2004 quando, durante as férias do Conservatório, li o romance. Tem piada que o meu livro está todo inchado por causa daquele número do ir à água, vir a onda e molhar tudo. [risos]
MJL – Pessoalmente, considero o livro belíssimo e lê-lo do ponto de vista da protagonista ser uma criança é delicioso. Se retirarmos as interpretações freudianas, toda a psicanálise e tantas outras perspetivas, o que fica é um texto de uma riqueza incrível que nos permite a todos voar e fazer uma interpretação livre. Aliás, ver a Alice no País das Maravilhas da perspetiva dessa criança que está a crescer, que está prestes a entrar na idade adulta, perceber que ela é educada e detentora de uma enorme inteligência, capaz de ver mundos, é magnífico.
Mas, nesta vossa adaptação, propõe-se ao espectador uma perspetiva concreta sobre o romance?
RNN – O texto oferece muitas possibilidades – basta lembrar que já tocou todas as artes, do cinema ao teatro, da dança à banda desenhada. Há um risco grande em apontar uma perspetiva determinada, precisamente porque toda a gente o conhece e tem uma opinião. Dentro da enorme irreverência de que a João falava, a Alice permite múltiplas leituras. É como se tivesse uma dignidade própria, uma consciência do seu lugar no mundo. Daí que, enquanto fazia a adaptação e a íamos discutindo, percebemos que poderíamos lê-lo como um texto diretamente político. Cheguei a pensar, por exemplo, que poderíamos fazer a Alice como Che Guevara em Cuba [risos], precisamente porque, há tiradas que seriam viáveis nesse contexto…
MJL – Poderia muito ter sido, porque a Alice é uma criança que descobre, a dada altura, como dizer “não”, e isso pode ser político. Mas, podemos meramente entendê-lo como sintoma da entrada na idade adulta, do assumir aquilo que ser quer e não quer, de ter e afirmar uma opinião. Talvez o livro seja tão só isso. Tal como pretendemos que o nosso espetáculo seja, até porque é um objeto feito com uma enorme liberdade criativa.
RNN – Em suma, todas as conclusões que o espectador possa tirar acontecem do mesmo modo que nós tiramos enquanto leitores, ou seja, não vamos impor-lhe um outro contexto, um outro espaço, um outro tempo. São aquelas palavras, é o século XIX, é a Inglaterra Vitoriana.
Como é que se coloca num palco uma obra tão simbólica e visual, repleta de personagens antropomórficas e com dotes que extravasam leis da física, por exemplo?
RNN – Temos a sorte de estar a trabalhar com a cenógrafa Ângela dos Santos Rocha que concebeu um cenário que mexe muito com a encenação: um espelho gigante que vai permitir criar ambientes, desafiar a gravidade, colocar atores a nadar, a voar, permitir truques que se justificam no nosso conceito de trabalho. E depois há toda uma equipa muito experimentada, com a Cidália Espadinha na caraterização [responsável pelo extraordinário trabalho no espetáculo de Neves-Neves e Filipe Raposo Banda Sonora], a Rafaela Mapril nos figurinos, o Pedro Domingos na luz, etc.
É um espetáculo para crianças?
RNN – É um espetáculo para todos aqueles, crianças e adultos, que tenham sentido de humor e imaginação para o receber. Acho que nada impede uma criança de seis anos de o ir ver e gostar, mas acho que para ser recebido de uma forma plena, um pouco mais de idade será o acertado. E tudo porque há a questão da linguagem, o modo como a dominamos, e ela define sempre o modo como encaramos o mundo. Não é, propriamente, preciso ser criança para o ver, até porque rir e sonhar não pode ser uma coisa do passado.
MJL – Essa questão da linguagem é muito importante. Afinal, este é um texto que permite cortar com uma lógica de pensamento: as palavras guiam-nos, mas não se impõem, não nos caem em cima e nos esmagam. Alice é um livro onde a linguagem está constantemente a ser desfeita e a lógica a ser ludibriada. O nosso espetáculo é-lhe fiel, por isso, diria mesmo que precisamos que os espetadores sejam como a Alice: vão atrás do coelho, entrem na toca e corram atrás dele.
Maria Teresa Horta
Estranhezas
“De súbito Dürer… / a asa que pintaste / há séculos / ganha voo/ com a sua dúctil / e indócil beleza / Com a sua estranheza”. O signo da asa, que a capa de Dürer bem afirma, paira sobre o mais recente livro de poemas de Maria Teresa Horta. Sem iludir (como nos demais livros não-temáticos) uma unidade essencial, «Estranhezas» desdobra-se por sete capítulos que não encobrem uma continuidade quase vital: No Espelho, Paixão, Da Beleza, Alteridades, Tumulto, Ferocidades e À Beira do Abismo. É que se o eu horteano está bem patente nos primeiro, segundo e último capítulos, os outros e outras de Alteridades, Tumulto e Ferocidades são magníficos desenhos traçados pela mesma mão que escreveu os primeiros. Lê-se este livro como quem “chora de beleza” ao subir as escadarias do Louvre e vê de, “asas abertas”, “um belíssimo anjo degolado na sua veste feminina”: a Vitória de Samotrácia.
Dom Quixote
Maria Filomena Mónica
Nunca Dancei num Coreto
Há um momento na vida em que a generalidade das pessoas começa a pensar em coisas que ficarão definitivamente por fazer. Esta espécie de nostalgia do não acontecido é própria de um estado melancólico que se deseja efémero. Efémero é também o adjetivo que Maria Filomena Mónica (MFM) usa para caracterizar a escrita para jornais. Qual o interesse de ler hoje uma crónica do dia anterior, da semana passada ou com alguns anos? A resposta não está no assunto, que poderá ter ficado desatualizado, mas na sobriedade da escrita e na acutilância do pensamento. Nenhum texto, por curto que seja, será então passageiro. É isto que encontramos nas crónicas de MFM, que nos últimos sete anos têm vindo a ser publicadas quinzenalmente no Expresso. Sejam os assuntos mundanos ou privados, a qualidade é a mesma. Nunca um excesso de sentimentalidade manchará uma memória pessoal, assim como nenhuma observação de carácter sociológico dispensa a objectividade dos números que reforçam a argumentação da autora. RG
Relógio D’Água
Margaret Atwood
A Odisseia de Penélope
As recentes adaptações televisivas de The Handmaid’s Tale e Alias Grace tornaram a escritora Margaret Atwood numa celebridade. Porém, a autora, eterna nomeada ao Nobel de Literatura, era já um nome de culto entre os leitores mais atentos. The Handmaid’s Tale, originalmente publicado em 1985, vendeu milhões de exemplares, deu origem a um filme (com argumento de Harold Pinter e realização de Volker Schlöndorff), a uma ópera de Poul Ruders e afirmou-se como alegoria política digna de Admirável Mundo Novo ou de 1984. Lamentavelmente, esta notoriedade não se estende à sua notável obra poética, remetida à semiobscuridade pela fama de romancista. Penélope é uma figura de mulher imortalizada pelas suas virtudes passivas: durante 20 anos esperou fiel e pacientemente o regresso a casa do marido, Ulisses. Protagonista desta versão da “odisseia no feminino”, revela-se uma criatura inteligente e pragmática, que com profundo espirito crítico desfaz mitos e repõe a sua visão da realidade, com a mesma habilidade com que tece e destece os fios do seu tear.
Elsinore
Patrick Modiano
Lembranças Adormecidas
“Paris, para mim, está juncada de fantasmas, tão numerosos com as estações de metro e todos os seus pontos luminosos, quando carregávamos nos botões do painel de correspondências”. No seu primeiro romance pós-Nobel, Modiano escreve sobre a memória de seis mulheres encontradas e perdidas pelo narrador nos anos sessenta, Uma personagem refere-se a uma dessas silhuetas femininas como “alguém que caminha ao lado da sua vida”. Há, de facto, algo de espectral neste conjunto de mulheres que surgem não se sabe de onde e desaparecem sem deixar rasto. O protagonismo pertence, porém, como vem sendo habitual na obra do autor, à cidade de Paris, mais concretamente às suas ruas onde estes encontros e desencontros têm lugar. Existe qualquer coisa de livro sonhado neste belíssimo romance, sublinhado desde logo pelo título: Souvenirs Dormants (Lembranças Adormecidas): um conjunto de recordações que se esfumam “ como as palavras que acabamos de ouvir num sonho e nos fogem ao despertar.”
Sextante
João Carlos Alvim
A Confraria dos Espectros
João Carlos Alvim foi co-fundador da Assírio & Alvim, em 1972, e director editorial das Publicações Dom Quixote e da Bertrand. Mais tarde co-fundou a Bizâncio e foi consultor editorial para a Livros do Brasil, a Ulisseia e a Campo das Letras. Traduziu alguns autores que muito aprecia (Isaac Bashevis Singer, Marguerite Duras, Éric Vuillard). O seu primeiro romance, A Confraria dos Espectros, é uma história romântica e dramática, cheia de melancolia e de ação, sobre a imparável ascensão da Europa liberal e as ilusões dos que tentaram opor-se-lhe. A narrativa inicia-se em Lisboa, em Julho de 1833 e estende-se até Nova Iorque, no ano de 1911. Qual a influência da Confraria dos Espectros no reordenamento político da Europa? Que intrigas se produziram, nesses anos do século XIX, entre os gabinetes dourados da realeza e da diplomacia, as alcovas e os salões das grandes figuras da época e a escória das ruas e do crime?
A Esfera dos Livros
João de Melo
As Coisas da Alma
O volume As Coisas da Alma e Outras histórias em Conto reúne 18 curtas narrativas. Desses contos, 15 pertencem á edição original e a duas edições datadas de 203 e 2005. Dos restantes um é inédito e os outros dois, em versão mais elaborada, provém de publicações de circunstância. São histórias sobre um filho que procura o pai que nunca conheceu, um homem que quer o funeral discreto e mais humilde possível, um marido que vive sob o domínio da mulher, uma criança que assiste á partida da tia decidida a emigrar para o Brasil ou um professor de história divido entre a atracção pelo corpo atlético de uma mulher e amabilidade de outra. Retratos sensíveis da condição humana naquilo que (citando a frase de Teixeira de Pascoaes que serve de epígrafe à presente edição) mais tem de “imanente”: a alma. Os contos já conhecidos sofreram significativas alterações na prosa, assim justificadas pelo autor: “Fi-lo com toda a naturalidade: julgo pertencer ao número dos descontentes por natureza e a paixão – que nunca dão por finda a obra começada.”
Dom Quixote
Inês Fonseca Santos
José Saramago, Homem-Rio
Serralheiro mecânico, escritor, editor, crítico, tradutor e jornalista, José Saramago, prémio Nobel de Literatura, foi múltiplo como só um escritor o sabe ser. O escritor é um homem-rio “com tantas margens quantas as palavras que existem”. O “lugar onde desagua, onde termina, toda a gente sabe que um escritor só morre quando desaparece o seu último leitor”. Com magníficas ilustrações de João Maio Pinto, de uma sugestiva linguagem pop, esta é a obra ideal para introduzir novos leitores na vida e obra de José Saramago.
Pato Lógico/INCM
Jules Verne
Miguel Strogoff
O mundo possui seis continentes: Europa, África, Ásia, América, Austrália e Júlio Verne.” Desta forma se referiu o escritor francês Claude Roy ao pai do romance de antecipação científica. Jules Verne (1828/1905), senhor de um singular poder visionário, descreveu, com um misto de realidade e fantasia, a conquista da terra, dos mares e do céu. Múltiplas gerações de leitores cresceram na companhia das suas obras. Apesar dos avanços da ciência e da tecnologia, os seus livros permanecem como um dos mais perfeitos exemplos da celebração do espírito de aventura humano. Miguel Strogoff, clássico do romance de aventuras e impressivo retrato da Rússia, nação dividida por várias culturas e realidades, que o autor nunca visitou, mas que conhecia através de relatos de colegas da Sociedade de Geografia. O protagonista, correio secreto do Czar, é enviado numa perigosa missão secreta para evitar a derrocada do império.
E-Primatur
O engenheiro Duarte Pacheco foi Presidente da Câmara Municipal de Lisboa por apenas alguns meses. Ao contrário do epíteto que lhe dedicou poeticamente Cotinelli Telmo e que serve de título a este artigo, para além de sonhador, Duarte Pacheco foi um impressionante fazedor a quem o Governo recorreu quando era preciso concretizar e depressa. Foi o que aconteceu em 1938, quando é de novo chamado ao Governo, para que se possam cumprir os ambiciosos projetos nacionais então lançados, entre os quais a Exposição do Mundo Português, o Plano da Costa do Sol e a consequente transformação da zona ocidental da cidade.
A sua presença em Lisboa remonta a 1917, quando se matricula no Instituto Superior Técnico (IST). Nascido em Loulé, a 19 de abril de 1900, Duarte José Pacheco foi o quarto filho de um total de onze, quatro rapazes e sete raparigas, de uma família de classe média alta, com ligações à administração pública e à política. Seu pai foi Chefe de Repartição de Finanças de Loulé, monárquico convicto e membro do Partido Regenerador e seu tio, Governador Civil de Faro. Órfão de mãe aos seis e de pai aos catorze anos de idade, concluiu o liceu em Loulé e Faro, com média de 17 valores. O seu irmão mais velho, Humberto, matriculou-se em 1916 no Instituto Superior Tècnico, Duarte seguir-lhe-ia os passos um ano mais tarde e com ele partilharia residência, na Rua do Século.
O IST viria a ser, em muitos aspetos, o modelo que Duarte Pacheco aplicaria com tanto sucesso ao longo da sua vida. Desde logo pelo entendimento que os objetivos perseguidos com afinco se podem sobrepor aos constrangimentos formais: a sua nomeação como professor interino e logo depois ordinário foi uma exceção no meio académico, onde a sua juventude e falta de currículo levantaram fortes objeções. Por comparação, o seu companheiro em tantas obras, Porfírio Pardal Monteiro, demoraria 12 anos a fazer o mesmo percurso. Convém aqui recordar que o IST funcionava em instalações consideradas desadequadas e mesmo anti-higiénicas (merecendo o cognome de Barracão da Boavista) e que há anos que o seu fundador e primeiro diretor, Alfredo Bensaúde, lutava por novas instalações que estivessem à altura das exigências modernas do ensino. Duarte Pacheco foi reconhecido como instrumental neste processo, o homem que seria capaz de fazer acontecer a revolução. Nos dois anos que decorreram entre a conclusão do curso de Engenheiro Electrotécnico e a sua admissão como professor, desenvolveu a amizade com Caetano Maria Beirão da Veiga, que se provaria fundamental. Este professor catedrático de Contabilidade, foi por diversos períodos diretor interino do IST e também vereador da Câmara Municipal de Lisboa (1923), para além de administrador delegado da Empresa Nacional de Publicidade, detentora do Diário de Notícias. Os dois desenvolveram o que Beirão da Veiga mais tarde classificaria de uma amizade quase paternal, e através dele, Duarte Pacheco terá tido acesso a muita informação crucial para o projeto do novo edifício do Técnico.
Como professor efetivo a partir de 1926, Duarte Pacheco teve acesso ao Conselho Escolar. Na sua primeira participação, usou da palavra para explicar a sua opinião e o método que viria a usar ao longo da vida: análise das situações, identificação dos erros, definição de prioridades e construção de soluções. Neste caso a solução que apresentou foi a de fazer pressão junto dos poderes públicos, particularmente do Ministro do Comércio, defendendo que a reforma do ensino pretendida pelo governo deveria estar consubstanciada numa obra concreta, as novas instalações do IST. A resposta do poder político veio em 1927, com a publicação de legislação que consagrou as pretensões do Técnico, tendo sido também nesse ano que o Conselho Escolar delegou em Duarte Pacheco a coordenação da operação. É da sua iniciativa a escolha do terreno para o novo IST. A 25 de fevereiro desse ano de 1927, Duarte Pacheco informara o Conselho Escolar de que já tinham sido iniciadas conversações com o proprietário do terreno, no Arco do Cego, nas imediações do primeiro e ainda inacabado bairro social de Lisboa. Com acesso ao crédito disponibilizado pelo Estado, o IST procede à aquisição de uma área de terreno bastante superior à estritamente necessária para o projeto, sem qualquer ilegalidade, visto que estava consignada na lei (Decreto 13 113 de 1 de Fevereiro de 1927). Estas parcelas suplementares viriam a ser negociadas com instituições do Estado e com particulares, gerando mais valias para financiar o IST. Para além de prédios de rendimento refira-se o caso do Instituto Nacional de Estatística e da Casa da Moeda, ambos edificados em terrenos do Técnico. Ao tornar-se indissociável da obra, torna-se lógico que Duarte Pacheco tenha sido nomeado Diretor do Instituto, ainda que tivesse apenas 27 anos. O facto é que, como se veio a dizer mais tarde, antes de Duarte Pacheco, nada se conseguiu e depois dele, pouco se acrescentou. Enquanto foi vivo, o Engenheiro sempre acarinhou este projeto e depois da sua morte, não se chegariam a construir o Pavilhão de Hidráulica e o Laboratório de Máquinas previstos no plano inicial. O complexo do IST é considerado a primeira grande obra pública moderna e foi também o primeiro alicerce da reputação de Duarte Pacheco.
É de referir que o trabalho de Duarte Pacheco não se restringiu à obra. Também no plano estrito da educação foi interventivo na modernização do ensino, o que lhe terá justificado o convite para integrar o governo de Vicente de Freitas, na qualidade de Ministro da Instrução Pública. É já como ministro e em virtude das suas demonstradas qualidades de persuasão que lhe é acometida a célebre tarefa de convencer um renitente Oliveira Salazar a aceitar a pasta das Finanças, com o sucesso que se sabe.
Com a criação do Ministério das Obras Públicas, a 5 de Julho de 1932, Duarte Pacheco vai aplicar o seu método de trabalho já testado: estudo dos problemas, constituição de equipas técnicas multifacetadas, planeamento e execução. Seguidamente, criar os instrumentos legais que se adequassem ao plano e à celeridade da ação.
Do seu legado relativo a Lisboa, vale a pena referir dois instrumentos estruturantes que marcaram o desenvolvimento da cidade, o Plano Diretor de Lisboa e o Plano de Urbanização da Costa do Sol (PUCS), desenvolvidos com o apoio de dois experientes urbanistas, Donat Alfred Agache e o seu colaborador Etienne de Groer.
Ao estabelecer as regras e o fundamentos para a atuação ao nível das obras públicas e, com base nestas premissas planear o desenvolvimento, Duarte Pacheco ficará associado à grande maioria das principais obras do país durante largos anos. Muitas das suas directivas estiveram em vigor até aos anos 90 do século passado. A sua morte prematura e trágica num acidente automóvel em Vendas Novas no dia 16 de dezembro do 1943 levou a que o Engenheiro não assistisse à conclusão de muitos dos projectos que lançou. Ao observar de relance o seu percurso, fica-se com a sensação de que provavelmente não o afetaria estar ausente das inaugurações e que era em tudo o que as precedia que se realizava pessoalmente.
Como seria de esperar, nem tudo foi consensual no percurso de Duarte Pacheco. Em virtude das expropriações que os seus planos implicaram, em 1938 uma comissão de técnicos industriais, comerciantes e representantes de proprietários, envia uma carta ao Ministro do Interior, criticando duramente a atuação de Duarte Pacheco. Acusavam-no de megalomania insana, de ter transformado a CML num manicómio Municipal e numa Câmara de Negócios e de favorecer amigos como Pardal Monteiro e Cristino da Silva. Para rematar, um insulto supremo, o de parecer um bolchevista encapotado e inimigo do Estado Novo, ao atacar a propriedade privada.
A magnitude da sua intervenção gerou, por outro lado, comparações um tanto expectáveis com o Marquês de Pombal. Se Pombal fez o centro da cidade, Duarte Pacheco projectou a sua expansão e organização. Como refere Sandra Vaz Costa na obra já citada e que é a principal fonte deste artigo, Pombal e Duarte Pacheco, salvaguardadas as diferenças de escala, chamaram ao Estado a autoridade e a competência na ordenação do território e planificaram e construíram a cidade num modelo maior que a vida de um governo ou de uma geração.
No âmbito desta efeméride, o Gabinete de Estudos Olisiponenses organiza uma mostra alusiva à vida e obra do Engenheiro Duarte Pacheco, e apresenta uma conferência de Sandra Vaz Costa no dia 15 de novembro, pelas 18h30, intitulada Lisboa: a obra capital de Duarte Pacheco.
CRONOLOGIA
19 abril de 1900 – Nascimento em Loulé
1917 – Ingresso no Instituto Superior Técnico
1923 – Termina o Curso de Engenharia Electrotécnica com 19 valores
8 de outubro de 1925 – Professor Interino de de Matemáticas Gerais
1926 – Professor ordinário e Diretor Interino do IST
10 agosto 1927 – Diretor do IST
19 abril 1928 – Ministro da Instrução Pública
10 novembro de 1928 – Regressa à Direção do IST
5 julho 1932 – Ministro das Obras Públicas e Comunicações (MOPC)
18 janeiro de 1936 – Regressa à Direção do IST
1 janeiro de 1938 – Presidente da CML
26 maio 1938 – Ministro das Obras Públicas e Comunicações
16 novembro de 1943 – Falecimento
Nem o tempo vence o mito e, não fossem as vicissitudes da vida, Don Juan teria sobrevivido à Lisboa deste século, entre hordas de turistas e obscuras oportunidades de negócio. Mas, a arte da sedução já não é o que era e o mais venturoso dos libertinos acaba tolhido por uma facada em plena Avenida da Liberdade. Até esse derradeiro acontecimento, o sedutor não deixa os seus atributos por mãos alheias e, com maior ou menor dificuldade, por entre conquistas, trapaças, artes mágicas e saltos no tempo, não há morto nem vivo que lhe consiga deitar a mão. Se bem que ser Don Juan nos dias que correm não é propriamente como sê-lo no seu tempo. E isso, como se percebe na segunda parte da peça, pode acabar em desfecho trágico.
Escrita por Pedro Gil após uma visita ao Aljube, onde o ator e encenador recordou o rol de “Nãos” do salazarismo – NÃO discutimos a pátria, NÃO discutimos a autoridade, NÃO discutimos a família, NÃO discutimos o trabalho e NÃO discutimos Deus –, Don Juan esfaqueado na Avenida da Liberdade é uma comédia “mirabolante” sobre o famoso “vilão que questiona as coisas e deixa atrás de si um rasto de destruição. Mas sempre com qualidade!”
“Foi desde sempre uma personagem que me fascinou e, quando me deparei, no Aljube, com aqueles Nãos ali inscritos ocorreu-me que quem melhor do que esta figura os poderia subverter e destruir com elegância e sedução”, conta o autor. “Don Juan é, por excelência, o blasfemo, o anti patriótico, o amoral, o aventureiro”, uma figura do século XVII que até pode encaixar como uma luva neste século XXI, “onde o grande negócio é a mentira”, como se perceberá na peça, quando o sevilhano decide liderar, através do YouTube, uma seita que fatura com o embuste.
Num espetáculo que recorre saudavelmente ao engano, ao ridículo e ao grotesco, Pedro Gil justifica a opção de trazer para os dias de hoje Don Juan pela acutilância de “trabalhar, literalmente, um clássico que produziu em todas as artes largas centenas de versões”. A leitura que Gil faz do mito pauta-se pelo humor, e até pela imprevisibilidade de situações caricatas em catadupa que, ao longo de mais de duas horas, trocam por completo as voltas ao espectador. Sem pruridos nem pingo de moralidade, como convém ao caráter do libertino aventureiro de Sevilha. Aquele que, afinal, encontrou a morte em Lisboa, tantos séculos depois das suas mais célebres façanhas.
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