Referiu numa entrevista que considerava a criação contemporânea demasiado ligada a aspectos formais e tecnológicos e que seria preciso voltar a facetas mais humanas e de intervenção. A programação que hoje apresentou reflete essa preocupação?

Não é tanto algo que eu considere que deveria acontecer, é mais uma observação do que está a acontecer na prática. Houve um período em que os artistas estavam muito interessados nos elementos mais formais da criação, por exemplo em juntar tecnologias como o vídeo ou outras. Artistas como John Cage ou Merce Cunningham foram aos limites conceptuais da música e da dança, tentaram ultrapassar as fronteiras da ideia comum que existia sobre estas formas de arte. Foi um período muito interessante e provavelmente necessário para abrir a nossa percepção e as nossas próprias definições sobre o que é a arte. Porém, nos últimos dez anos, aproximadamente – é difícil apontar uma data específica – há um maior interesse nas pessoas. O facto de muitos criadores estarem a trabalhar em áreas como o documentário, é um sinal disso. Também é visível no teatro, onde assistimos a um regresso à vida real, às pessoas e às suas vidas. Um bom exemplo é o espectáculo 100% Lisboa, que está na nossa programação (fevereiro 2019), onde os Rimini Protokoll trabalham com pessoas que não são atores, mas utilizam as suas experiências de vida, integrando-os no seu espectáculo. Não existe um texto de base, ele é criado pelas 100 pessoas que intervêm, selecionadas com o objetivo de traduzirem demograficamente a sociedade portuguesa.

A programação inclui uma série de eventos que têm como denominador comum a tristeza. Como nasceu esta ideia?

Está centrada no espectáculo Triste in English from Spanish da Sónia Baptista. Quando o vi, gostei muito do modo como ela trata o tema e a grande relevância do mesmo. Estamos a viver numa sociedade onde não há muito lugar para as pessoas que falham, para os momentos em que já não temos forças. Precisamos de momentos para a tristeza, para a perda, para o não-funcionar. Vale a pena pôr este tema em cima da mesa e dar-lhe a atenção devida. O espectáculo faz isso de uma maneira muito bonita. Tem uma grande fragilidade e é também muito generoso e muito bem concebido. Fala também sobre a depressão, um problema cada vez mais generalizado na sociedade e que tem pouco espaço de reflexão. Decidimos usar este tema e aprofundá-lo na programação. A ideia de poder aumentar o alcance de um espectáculo é algo que me agrada muito, porque permite focar várias maneiras de olhar para os temas e tocar em públicos diferentes. Pessoas que têm interesse no assunto mas que não vão regularmente ao teatro, podem sentir-se atraídas pelo tema e pelo que um artista tem a dizer sobre ele.

Esse aspeto tem a ver com a vossa intenção de alargar e atrair novos públicos, de ultrapassar um certo conceito de nicho que é por vezes associado à criação contemporânea?

Há muitos espectáculos que se podem caracterizar como arte contemporânea que são muito acessíveis, que não são, por assim dizer, ‘difíceis’. Como disse, houve tempos em que artistas como o John Cage iam aos limites dos limites e nessa pesquisa podiam levar a um certo afastamento do público, mas acho que estamos numa altura em que os próprios artistas querem sair disso. Procuram públicos maiores e falar de coisas que as pessoas entendem. Não estou a inventar nada, é uma coisa que está a acontecer na criação contemporânea. O Jérôme Bel, por exemplo, é um artista que começou por trabalhar na dança de um modo muito conceptual, muito à procura dos limites da dança mas que foi evoluindo até ficar quase obcecado com a percepção do público. Estava muito preocupado, embora de um modo saudável, com a inteligibilidade da sua obra e assistia a todas as sessões para avaliar a resposta da assistência. Há cada vez mais artistas a pensar assim.

Na apresentação da programação falou também numa preocupação com a escala. Em que consiste?

A programação da Culturgest incluía muitos espectáculos de menores dimensões, recorrendo a espaços menores ou ao redimensionamento da sala, com o palco no centro e com construção de bancadas em redor, por exemplo. Decidimos apostar mais na sala tal como ela é, com 600 lugares, e imaginar uma programação que funcione neste espaço. Sem perder a alma da Culturgest e da sua missão criação contemporânea, queremos integrar propostas para chegar a um público mais alargado.

Há muita oferta neste tipo de produções?

É mais difícil e há menos oferta, sobretudo em Portugal. Com a falta de meios, quase ninguém arrisca em produções com mais de dez artistas ou com grandes cenários. Pretendemos criar um mercado e apoiar este tipo de trabalhos, desafiando artistas que têm experiência e know-how em espectáculos desta dimensão. É importante que uma produção nacional não fique limitada por condições económicas. Eu próprio tenho um grande amor pela criação experimental, de pequenas dimensões, como foi visível no meu trabalho no Maria Matos, mas penso que a Culturgest tem outra vocação, pela própria arquitetura do espaço. Gosto muito da sala principal que, apesar de ser de uma dimensão considerável, permite uma proximidade muito boa com o palco.

Neste âmbito, quais os espectáculos que destacaria na programação?

Sem dúvida, o Ballet Rosas já em outubro. É uma combinação de artistas de grande nível e com grande experiência. A Anne Teresa de Keersmaeker é desde logo uma rainha da dança a nível internacional. Conta ainda com 18 bailarinos em palco e com a participação do ensemble B’Rock, uma orquestra barroca muito inovadora, e com os concertos Brandeburgueses de Bach, que é uma obra deslumbrante. É um tipo de proposta que pode atrair um público mais alargado, pela sua dimensão e grandeza. Destaco também outros dois espectáculos de maior dimensão. O 100% Lisboa, é um espectáculo extraordinário, inusitado e é uma grande festa. Nasceu no Hebbel Theater de Berlim, onde convidaram os Rimini Protokoll para fazer uma criação de comemoração do centenário do teatro. Foi um sucesso tal que muitos programadores os convidaram a repetir o formato nas suas cidades. Há anos que tinha vontade de trazer este espectáculo a Lisboa mas o Teatro Maria Matos não tinha a dimensão adequada. Posso mencionar também o espectáculo Happy Island, que a coreógrafa La Ribot e a cineasta Raquel Freire criaram com a companhia de dança inclusiva madeirense Dançando com a Diferença, em cena a 23 de novembro. Estreou na Suíça, onde foi muito bem recebido.

Outra das apostas são as co-produções nacionais. Estão em preparação?

Felizmente, quando fui convidado em outubro de 2017, tinha a programação do ano já fechada pelo Miguel Lobo Antunes. Foi importante ter este tempo para preparação. Os espectáculos desta dimensão levam cerca de ano e meio a preparar, pelo que irão aparecer na segunda metade da temporada, já em 2019.

Porque optaram por uma programação semestral?

Originalmente pensámos numa programação anual mas na área da música e das conferências tornava-se muito complicado. No teatro e na dança, o agendamento anual é a prática normal, mas na música e nas conferências os prazos têm de ser mais curtos. O prazo de seis meses também nos dá tempo de fazer uma melhor divulgação.

Mudaram também a imagem institucional, desde o logótipo à sinalética. É uma lavagem de cara relativa aos 25 anos?

Havia uma necessidade muito prática, o website da Culturgest estava muito antiquado. Foi feito há 15 anos atrás com base numa programação muito antiga e pouco interativa. A partir dessa intervenção optámos por uma mudança mais abrangente. Era importante criar uma nova imagem e dar uma ideia de frescura, de um novo ciclo que vai começar, o que é sempre apelativo. Na área da cultura é normal mudar a imagem periodicamente e este era um bom momento para o fazer.

Os programadores das diferentes áreas foram todos escolha sua?

O Delfim Sardo (Artes Visuais) já tinha sido convidado pelo Miguel Lobo Antunes, mas como gosto muito do trabalho dele não tive qualquer dúvida em mantê-lo, foi um acaso feliz. A Raquel Ribeiro dos Santos (Participação, Famílias e Escolas) também já fazia parte da equipa de programação. Temos estado a trabalhar numa reformulação desta área para incluir um trabalho mais alargado na captação de públicos. As obras artísticas valem por si mas queremos enriquecê-las com outro tipo de propostas que as podem complementar com leituras mais amplas. A Liliana Coutinho (Conferências e Debates) e o Pedro Santos (Música) são convites meus. Sou um espectador muito regular do trabalho do Pedro, que muito aprecio. Na área da Liliana procuramos fazer um trabalho de colaboração com as universidades, que também têm interesse em sair da sua bolha académica. Ela está muito actualizada nessa área que pretendemos trazer para fora do universo exclusivo dos estudantes e da academia. Há coisas muito interessantes que passam despercebidas ao grande público.

O Mark Deputter é Belga flamengo e vive em Portugal há vários anos. Sente-se mais português ou belga, ou estrangeiro em ambos países?

Acho que nós somos várias coisas, cada um de nós é várias pessoas. Quando se é estrangeiro num país sentimo-nos sempre um pouco de fora. É curioso que agora sinto muito isso na Bélgica, mais do que aqui. Neste ponto de vista, sinto-me mais português que Belga. Gosto de lá ir mas sinto-me mais deslocado. Já são 20 anos em Portugal e estar casado com uma portuguesa e com dois filhos, também ajuda. Obriga-me a adquirir outros vocabulários. Falo português e flamengo com os meus filhos, mas torna-se mais difícil à medida que eles vão expandindo o vocabulário. Há um passado que é fundamental e que não se consegue recriar. No entanto, o  meu passado é na Bélgica, todas as minhas referências de filmes, de televisão, contactos que se fazem em jovem adulto, nas aulas, nas vivências, são sempre marcantes.

E no modo de trabalhar, há diferenças?

Sim, é um pouco diferente, mas gosto mais de como se faz aqui. Há pequenas coisas que nunca vou aprender, como o hábito de chegar atrasado. Não consigo. Melhorou muito, mas no início era muito frequente. As pessoas chegavam com meia hora de atraso e nem achavam estranho, não viam a necessidade de pedir desculpa. Tive de aprender a ter paciência com isto.

Mário-Henrique Leiria

Poesia

E-Primatur

Mário-Henrique Leiria (1923-1980), escritor experimentalista, distinguiu-se nos géneros de vanguarda da sua época como a ficção cientifica ou o policial psicológico que incorporou no surrealismo, movimento ao qual sempre se manteve próximo. Espírito inconformista de ironia contundente, escolheu como alvos principais da sua obra o capitalismo, a guerra, o estilo de vida da burguesia e todas as formas de violência e autoridade. A edição da sua poesia completa, segundo o prefácio de Tania Martuscelli, organizadora do presente volume, “desnuda o Mário-Henrique Leiria revolucionário, deixando à mostra seu crescimento como artista, homem e ser político”. Documentando toda a sua obra poética que até hoje se pôde encontrar, os inéditos e os dispersos, desde os fins dos anos 30 até aos anos de 1970, revela que no conjunto dos poemas, conquanto de diversos estilos e épocas, se encontra a tão apreciada verve do autor dos famosos Contos do Gin Tonic, que o haveria de tornar num dos nomes de culto da literatura portuguesa do século XX.

António Borges Coelho

Raízes da Expansão Portuguesa

Editorial Caminho

Este livrinho, retirado do mercado duas semanas após a sua primeira edição, valeu ao autor uma longa tarde de interrogatório com a ameaça de revogação da liberdade condicional. Lê-se no auto de declarações de 1 de agosto de 1964, existente na Torre do Tombo: “o declarante desvirtua algumas das páginas mais brilhantes da nossa História, adulterando sacrilegamente os factos e classificando de ‘abutres’ homens que foram heróis e foram santos”. O autor declarou nos autos que a sua intenção ao escrever o livro “foi fazer história”. Nesta obra fundamental, reeditada em 6ª edição, Borges Coelho, entre outras importantes contribuições para a historiografia contemporânea, apresenta como razões do sucesso da expansão marroquina, levada a cabo pelos portugueses no século XV, a vida nómada e tribal que dificultava o avanço da estrutura social marroquina, a superioridade portuguesa nos mares e a vantagem da burguesia lusitana no capitulo da arte militar, que incluía já armas de fogo. O ilustre historiador atribui à alta burguesia marítima agrícola a determinação da expansão dos portugueses.

Manuel Alegre

Todos os poemas São de Amor

Dom Quixote

Parafraseando o título deste livro pode dizer-se que todos os poemas de Manuel Alegre são de amor. De facto, o presente volume reúne poemas de amor escritos entre 1960 e 2015. Entre eles, textos tão célebres como A Rapariga do País de Abril, Nós Voltaremos Sempre em Maio, ou Nambuangongo meu Amor, que Eduardo Lourenço classificou de “Hiroxima moral”. Ainda, Trova do Amor Lusíada (Meu Amor é Marinheiro), dedicado ao grande músico Alain Oulman, e o magnífico soneto As Facas, que conheceram ampla divulgação na voz magistral de Amália Rodrigues. Poemas que refetem, segundo Vasco Graça Moura, “as inflexões épicas e líricas que permitem a recuperação de tantos acentos genuinamente camonianos”, e “constituem alguns dos mais belos poemas de amor do nosso tempo”. A edição completa-se com nove poemas inéditos do Prémio Camões 2017. Poemas de amor que são: “(…) Palavras que te digo sem dizê-las / palavras onde pulsam várias vidas / e são a escrita mesmo se escondidas / e são o canto mesmo sem escrevê-las”.

 

James Baldwin

Se esta Rua Falasse

Alfaguara

James Baldwin (1924-1987) nasceu no Harlem, onde cresceu e estudou. Em 1948, partiu para França, fugindo ao racismo e homofobia dos EUA: “Acabei nas ruas de Paris, com quarenta dólares no bolso, mas com a convicção de que nada de pior me podia acontecer do que já me tinha acontecido no meu país”. Romancista, ensaísta, poeta e ativista dos direitos civis, foi, com Gore Vidal, um dos mais lúcidos espíritos críticos que a América produziu no século XX e um dos seus maiores intérpretes. Este romance narra a relação entre Tish uma jovem de 19 anos e Fonny, de 22, ambos negros. Fonny é preso, injustamente acusado do crime de violação, e os amantes ficam separados por uma fria parede de vidro. Na completa adversidade, a paixão destes jovens confere-lhes uma coragem inesperada e até uma esperança que a realidade não parece justificar. Ao ler esta obra comovente, sobre a dificuldade de ser negro e viver nos EUA, ironicamente apelidados pelo autor de “inferno democrático”, apetece repetir com ele: “The story of the negro in America is the story of America. It is not a pretty story”.

bell hooks

Não Serei Eu Mulher? As mulheres Negras e o Feminismo

Orfeu Negro

Gloria Jean Watkins, conhecida pelo pseudónimo de bell hooks, é uma autora norte-americana, feminista e activista social. A sua extensa obra conta com mais de trinta títulos publicados e incide essencialmente sobre a interseccionalidade da raça, da classe social e do género, e nos modos comos estas categorias produzem sistemas de opressão e dominação reforçando a estrutura capitalista patriarcal. “Nenhum outro grupo na América teve a sua identidade tão rasurada da sociedade quanto as negras. Raramente nos reconhecem como grupo autónomo e distinto dos negros, ou como parte integrante, nesta cultura, do grupo alargado de mulheres”, escreve a autora neste clássico obrigatório da teoria feminista. Por isso, bell hooks, para se compreender como negra, precisou de ir para além “dos muitos livros que as minhas camaradas brancas escreviam  para explicar a emancipação feminina, e conseguir novos modos alternativos e radicais, de pensar o género e o lugar das mulheres”.

Roald Dahl

James e o Pêssego Gigante

Oficina do Livro

A Oficina do Livro reedita este clássico da literatura infanto-juvenil, ilustrado com os deliciosos desenhos originais de Quentin Blake. James, um rapazinho de sete anos, resolve fugir das duas tias medonhas com quem é forçado a viver. Não parte a pé, nem de bicicleta. Lança-se numa extraordinária aventura espacial, a bordo de um pêssego gigante, com um surpreendente grupo de amigos. Roald Dahl (1916/1990) nascido no País de Gales, de origem norueguesa, aventureiro e viajante incansável, tornou-se famoso como escritor para adultos (Contos do Imprevisto) e para crianças. Dotado de um estilo literário elegante e fluido, com relevo para o engenho dos enredos e para as descrições e diálogos pautados pela comicidade, manifesta clara apetência pelo humor negro ao qual não é alheia uma certa perversidade. O seu imaginário decorre das fábulas e contos tradicionais, cujo conteúdo e moral lhe apraz subverter. Na sua obra os pequenos protagonistas encaram as situações difíceis muito melhor do que os adultos, constituindo este facto uma das razões prováveis para o seu imenso sucesso junto do público jovem. Nunca subestima a inteligência do leitor, suscitando a imaginação e espírito crítico da criança para além dos limites a que foi habituada, sobre as noções convencionais do Bem e do Mal e o respeito reverencial teoricamente devido aos mais velhos. James e o Pêssego Gigante é um livro fundamental que ajuda a crescer. Porque as crianças merecem o melhor.

 

David Walliams

As Piores Crianças do Mundo

Porto Editora

Quem são as piores crianças do mundo? A Sofia Sofá – viciada em televisão, tão colada ao sofá que quase se confunde com ele. Ou o João Babão – um rapaz cuja baba o mete em sarilhos tremendos numa simples visita de estudo. E não esqueçamos a Fiona, a Chorona – uma irmã mais velha do pior que só sabe berrar! Em Portugal, as obras de David Walliams Avozinha Gângster, A Doutora Tiradentes, A terrível tia Alberta e A Incrível Fuga do meu Avô estão incluídas no Plano Nacional de Leitura como sugestão de leitura autónoma para o 5.º ano. Os seus livros, tão divertidos, herdaram do grande escritor Roald Dahl o impertinente e delicioso sentido de humor e a relação criativa entre o texto e as sugestivas ilustrações de Tony Ross que, pela rapidez certeira do traço, lembram Quentin Blake, eterno colaborador de Dahl.

 

A Ala dos Namorados surgiu em 1993. Que recordações têm dessa altura?

Manuel Paulo: Um dia o João Gil veio falar comigo, disse que tinha umas letras interessantes do João Monge e desafiou-me a trabalhar sobre elas. Gostei imediatamente, e começámos a trabalhar sobre as letras. De repente tínhamos material com valor suficiente para lhe dar vida. Começámos então a pensar em quem é que podia dar voz ao material que tínhamos. Eu tinha conhecido o Nuno no ano anterior num espetáculo do Carlos Paredes. Na altura ele era contratenor, e lembrei-me que a voz dele talvez se pudesse adequar a algumas das nossas músicas. Falámos com o Nuno, ele ouviu as canções, cantou-as e percebemos que fazia sentido e que o projeto ia funcionar com a voz dele, embora a princípio houvesse alguma estranheza, pelo lado exótico da voz dele.

O Nuno começou por ser bailarino. Como é que a música surge na sua vida?

Nuno Guerreiro: Sempre existiu paralelamente à dança, sempre cantei. De início não dava tanta atenção a esse lado, porque estava mais focado na dança, mas a voz cá andava, e sempre adorei cantar. Apercebia-me que tinha voz porque me pediam frequentemente para cantar em jantares ou festas da escola. Adorava cantar Madredeus, Amália, Vitorino, Zeca Afonso que eram as minhas referências maiores na altura. Depois, numa vertente mais pop e soul, ouvia muito Aretha Franklin e George Michael, que é um dos meus grandes ídolos.

Quando começaram o projeto imaginavam que viriam a ser uma das bandas mais marcantes dessa época?

NG: O primeiro disco teve o seu impacto, mas acho que a Ala dos Namorados foi crescendo gradualmente, e diria que só chegámos ao grande público em 1999 com o Solta-se o Beijo.

MP: Com o primeiro disco criámos uma identidade, mas não foi logo um êxito estrondoso. A Ala dos Namorados passou a existir, e depois foi crescendo. Fizemos muitos concertos, cá dentro e lá fora. Fomos a Marrocos, Canadá, Brasil, Japão… Tivemos sempre trabalho regular, mas com o Solta-se o Beijo (que é uma canção um bocadinho atípica na Ala) chegámos a mais pessoas, o que foi ótimo, porque isso levou-as a quererem ouvir as nossas canções mais antigas.

Qual é a história por trás desta música?

MP: Foi uma canção feita pelo João Gil com letra da Catarina Furtado. Estávamos no Brasil, num camarim, e ele disse que tinha uma canção para nos mostrar, mas não sabia se se adequava muito ao que estávamos habituados a fazer. Só de a ouvir com voz e guitarra achámos logo que funcionava, mas pensámos em dar a volta a canção e dar-lhe o nosso cunho, a nossa sonoridade. Depois a Catarina sugeriu que convidássemos a Sara Tavares para cantar connosco, e funcionou lindamente. É uma das canções que as pessoas mais associam à Ala dos Namorados, a par com o Zé Passarinho, os Loucos de Lisboa, O Fim do Mundo ou o Caçador de Sóis.

Têm conseguido manter-se ao longo de 25 anos. Acham que isso se deve ao facto de misturarem uma série de estilos musicais como o jazz, a pop ou o fado, por ex?

MP: Sim, juntamos todos esses estilos mas sem perder uma identidade muito própria, se não os concertos iam parecer quase uma manta de retalhos. Isso nota-se, por exemplo, no Razão de Ser, um disco que conta com artistas como o Carlos do Carmo ou o Carlão, ou seja, músicos muito diferentes, de áreas distintas da música, com estilos muito diferentes, mas há uma unidade que faz sentido em tudo aquilo.

Nesse disco gravaram novas versões, com colaboração de outros músicos como António Zambujo, Rui Pregal da Cunha ou Raquel Tavares. Foi necessário algum altruísmo para “emprestar” temas vossos a outras vozes?

NG: Acho que até é uma experiência bastante rica, porque as pessoas trazem bastante delas para as canções, o que resulta numa coisa mágica.

MP: A ideia é precisamente essa. Pensámos nas pessoas que se adequavam àquelas canções, porque de facto traziam uma grande mais-valia para o disco.

Em 2008, depois de 15 anos de carreira, decidiram fazer uma pausa. Isso reforçou ainda mais o projeto?

MP: Tínhamos que parar, já estávamos juntos há muitos anos. Foi uma fase de viragem e foi espontâneo, não foi algo pensado. Quisemos fazer outras coisas, arejar, ter novas experiências. Um dia reunimo-nos para um concerto de homenagem ao João Monge e ensaiámos como se tivéssemos estado sempre juntos. Estava tudo debaixo dos dedos, foi incrível. Foi algo natural e é isso que nos mantém juntos. Os concertos são a melhor parte disto, é a justificação de todo o trabalho. A parte de estúdio também gosto muito, de construir, de aperfeiçoar… As músicas que cantamos há 25 anos até reproduzimos a fazer o pino, se for preciso, mas quando as tocamos em frente a um público é como se fossem novas outra vez, e isso é uma sensação muito agradável. A grande prova é tocar ao vivo, e é isso que nos mantém.

Para o álbum Vintage (2016), foram buscar temas intemporais do cancioneiro português. Tiveram receio de “remexer” nestes clássicos, de os desvirtuar de alguma forma?

NG: É sempre arriscado pegar em temas com um valor histórico tão grande, e que foram grandes êxitos no passado.

MP: Para pegar numa canção como As Noites da Madeira, do Max, por ex., tivemos que a tratar com pinças, com extremo respeito, para não a desvirtuar. Ficámos contentes com o resultado, se não também não teríamos deixado o disco sair. Fomos buscar o essencial das canções e tentámos dar-lhes a nossa sonoridade, sem grandes ornamentos.

Em março lançaram o single Culpada, uma homenagem ao universo feminino…

MP: Todos os universos sobre os quais o João Monge escreve, escreve muito bem. O das mulheres é um deles. Um dos grandes motivos que faz rodar este planeta é a mulher, como é evidente. Também não é uma canção muito típica da Ala, é mais para o universo pop, chamemos-lhe assim.

A 13 de outubro festejam 25 anos de carreira no Coliseu, com convidados especiais. Como vai ser esta celebração?

MP: Teremos naturalmente convidados especiais (e algumas surpresas), que fazem parte da história da Ala: o João Gil e o Moz Carrapa, que fazem parte da formação inicial. Teremos também connosco os Shout!, o Rui Veloso, o António Zambujo, o Carlão… Podiam ser muitos mais, mas depois em vez de um concerto teríamos um espetáculo de variedades…[risos]

Qual é o futuro próximo da Ala dos Namorados?

MG: Estamos a pensar fazer um disco ao vivo e, durante o ano que vem, continuaremos em tournée.

Durante uma ida ao IKEA, Ele (Luís Araújo) fala-lhe da hipótese de terem um bebé. Ela (Maria Leite) fica sem ar, vive um ataque de pânico e, entre a neurose e o desespero, equaciona os muitos contras de tomarem a decisão de… “fazer uma pessoa”. Afinal, eles já não têm 20 anos e até se consideram “pessoas boas”, instruídas e esclarecidas… Mas o mundo que os rodeia é tão incerto, e a pegada de carbono que implica um novo ser humano equivale ao peso da Torre Eiffel. “Eu daria à luz a Torre Eiffel!”, lamenta Ela.

“À superfície, Pulmões é um drama doméstico, porém a tensão dentro de casa, entre o casal, é um espelho de toda a tensão que existe no mundo”. É deste modo que o encenador e ator Luís Araújo caracteriza este texto rápido e frenético agora representado (em três récitas únicas) no São Luiz.

Embora Pulmões seja, afinal, uma peça sobre um grande amor nestes tempos que vivemos, a encenação privilegia sempre o pronúncio de apocalipse que paira sobre os dois protagonistas – ao longo de hora e meia de espetáculo, eles nunca se tocam, ou como diz o encenador, “tudo é dito pela passividade do que é feito” – num ambiente gélido (brilhantemente proporcionado pelo espaço cénico desenhado por António MV) onde Ele e Ela circulam como cativos. Não havendo forma de fugir, é preciso respirar.

O espetáculo está em cena, de 28 a 30 de setembro, na Sala Mário Viegas do Teatro Municipal São Luiz.

Bem na zona central de Lisboa, na plataforma da estação Roma/Areeiro, dá entrada o comboio suburbano proveniente de Alcântara-Mar com destino a Castanheira do Ribatejo. Sem atrasos dignos de registo, entramos na composição, sabendo que, em pouco menos de um quarto de hora, estaremos sentados no confortável lobby da Biblioteca de Marvila a falar com alguns dos Visionários locais.

Deslizando suavemente pelos carris, o comboio parece transportar-nos para fora da cidade por terrenos baldios, emaranhados de vias rápidas e viadutos que cruzam a linha e estreitas azinhagas que desembocam em pequenas hortas. Como era previsto, em seis meros minutos desembarcávamos no apeadeiro de Marvila. A poucos metros, a norte, sem particular ostentação, mas bem visível, o nosso primeiro destino: a Biblioteca de Marvila.

Vivendo a insónia do programador

Dadas as disponibilidades pessoais, apenas quatro dos 12 Visionários de Marvila responderam à nossa chamada. E é com entusiasmo que partilham a experiência de desempenharem, nesta edição de Os Dias de Marvila, o papel de programadores de dois dos espetáculos a serem exibidos no festival – 1.5º Ponto de Equilíbrio, da Companhia Erva Daninha, e o concerto do quarteto DG4.

Os Visionários posam no Apeadeiro de Marvila

Ser visionário resume-se, precisamente, a desempenhar o papel de programador. O projeto Visionários, promovido em vários municípios pela ArtemRede, proporciona o visionamento de diferentes espetáculos e criações artísticas a um grupo de pessoas que os avaliam e tenderão a escolhê-los para uma futura exibição pública. Porém, não basta gostar – é preciso aferir da disponibilidade dos artistas, do orçamento disponível e de outros tantos aspetos que, por norma, dão muitas noites de insónia a um programador profissional. A Cila, a Dina, o Rui e a Eunice, visionários marvilenses, que o digam! Após terem visto in loco e em vídeo um rol de projetos, o grupo, “muito heterogéneo em termos de idades e percursos de vida”, decidiu e cabe agora ao público em geral avaliar as suas escolhas.

Os rappers Viruz e Rato Chinês com DJ Myslo na Biblioteca de Marvila

Todos os socos que levei foram à pala do rap

O reencontro de velhos amigos que o amor pela música, nomeadamente o rap, uniu. Sentados à nossa frente, depois da sessão de fotografias debaixo de um sol abrasador, Viruz, Myslo e Rato Chinês juntam-se a nós e depressa começam a partilhar histórias que parecem saídas dos temas que entoam. Dos três, Rato Chinês é o único marvilense (Viruz e o seu produtor e DJ, Myslo, são oriundos de Campolide) e o modo como se denomina enquanto artista é bem sintomático daquilo que é, mas também foi, o bairro onde hoje está instalada a Biblioteca. “Rato é a minha alcunha desde criança. É assim que, aqui em Chelas [denominação já removida da toponímia de Lisboa, mas ainda muito usada pelos locais], toda a gente me conhece. O Chinês vem do tempo em que este sítio eram quase só barracas e a estrada era de terra batida: o Bairro Chinês.”

Viruz e Rato conhecerem-se na década de 90, no Bairro Alto, e juntos faziam freestyle rap na rua, dando eco à admiração que tinham “pelos poemas e pelo beat que ouviam dos mais velhos à porta da escola”. Falam de um período dourado, entre 2001 e 2004, em que a dupla fazia furor no animado bairro da capital. Entretanto, a vida levou-os por caminhos diferentes: Viruz tem uma carreira consolidada no rap nacional e Rato está de volta à arte que o fez levar todos os socos de que se lembra. E, de certo modo, é um regresso que a Biblioteca patrocinou: “entrei aqui, uns meses depois da abertura, e perguntei por um estúdio. Não havia, mas abriram-me as portas de um auditório”. Aliás, esta experiência leva o trio a sublinhar a importância de se acabar com a desconfiança e o preconceito mútuos entre os residentes na zona e aqueles que vêm de fora: “e a nós, enquanto artistas, cabe-nos ser mediadores dessas realidades”, sublinham.

Cultivar a autoestima em quem tanto precisa

Cruzamos agora a linha de comboio em direção à Estrada de Marvila, virando costas a Chelas. Na Azinhaga das Veigas, um velho palácio alberga a Casa de São Vicente, uma associação atualmente dedicada à reabilitação de pessoas portadoras de deficiência, fundada em 1940 pela Condessa de Mafra, Maria Antónia de Mello Breyner. Aqui, Suzana Rodrigues trabalha com alguns dos utentes desta IPSS na exposição A nossa cara não é estranha, que estará patente na Biblioteca de Marvila durante o festival.

Os modelos da Casa de São Vicente provam como ‘A Nossa Cara Não é Estranha’

A exposição consiste em registar, através de fotografia, imagens que são particularmente familiares a todos os públicos, usando como modelos os jovens, e não tão jovens, utentes da Casa. Suzana dá-nos um exemplo, mostrando no computador o famoso quadro de Johannes Vermeer A  Rapariga com Brinco de Pérola. De seguida, exibe uma fotografia com a modelo, uma aluna, utente da instituição, reproduzindo a bela pintura, e questiona-nos: “Não é bonita? Consegue perceber que se trata de uma mulher com deficiência cognitiva?”

O objetivo desta exposição será, precisamente, mostrar a todos como “estas pessoas são especiais, que esta é a sua outra cara” e ao mesmo tempo mexer com a confiança dessas mesmas “pessoas com p grande” que, ao se verem expostas nestas fotografias, “vão ver subir a autoestima”. Por outro lado, um momento público desta dimensão proporcionará uma motivação suplementar para que muitas das famílias venham de novo ao encontro dos seus. Muitos dos alunos da Casa estão em internato (são 25 utentes do sexo feminino em Lar) e pouco ou nenhum contacto têm com a família.

Na despedida, a diretora técnica da Casa de São Vicente, Cristina Gomes, deixa-nos um desejo: “Queremos estar cada vez mais incluídos na cidade, mas a cidade tem de nos incluir a nós. Temos muitas ideias para partilhar”. Esta exposição é, seguramente, uma delas.

“Sítio dividido em zonas com letras do alfabeto”

Seguimos agora para oriente, para a zona de apogeu da Marvila Velha, onde tudo parece estar a mudar a um ritmo alucinante. Com o rio bem à vista, entramos no complexo One Your First Stop, um antigo entreposto ferroviário, hoje ocupado por indústrias criativas e projetos de coworking. Ali encontramos o encenador e performer Tiago Vieira, um marvilense de gema, e a encenadora e membro da Companhia Cepa Torta, Patrícia Carreira, acompanhada por jovens do seu projeto de teatro comunitário com alunos das escolas da freguesia e com a comunidade dos bairros de Marvila Velha, Lóios e PRODAC. Ambos vão apresentar duas criações n’ Os Dias de Marvila.

O encenador Tiago Vieira com jovens do projeto de teatro comunitário ‘O Mapa do Mundo Reinventado’

Nome já firmado no teatro português, Tiago é cofundador da Latoaria, na Mouraria. “Não enceno e crio da maneira como o faço se não tivesse nascido e crescido em Chelas”, esclarece, antes de nos explicar o conceito de A Pátria é a minha Revolução, espetáculo que prepara com um elenco de atores e bailarinos profissionais, e que será apresentado num dos armazéns do complexo onde estamos. Para aquilo que designa como “concerto apocalíptico”, Tiago vai buscar autores que muito o marcaram, como Ortega Y Gasset, Nietzsche, Genet, Rimbaud, mas também Sam The Kid, o rapper que, tal como ele, nasceu e cresceu no bairro e cantou Chelas, “sítio dividido em zonas com letras do alfabeto”. “É uma homenagem às pessoas que me marcaram em Chelas, uma interpretação poética das memórias que guardo, daquele tédio quase tchekhoviano dos dias quentes trazendo aromas das terras distantes de África. Porque em Chelas, sobretudo na Zona J ainda se respiram ambientes profundamente africanos. E não concebo as minhas memórias de bairro sem eles.”

Uma das jovens que participa no projeto da Cepa Torta O Mapa do Mundo Reinventado, Lara, intervém: “Mas, não são só africanos! A minha família veio do norte para cá. Viveu numa barraca, tinha uma horta. Depois houve o realojamento. E quem não é daqui continua a ver-nos com suspeição. É claro que há pobreza, mas acho que Chelas tem mais fama que proveito quando se fala em coisas más.”

E hoje? O que é que mudou? Nenhum dos jovens presentes está bem certo, mas Tiago remata: “Haver uma biblioteca em Chelas é qualquer coisa de incrível…“

Rui Catalão e intérpretes de ‘O Último Slow’ no Salão de Festas de Vale Fundão

O último slow em Marvila

O nosso próximo destino é o Salão de Festas do Vale Fundão ao encontro de Rui Catalão, que ensaia O Último Slow, espetáculo que terá duas apresentações n’Os Dias de Marvila (embora uma delas no Torreão Poente do Terreiro do Paço). Este é um regresso a este território, depois de há cerca de dois anos, a convite do Teatro Municipal Maria Matos, ter criado Assembleia, um espetáculo protagonizado por marvilenses oriundos de dois bairros distintos: Alfinetes e Armador.

“Para este projeto comecei por fazer uma audição na Biblioteca de Marvila em que aparecerem perto de 70 pessoas. Infelizmente, nenhuma, à exceção do David, que está connosco, se comprometeu.”

Será o David, um jovem do bairro com algumas limitações cognitivas, que funcionará como pedra de toque nesta nova criação. “É um espetáculo de teatro dançado, feito de movimento dramático sem palavra”, a partir de slows, “essa moda em perda”, essas canções que fazem parte do crescimento de cada um de nós.

Em cena, Rui junta performers profissionais e amadores (alguns provenientes de projetos criativos que desenvolveu no Vale da Amoreira), e lamenta que em Marvila “ainda seja difícil convocar a comunidade”. Em causa, o encenador aponta o muito que há ainda a fazer no terreno para que as pessoas se mobilizem. Aspeto que é, aliás, referido por muitas das pessoas com quem conversámos, desde habitantes na zona a outros agentes, e que percebem que só a persistência dos projetos de âmbito social e cultural podem acabar definitivamente com “a cidade oculta” que um dia se chamou Chelas.

O futuro radioso são as crianças

Poderia ser uma espécie de epílogo desta viagem mas, acreditamos, tratar-se do princípio de tudo.

Com o dia a acabar, regressamos à Biblioteca para descobrir mais um projeto que tem, naquele espaço, uma casa. Trata-se do Coro Infantil da Biblioteca de Marvila, e agora que o dia de aulas acabou, algumas das jovens estrelas podem posar para a fotografia.

Conduzido pela maestrina Catarina Braga, o Coro, também ele apadrinhado na sua génese pelo Teatro Municipal Maria Matos, prepara-se para mais um ano de trabalho, ainda sem certezas quanto ao número de crianças que o vão integrar. “No ano passado tivemos 11, 12 crianças a vir regularmente aos ensaios”, precisa Catarina. E, curiosamente, são provenientes de toda a freguesia, pelo que constituem um grupo bastante heterogéneo em termos de estrato social. Apesar de muito desafiante, é uma pequena conquista, e como comenta uma mãe, trata-se de “um projeto que está a expor muito positivamente o bairro, demonstrando que por aqui estão coisas a acontecer.”

Um exemplo concreto de inclusão foi a participação de algumas crianças de etnia cigana. “Não sendo regulares, conseguimos que elas viessem, e esperamos que não desistam. Seria muito importante para elas”, destaca a maestrina.

As crianças do Coro da Biblioteca de Marvila com a maestrina Catarina Braga

Agora é tempo de colocar vozes ao alto e começar a preparar a apresentação prevista para Os Dias de Marvila. E tivemos uma pequena amostra: do Cancioneiro da Bicharada de Carlos Gomes, as crianças presentes interpretaram O Grilo, a partir de poema de Alexandre O’Neill, com direito a coreografia.

No futuro, Catarina quer colocar o Coro a cantar Marvila e, para tal, encetou já uma busca pelo repertório da freguesia, rico sobretudo em marchas.

O sol já se põe e é tempo de deixar este lado da cidade. Rumo ao apeadeiro, ainda se ouvem a vozes eternamente esperançosas das crianças. Afinal, é com elas que se começa a construir o futuro da cidade. E não deixa de nos ocorrer as palavras que ouvimos do rapper Rato Chinês há algumas horas – “No meu tempo, acreditávamos que só havia dois caminhos para sair do bairro: pelo futebol ou pela luta!”

Talvez, agora ou num tempo muito próximo, se abram outros caminhos.

A génese da sua escrita começa no ato de escutar. Depois, com toda a disciplina do praticante de ioga que admite ser, Pascal Rambert escreve. “E gosto particularmente de o fazer para atrizes – atingem, geralmente, um nível de comprometimento inigualável”, sublinha, lembrando-nos Isabelle Hupert, Emanuelle Béart ou Marina Hands, atrizes para quem escreveu e que dirigiu (esta última passou por esta mesma sala, há cerca de dois meses, em Actrice, um dos melhores espetáculos da última edição do Festival de Almada).

Mas, comecemos pela importância de escutar. Quando Tiago Rodrigues o desafiou a escrever uma peça para o Teatro Nacional D. Maria II, Rambert quis estar perante “um ator com uma idade mais avançada”. Surgiu então Rui Mendes, quase a chegar aos 80 à altura em que tiveram o primeiro encontro e o ator lhe contou histórias e partilhou memórias, matéria de que o texto se viria a apropriar. Porque TEATRO está impregnado de histórias e memórias. As de Rui, mas também as do restante elenco: Beatriz Batarda, Lúcia Maria, João Grosso e Cirila Bossuet. Porém, Rambert garante: “não pretendo saber nada sobre a vida privada dos atores; quero, isso sim, olhá-los atentamente, ouvi-los e depois deixar-me levar pela intuição. Afinal, é para eles que vou escrever!”

A intuição incita a ficção de Rambert mas, ao dar às personagens os nomes próprios do atores que os interpretam, inicia-se um jogo em que a ficção se espelha na realidade, e vice-versa. Porque, de facto, não são apenas os nomes…

João Grosso e Lúcia Maria

 

Vejamos. O palco despojado e sob uma luz fria como numa sala de ensaios, um linóleo que se coloca no chão, a mesa de trabalho, o encenador (Rui) e a atriz (Beatriz). Tudo começa com dois monólogos: o de Rui, a falar do avô que foi ator no D. Maria II, e a seguir o de Beatriz, da peça dentro da peça – a atriz nos limites, fazendo acreditar o público que a sua representação já ultrapassou o teatro e com a vida se fundiu. Mas, trata-se apenas um ensaio.

Entram mais dois atores (João e Lúcia) e, antes do início do trabalho, comemora-se o aniversário de Rui. Então, eles presenteiam-no com uma cena de Romeu e Julieta, precisamente a peça em que o Rui de TEATRO e o Rui Mendes da vida real os dirigiu pela primeira vez. Depois, há ainda Cirila, a empregada de limpeza que estuda Ciência Política, mas tem no sangue genes de artista (na vida real, os pais de Cirila Bossuet foram bailarinos) e até ambiciona ser encenadora.

Cirila Bossuet

 

E Beatriz, a atriz e a personagem? “Ela tem uma energia apaixonada. É irresistível”, considera o encenador. “Parece andar sempre a mil com os ensaios, os filhos, o estacionamento do carro… mas chega sempre a horas, e faz aquele monólogo violentíssimo assim, a frio, logo a começar”. Esta é Beatriz Batarda, mas é também a Beatriz de TEATRO, reflexo num espelho onde a ficção está permanentemente a tropeçar na vida.

A partir de um lugar na plateia, com o olhar a percorrer toda a Sala Garrett, Rambert conclui: “escrevo sempre histórias sobre o teatro porque, seja em cena, seja nos bastidores, aqui se reúne tudo o que nela existe: a paixão, a tristeza, a alegria, a perda, o amor, a esperança e até mesmo a morte…”

Perante a intimidade e cumplicidade do diálogo, depressa se percebe que Gustavo (Paulo Pinto) conquistou a confiança de Adolfo (Ivo Canelas). Este último, um pintor destroçado pela virulência do seu amor à mulher, entrega-se a este estranho que o visita num quarto de hotel como se fosse um velho e bom amigo. Tekla (Sofia Marques), a mulher que parece ensombrar a sanidade de Adolfo, saiu para passear e ele encontra-se absolutamente vulnerável ao plano oculto de Gustavo. Essa vulnerabilidade mudará, irremediavelmente, a vida destes personagens.

O ator Ivo Canelas interpreta Adolfo, um homem consumido pelo amor à mulher.

 

Íntimo, psicanalítico antes do tempo, Credores, peça escrita por Strindberg imediatamente a seguir a Menina Júlia é um notável exemplar do génio do autor sueco. Segundo o encenador e ator Paulo Pinto “o texto é como um puzzle onde as peças vão encaixando lentamente, com minúcia e uma precisão notável”, o que o torna também “de uma enorme exigência para os atores”. Ao mesmo tempo, destaca-se um ensaio da “metateatralidade” através “da manipulação que os personagens exercem uns sobre os outros e tudo aquilo que vai acontecendo fora de cena.”

Considerada pelo próprio autor uma “tragédia naturalista para três atores, uma mesa e duas cadeiras, e nenhum nascer do sol!”, a encenação de Paulo Pinto, muito fiel à austeridade recomendada por Strindberg, é um belíssimo convite ao reencontro do público com o teatro de texto. Sobretudo quando servido por um magnífico trio de atores.

O nome Mariphasa sugere mariposa, borboleta, transformação. Como é que este título se liga à natureza do filme?

Mariphasa é o nome de uma flor que existe apenas num filme muito mau, Werewolf of London [O Lobo Humano, 1935, de Stuart Walker], que se tornou um clássico por duas ou três cenas, e essa flor no filme existe no Tibete e funciona com antídoto à transformação dos lobisomens. Dessa maneira, o título dá uma espécie de mote ao meu filme que, em hora e meia, sugere a possibilidade de um acontecimento que nunca chegamos a ver e que vai gerindo pequenas informações de coisas que se terão passado antes do filme começar.

Será então um antídoto a uma estrutura narrativa mais convencional…

Certamente, certamente. Não me é natural lidar com as personagens na perspectiva clássica. Sei o que é, sei trabalhá-la, sei falar sobre ela, muitas vezes parto para os projectos pensando que desta vez será um pouco mais narrativo, mas perco o interesse. Enquanto realizador e enquanto espectador passa-se o mesmo.

“A minha natureza não é tão sombria como os filmes que faço” \ ©Alexandra Silva

 

Quando apresentou Mariphasa no IndieLisboa disse que aquilo a que o público iria assistir era como que “um pesadelo”. De onde lhe vieram as ideias para o filme?

Quem me conhece sabe que a minha natureza não é tão sombria como os filmes que faço. Tento pôr em suspenso o meu lado racional o mais possível quando estou a trabalhar, porque a minha racionalidade impediria de dar consequência às primeiras ideias, teria de as pensar demasiado, testar demasiado, articular demasiado. E, quando as coisas se tornam claras, desinteresso-me. Os filmes vêm de um lado completamente subterrâneo em mim, uma mistura de memórias, medos, inquietações, que tento traduzir em imagens e sons o melhor que consigo. Vem de um lado totalmente inconsciente, dai aproximarem-se desse lado dos sonhos e dos pesadelos.

Este filme dá-nos a ideia de ter sido feito sem qualquer tipo de concessões. Fez exactamente o filme que quis, ou teve de fazer cedências?

Os filmes são sempre resultado das circunstâncias particulares em que são feitos. Uma das principais concessões que tive de fazer foi com o tempo da rodagem. Trabalho com uma equipa muito pequena e pensei que com isso ganharia margem de manobra para ter tempo para falhar antes de acertar. Trabalho muito de improviso e preciso da tranquilidade de poder não acertar exatamente à primeira. Criativamente nunca tive essa possibilidade de me sentir tranquilo numa rodagem para falhar. O filme foi feito com base em intuições, estou sempre a trabalhar no vazio. Gostava de ter tido mais tempo para esse vazio.

A criança em Mariphasa é interpretada pelo seu filho. Escolheu-o porque seria mais fácil dirigi-lo ou porque quis trazer com isso maiores implicações autobiográficas para o filme?

Já trabalhei com o meu filho várias vezes e gosto muito de trabalhar com ele. No geral não gosto de ver crianças nos filmes, porque fazem de crianças. Sei que sou capaz de falar com ele e ele perceber-me. Sei como ele é verdadeiramente, e sei como travar esse impulso que as crianças têm de representar como crianças. Desde muito pequenino que é muito maleável, muito inteligente. Não tenho de o apanhar desprevenido. Faz uma coisa extraordinária que é eu falar com ele para dentro de cena e não mostra em nenhum momento que estou a falar com ele, toma o seu tempo e faz o que lhe digo.

Fez ainda na Escola de Cinema um filme chamado O Cadáver Esquisito. Este título parece anunciar todo o cinema que fez depois. Residia ali algum tipo de programa que se estende até Mariphasa?

Paulo Rocha referia-se a esse filme como um magnífico sketchbook. Estavam ali várias possibilidades de filmes que eu poderia vir a fazer. De facto, várias coisas foram revisitadas ao longo dos meus filmes seguintes. Formalmente é, no entanto, muito diferente. Para esse filme, escrevi seis monólogos, vinte páginas, o contrário do que faço hoje em dia. O que fica de estrutural é a minha vontade de não afirmar muito as coisas. Foi algo que sempre segui, não permitir que as coisas façam um sentido literal para que outro tipo de sentidos pudesse emergir. A linguagem do cinema está tão codificada que, hoje, temos que negar muitas coisas, fazer muitas coisas ao contrário para que aquilo que estamos a fazer não seja lido como tudo o que está à volta.

Os seus filmes, e este em concreto, não se parecem com nenhuns outros. Que afinidade intelectual ou estética sente relativamente a outros realizadores do presente?

Temos uma história do cinema inteira atrás de nós, com muitas coisas extraordinárias e inúmeras coisas admiráveis. Nunca pus o meu trabalho em diálogo com coisas que admire. Filmes de que gosto, dos recentes, são os de Apichatpong [Weerasethakul], sendo que o que ele faz não tem muito a ver com o que eu faço; é mais caloroso, mas há um lado subterrâneo também ali que eu gosto de ver. Há nele um extraordinário compromisso entre um cinema que não deixa de ser afetivo, mas bastante abstrato também. Para mim a realidade não basta, a realidade social, política, tudo isso. Preciso de expandir o meu imaginário, tornar expressionistas os elementos da realidade.

David Cronenberg disse em Veneza que não vai ao cinema há anos, que o cinema acabou, tal como os discos de vinil ou as máquinas de escrever, e que ir hoje ao cinema é uma retroatividade. O que pensa disto?  

A minha experiência da sala tem ainda um lado mágico que não gostaria de perder. Socialmente, economicamente, a ideia de cinema como nós a conhecemos, numa sala, com muita gente a ver ao mesmo tempo é uma coisa que está a perder sentido. De facto parece uma coisa do passado que não dirá muito às gerações mais novas. Saber se vê numa sala, saber se vê numa televisão grande, se vê num telemóvel, isso infelizmente muda a natureza dos objetos que se pode produzir. Percebo o que ele quer dizer mas, afetivamente, não estou próximo disso.

Os juncos acumulados junto à foz do Rio Seco, que aqui desaguava e que corre ainda no subsolo,  estão na origem do nome Junqueira. Usado pela primeira vez num documento oficial do reinado de D. Dinis, no qual o monarca doa os terrenos deste sítio à Abadessa do Mosteiro de Odivelas, D. Urraca Pais, viria a fixar-se na toponímia da cidade no século XVIII.  Durante este século assiste-se a uma corrida à zona por parte de famílias nobres que aqui ergueram quintas de veraneio com sumptuosos palácios onde o rio chegava.

O percurso pela memória aristocrática da Junqueira começa no Palácio dos Condes da Ribeira Grande, cujo brasão ornamenta  a fachada. Mais conhecido por aqui ter funcionado o Liceu Rainha D. Amélia, foi construído no início do século XVIII  por Francisco Baltasar da Gama, marquês de Nisa e descendente de Vasco da Gama. Comprado mais tarde pelo conde da Ribeira Grande foi pouco afectado pelo Terramoto de 1755. Nele viveu o único filho do conde, D. Gonçalves Zarco da Câmara, o primeiro nomeado português ao Prémio Nobel da Literatura. Apesar de bastante alterado depois da adaptação a estabelecimento de ensino na década de 1920, conservou os  traços originais na fachada, nos jardins e na capela dedicada a Nossa Senhora do Carmo.  Aguarda o início das obras que o transformarão num hotel e museu.

Passando a travessa dos Condes da Ribeira, encontra-se o Palácio Burnay, um dos mais imponentes edifícios desta rua. Classificado como Imóvel de Interesse Público é, na sua feição actual, uma construção do século XIX, mas a sua origem remonta ao início do século XVIII quando o irmão do conde de Sabugosa aqui ergueu uma casa. A seguir ao terramoto de 1755 foi comprado pelo Patriarca de Lisboa, D. Francisco de Saldanha, para residência de verão, sendo conhecido a partir de então, e durante quase um século, por Palácio dos Patriarcas. Na primeira metade do século XIX, muda novamente de mãos, sendo adquirido pelo financeiro brasileiro Manuel António da Fonseca, alcunhado de Monte Cristo, que o remodela ao gosto burguês oitocentista. Poucos anos depois, este homem excêntrico de quem se dizia que bebia chá por taças de ouro, vende o Palácio a D. Sebastião de Bourbon, infante de Espanha e neto do rei de Portugal, D. João VI. Alienado pelos seus herdeiros, foi comprado num leilão em 1879 pelo conde de Burnay que realizou obras profundas, nas quais participaram artistas como Rodrigues Pita, Ordoñes,  Malhoa e os italianos Carlo Grossi  e Paolo Sozzi. Depois da morte do conde, o Palácio foi comprado pelo Estado à sua viúva, tendo sido aí instalados diversos serviços . Nos anos mais recentes acolheu o Instituto de Investigação Científica Tropical.

Ao lado ergue-se o Palácio dos Condes da Ponte que aqui habitaram até finais do segundo quartel do século XVIII. Os registos dizem que depois disso pertenceu  a um membro da família Posser de Andrade e que aqui terá ficado hospedado o núncio apostólico Acciaioli, expulso de Portugal no tempo do Marquês de Pombal. Em 1945 foi adquirido pela Administração do Porto de Lisboa e sofreu várias alterações.  No exterior, o seu jardim e cerca foram parcialmente ocupados aquando da construção do Instituto de Higiene e Medicina Tropical e de alguns pavilhões do Hospital Egas Moniz.


O Palácio Pessanha Valada, o próximo da correnteza, deve o nome a dois dos seus proprietários:  D. João da Silva Pessanha, responsável pela sua construção depois do terramoto de 1755, e o 2º marquês de Valada, D. José de Meneses da Silveira e Castro, Par do Reino do Conselho de D. Luís e oficial-mor da Casa Real, homem conhecido pela sua inteligência e erudição. Em frente a esta casa existiu um antigo forte convertido em prisão no reinado de D. José, onde estiveram presos o Marquês de Alorna e o padre Malagrida. Foi demolida em 1939 aquando das obras da Exposição do Mundo Português.

Passando o Hospital Egas Moniz, o caminho é interrompido pelo início da Calçada da Boa Hora onde se situa o Palácio da Ega, cuja história se encontra ligada ao apogeu e decadência da família Saldanha. O primitivo edifício, datado do século XVI, foi alvo de uma profunda campanha de obras no século XVIII, era então proprietário o 2º conde da Ega, Aires José Maria de Saldanha. É desta época o faustoso Salão Pompeia, revestido com painéis de azulejos holandeses representando vistas de portos europeus, que se encontra classificado como Imóvel de Interesse Público. Na época das Invasões Francesas, esta casa conheceu dias de glória pelas festas promovidas pelo conde, nas quais era convidado assíduo o general Junot. A amizade com os invasores levou a família ao exílio e o Palácio serviu primeiro como hospital e depois  como quartel-general do marechal Beresford a quem acabou por ser doado por D. João VI, em 1820. Três anos depois a família Saldanha é reabilitada e requer a propriedade que, contudo, não consegue manter. É vendida e passa por vários proprietários até ser adquirida pelo Estado em 1919 que aqui instalou o Arquivo Histórico Colonial (hoje Arquivo Histórico Ultramarino).

Um extenso muro bordejado por árvores acompanha o regresso à Rua da Junqueira. O muro delimita a Quinta das Águias, o magnífico conjunto do século XVIII hoje votado ao abandono, apesar de classificado como Imóvel de Interesse Público. A origem desta quinta remonta a 1713 quando um advogado da Casa da Suplicação aqui construiu um palácio. A propriedade foi vendida em 1731 a Diogo de Mendonça Corte-Real, Secretário de Estado no reinado de João V,  que nela empreendeu grandes obras, julga-se que sob a responsabilidade de Carlos Mardel, de quem era próximo. Diogo Corte-Real viria a ser condenado ao degredo pelo Marquês de Pombal e nunca mais regressou à Junqueira. Após a sua morte, em 1771, uma longa disputa entre os seus herdeiros e a Santa Casa da Misericórdia, a quem o ex-secretário legara  seus bens, conduz ao abandono e ruína da quinta. Em 1841 foi comprada em hasta pública pelo empresário José Dias Leite Sampaio que a recupera, presume-se que com projecto do italiano Fortunato Lodi. Depois da sua morte a Quinta das Águias, que deve o seu nome às duas grandes águias de pedra que ladeavam o portão, passou por vários proprietários, entre os quais o Dr. Fausto Lopo Patrício de Carvalho, que entre 1933 e 1937 realiza obras profundas com a ajuda dos arquitectos Vasco Regaleira e Jorge Segurado. Atualmente, o Palácio que foi várias vezes roubado e vandalizado, encontra-se à venda.

Uns passos adiante, numa reentrância da rua, o colorido do Chafariz da Junqueira impõe uma paragem. Construído em 1821 sob o traçado do arquitecto Honorato Macedo e Sá, entrou em funcionamento no ano seguinte. Inicialmente alimentado por uma mina de água localizada no Alto de Santo Amaro, passou a ser servido, a partir de 1838, por uma nova fonte próxima do Rio Seco. O arranjo actual é da autoria de Raul Lino que mandou colocar reproduções de azulejos rococó. Em frente, erguem-se as traseiras da Cordoaria Nacional, edifício que se estende por cerca de 400 metros e que foi um dos primeiros pólos industriais da Junqueira. Criada no século XVIII por decreto do Marquês de Pombal, produzia cabos, velas, tecidos e bandeiras.

Algumas portas acima, surge um dos mais notáveis edifícios da Junqueira, a Casa de Lázaro Leitão Aranha onde hoje se encontra instalada a Universidade Lusíada. Edificada em 1734 por esta importante figura do reinado de D. João V, que entregou a obra a Carlos Mardel, esta casa acolheu inquilinos ilustres como o príncipe Carlos Mecklemburgo, cunhado do rei de Inglaterra. Foi também palco de escândalos como o rapto de D. Eugenia José de Meneses, levado a cabo em 1803 pelo médico da corte, João Francisco de Oliveira, com a suspeita de ter sido um serviço prestado ao príncipe D. João, o verdadeiro sedutor. O Palácio foi passando por vários proprietários que efectuaram obras a cargo de arquitectos como Korrodi, Bigaglia, Francisco Vilaça e Raul Lino. Numa dessas campanhas, a capela de 1740 dedicada a Nossa Senhora da Conceição foi convertida em cocheira, tendo os azulejos originais sido tapados por paredes de alvenaria.

A caminho do último ponto do percurso podem observar-se, à esquerda, duas moradias Arte Nova  com fachadas embelezadas com arcos decorativos e varandas de ferro forjado. Frente ao Palácio do Marquês de Angeja, no Largo com o mesmo nome, regressamos ao século XVIII.  Depois de ver a sua casa destruída no Terramoto de 1755, o marquês, D. Pedro António de Noronha e Albuquerque, recebeu da coroa os terrenos na Junqueira onde antes existira um forte,  para construção de nova habitação. Diz-se que aqui se terá refugiado D. José I depois do atentado de que foi alvo em 1758. O Palácio manteve-se na posse da família Angeja até 1910, data em que foi comprado pelo comerciante José Alves Diniz que o transformou em prédio de rendimento, tendo tido como inquilinos figuras ilustres como Bernardino Machado e Almeida Garrett. Na ala poente do Palácio, onde funcionou uma escola, encontra-se instalada desde 1965 a Biblioteca Municipal de Belém.

Germano Almeida

O Fiel Defunto

Editorial Caminho 

Quando soube que lhe tinham atribuído o Premio Camões 2018, o cabo-verdiano Germano Almeida estava prestes a lançar o novo romance, O Fiel Defunto, em que brinca com a literatura por interposto autor (Miguel Lopes Macieira) e expõe toda a sociedade no seu traço de vaidade que pode ter consequências passageiras ou decisivas. Um amor louco que conduz a um crime ou a produção literária obsessiva que leva ao fim de uma relação são situações marcadas pela autocomplacência que alimenta uma vaidade pessoal. Romance de extrema leveza de pluma, que vai desfiando estórias que divergem em mais estórias até convergirem num retrato de conjunto local mas também universal, O Fiel Defundo usa de grande coloquialidade nas variações entre discurso direto e indireto, no que pode dar a sensação de que se trata de um livro superficial. Nada mais errado. A impressão de espontaneidade decorre do talento genuíno e da maestria de quem faz uso das faculdades da escuta e da escrita. 

 

Maria José Fazenda

Da Vida da Obra Coreográfica

Imprensa Nacional

Este livro é parte das celebrações dos 40 anos de actividade da Companhia Nacional de Bailado (CNB). Maria José Fazenda, cujas páginas de crítica de dança no Público ainda estão na memória dos leitores, apresentou à então directora artística da CNB, Luísa Taveira, a proposta da travessia pela história da obra coreográfica, contextualizando cada exemplo no seu período, no meio artístico e sociocultural em que surgiu, e no âmbito do seu ressurgimento, retrabalhado pela CNB. A obra chama ainda a atenção para a responsabilidade da companhia na preservação e transmissão de um património da dança, mas também na criação contemporânea. A seleção das peças coreografadas leva em conta a cronologia que percorre os seis capítulos, a relevância artística e cultural das obras, o facto de terem vindo a ser reencenadas ao longo do tempo, e as alterações que motivaram na representação do corpo, do tempo histórico até ao presente. Entre capítulos surgem páginas a negro, recheadas com fotos do Arquivo CNB

 

Reinaldo Ferreira

Punhais Misteriosos

PIM! Ediçoes  

Escrita em Espanha, foi publicada em Portugal entre agosto e novembro de 1924, nas páginas do matutino Correio da Manhã, com o título Punhais Misteriosos e a assinatura de Edgar Duque, outro dos pseudónimos de Reinaldo Ferreira, antes de adotar o definitivo Repórter X. A história, protagonizada por um jovem oficial do exército espanhol que se perde de amores por uma “mourita encantada” no icónico Palace Hotel do Buçaco, desencadeando várias peripécias que levam o leitor até Madrid, Barcelona e aos confins de Marrocos, foi adaptada ao cinema pelo próprio Reinaldo. O filme foi um fracasso e, após uma única projecção em Lisboa, desapareceu quase sem deixar rasto. Esta grande narrativa do pioneiro português do romance policial, na qual, segundo o autor, “vibra a sentimentalidade portuguesa, capaz dos maiores sacrifícios e o orgulho inato do castelhano, que é mantido através de todas as contrariedades”, é agora reeditada com uma introdução de Joel Lima, capa de Nuno Saraiva e múltiplos recortes de imprensa.

Byung-Chul Han

Filosofia do Budismo Zen

Relógio D’Água

Filosofia do Budismo Zen é o décimo livro do filósofo coreano radicado na Alemanha que a Relógio D’Água publica a um ritmo assinalável. As obras deste autor são invariavelmente livros curtos que atraem igualmente pelos títulos que apontam sintomas ou preocupações das sociedades contemporâneas. Exemplos: A Sociedade do Cansaço, A Agonia de Eros ou A Expulsão do Outro. O budismo zen caracteriza-se por um cepticismo face à linguagem e uma desconfiança relativa ao pensamento conceptual. Em vez de palavras, escolhe silêncios. E coloca enigmas onde esperaríamos encontrar respostas. Byung-Chul Han compara os pontos de vista filosóficos do budismo zen com exemplos dos trabalhos de Platão, Leibniz, Fichte, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger. Dizer o que este livro é vai contra a natureza do seu tema. A leitura, pontuada pelos haikus citados, visa criar no leitor uma predisposição para se desapegar de si mesmo, dissolvida a rigidez substancial de tudo.

 

Francesco Petrarca

Rimas

Quetzal

Francesco Petrarca (1304-1374), humanista e filósofo, uma das referências fundamentais da literatura ocidental, foi o pai do soneto, cuja estrutura aperfeiçoou de forma inovadora e definitiva, e que não deixou de inspirar muitos outros poetas até aos dias de hoje. Petrarca dedica a maior parte dos poemas reunidos em Rimas ao amor (à frustração amorosa) e a Laura, uma “musa impossível”. Subsistindo embora dúvidas quanto à identidade da destinatária destes versos (“aquela entre as mulheres que é sol”), Vasco Graça Moura, tradutor da presente obra, refere, na introdução, “a existência de documentos importantes da autoria do próprio Petrarca que apoiam a tese da existência de Laura na vida real”, não se tratando, pois, de uma mera “ficção alegorizante”. Esta tradução venceu o Prémio Internacional Diego Valeri (2004) que, desde 1971, distingue traduções de obras de Petrarca. “Uma aposta impossível” que Vasco Graça Moura tentou apenas quando se sentiu preparado para o fazer, depois de ter lido Camões e outros petrarquistas europeus.

 

Ray Bradbury

Fahrenheit 451

Saída de Emergência

Fahrenheit 451 é um o único grande romance distópico do século XX escrito por um autor de ficção científica. Admirável Mundo Novo, 1984 e A História de uma Serva saíram todos da pena de escritores “mainstream”: Aldous Huxley, George Orwell e Margaret Atwood. Numa sociedade do futuro alicerçada no prazer, no entretenimento, na excitação e no esquecimento, os bombeiros ateiam fogos, não os apagam: destroem os livros proibidos e as casas onde estão escondidos. Montag, um desses bombeiros, cruza-se acidentalmente com uma jovem que lhe fala da memória de um passado diferente. Subitamente, apercebe-se que vive numa comunidade onde as pessoas se limitam “a dizer coisas” e os livros são proibidos porque “falam sobre o sentido das coisas”, decidindo trilhar os caminhos da dissensão. Esta obra profética, agora numa cuidada edição com um excelente posfácio de João Seixas, é também uma eloquente homenagem ao poder transformador da literatura e ao livro, “única peça feita da costura de vários bocados do universo”.

Ted Hughes

O Homem de Ferro

Ponto de Fuga

Os poetas Ted Hughes (1930-1998) e Sylvia Plath (1932-1963) formaram um dos mais famosos casais literários da segunda metade do século XX. Estes dois volumes infanto-juvenis, ilustrados com expressivas xilogravuras de Andrew Davidson, foram dedicados pelo escritor aos seus filhos, Frieda e Nicholas. O Homem de Ferro, originalmente publicado em 1968, narra a história de um gigante que, vindo não se sabe de onde, salva a terra num momento delicado de crise, a era da Guerra Fria e da ameaça nuclear. Um quarto de século depois, o poeta cria uma sequela que tem a Mulher de Ferro como protagonista. Estas duas belíssimas obras fazem eco das preocupações pacifistas e ambientais do poeta.

 

Ted Hughes

A Mulher de Ferro

Ponto de Fuga

Nesta sequela, a luta trava-se contra os excessos do capitalismo selvagem e a industrialização desenfreada que consome os recursos naturais e ameaça os ecossistemas do planeta. A Mulher e o Homem de Ferro, figuras herdadas do universo da ficção científica, aparentemente temíveis e ameaçadoras, mediadas por duas crianças, Hogarth, um rapaz desgrenhado, e Lucy, uma rapariga pálida, tornam-se nos melhores aliados da humanidade. No volume de poesia Cartas de Aniversário, obra de profundo pendor autobiográfico, o autor confessa: “Aos vinte cinco anos estava de novo pasmado / com a minha ignorância das coisas mais simples”. Quando concebeu estes dois livros, Ted Hughes já sabia tudo “das coisas mais simples”, única forma de chegar ao coração das crianças.

paginations here