No tempo do Memorial do Convento, Lisboa não era ainda uma cidade moderna, mas não era já uma cidade medieval. A primeira caracterizava-se, como Paris, pelas largas ruas e pelos inúmeros e soberbos palácios; a segunda, constituía um amontoado de casario vinculado à orografia do terreno, em torno de uma fortaleza ou castelo, rodeada de uma muralha defensiva, donde se destacavam as torres sineiras das igrejas e dos conventos.

Baltazar e Blimunda, os protagonistas do romance de Saramago, assistiram a esta transformação da capital de Portugal de cidade dos Descobrimentos, cosmopolita mas de geografia e urbanismo pós-medieval, em cidade contemporânea, concebida e estruturada para uma economia comercial. Neste sentido, a Lisboa do Memorial do Convento é uma cidade em mudança, descaracterizada do seu antigo poderio de cais imperial, uma cidade que assistia aos rituais majestáticos da Coroa à imitação dos parisienses do Rei-Sol. Não é já uma cidade só de palacetes renascentistas, que abundavam na Costa do Castelo, nos arredores do Rossio e na linha que segue da Ribeira das Naus à Junqueira, mas de verdadeiros palácios e quintas, que se vão construindo nos arredores da capital (Junqueira, Benfica, Lumiar, Campo Grande…).

Este itinerário inicia-se junto à Casa dos Bicos onde está instalada a Fundação José Saramago.

Lisboa, hoje desenhada verticalmente ao Tejo, seguia então paralela ao rio, as ruas acompanhavam os declives naturais (as colinas, os vales). Mais do que outro símbolo urbano, eram as igrejas e conventos que marcavam os lugares de Lisboa. Dificilmente se daria um passo de uma rua para outra que não se deparasse com uma igreja, uma capela ou, na linha do horizonte, uma ermida, como a de São Mamede. No lado oriental, a capela de Nossa Senhora da Penha velava pelos lisboetas; do ocidental, São Mamede, o santo abençoador dos rebanhos que pastavam às portas da cidade. Por esta, dezenas de igrejas, que nenhum bairro se sentia bairro sem que tivesse o seu santinho protector, o seu pároco particular, que controlava os costumes, baptizava os meninos, casava os jovens, consolava os adultos e amortalhava os velhos no caixão, melhor, na mortalha.

As casas dificilmente ultrapassavam os três andares, todas elas com quintais, algumas com curtos jardins, encostadas e cravadas umas nas outras, compondo um labirinto de ruas e ruelas estreitinhas por que dificilmente passava uma carroça larga ou uma carruagem. Pelos casaréus de Alfama e Mouraria vivia o povo pobre de Lisboa, aqui vivia Blimunda, em casas de duas-águas, chão de terra batida e duas divisões, a cozinha, que também era sala, composta em torno da lareira de cozer, e o aposento de dormir, pais e filhos na mesma câmara, separados, não raro, por um pano de chita velha pendurado num cordel, que unia parede a parede. Na sala-cozinha, escanos de sentar e recostar, a trempe da sopa e dos guizados, que aquecia a casa de vapor de água, acrescido do calor das braseiras. Uma mesa articulada encostada a um canto, que os filhos armavam sendo horas de refeição (ainda hoje se diz “pôr” e “levantar a mesa”); no aposento de dormir, palha pelo chão ou peles de boi, um enxergão de folhelho ou de estopa (colchões de lã ou de penas eram reservados para os grupos sociais mais poderosos), a cobrir o corpo malcheiroso uma manta grossa de lã mal cardada, pasto abundante de pulgas, piolhos e percevejos.

A [antiga] praça era dominada pelo Palácio Real, com o Torreão do Terzi encostadinho à água.

No Terreiro do Paço, rosto do país para o estrangeiro, D. João V mandou construir a igreja da Patriarcal, a igreja mais rica de Portugal, possuía uma biblioteca e uma pinacoteca valiosíssimas, bem como a Ópera do Tejo. A praça era dominada pelo Palácio Real, com o Torreão do Terzi encostadinho à água, onde, no tempo doMemorial do Convento, D. João V agonizará entrevado no leito cerca de dez anos.

Nas costas do Terreiro do Paço, amontoavam-se ao sol da manhã os trabalhadores da Ribeira das Naus, de rosto encardido pelo lume das fogueiras gigantescas que ferviam caldeirões de água, cujo vapor provocava a concavidade das pranchas de madeira que compunham o casco dos barcos; calafeteiros limpavam as mãos sujas de pez a margaços de estopa. Podemos imaginar Baltasar a passar entre os fragateiros do Tejo, a comer sardinhas cozidas ou fritas em azeite do Alentejo ou peixe fumado, que tragava em ruidosas mastigações, os lábios corrompidos de pústulas secas, oleados pelo quartilho de vinho tinto.

Do Terreiro de Paço ao Rossio, não havia caminho directo ou rua direita. As ruas corriam paralelas ao Tejo. Entre estas, salientavam-se a Rua Nova dos Ferros – rua de compras de material e mercadorias, de e para o trabalho -, e a Rua dos Ourives da Prata – rua das compras refinadas. Para o lado da Boavista, estava nascendo a Rua dos Remolares, rua da moda no século XVIII, que Baltazar e Blimunda nunca visitarão, que receberá os figurinos parisienses da moda, onde jovens fidalgos estanciarão longas horas, suspeitando ver, quando as meninas descem dos coches, depondo o sapatim de pele de gamo no tijolo da rua para visitar as lojas, a brancura de leite de um calcanhar sob os folhos de rendas graciosas.

Pela Madalena… entre azinhagas sombrias e ruelas malcheirosas… acolhiam-se os bordéis de meretrizes

Ao fundo oriental do Terreiro do Paço, a caminho da Madalena, evolava-se um cheiro acre a sangue e carne fresca, era o açougue, dos curros saíam os gemidos das vacas, dos bezerros, dos carneiros, das ovelhas, mortos por degola ou por um pontifim aguçado espetado até ao coração, sacavam-se-lhes as peles, depositadas em grandes tanques, de cheiro fétido, para começo da curtição, e esquartejavam-se os corpos, separando a carne dos ossos, que, resticulados de sangue e tendões, eram arrastados em padiolas, acompanhados de matilhas de cães ladrando, e deitados ao Tejo.

Pela Madalena, também, entre azinhagas sombrias e ruelas malcheirosas, rescendendo ao ardor nojento de peixe podre ou enxúndias de carne putrefacta, acolhiam-se os bordéis de meretrizes, breve transferidos para a Rua Suja, uma viela mesmo à beirinha do novíssimo Bairro Alto. Prolongando o edifício do açougue em direcção ao Tejo, no final da actual Rua da Madalena, ficava a Alfândega, 14 casarões, enormes, sólidos, por onde transitava a mercadoria vinda do Império, sobretudo caixotes de açúcar, fardos de peles, varas de pano, rolos de fumo (tabaco) e sacas, barricas, cestas e cabazes de especiarias. Da Alfândega saíam os grandes proventos que alimentavam a Casa Real e o Senado da Câmara de Lisboa.

No Rossio, segunda grande praça da cidade, não existe edifício único dominador. A norte, estabelecendo de certo modo o limite de Lisboa, a Casa do Senado da Câmara e o Palácio dos Estaus, antigo palácio de acolhimento de embaixadas estrangeiras doado por D. João III ao Tribunal do Santo Ofício, dirigido pela Ordem dos Dominicanos. Aqui se encarceram judeus e heréticos, homossexuais e lésbicas, ciganos e blasfemos, velando-se pela santa pureza de Portugal. Aqui se encarcerou Sebastiana de Jesus (mãe de Blimunda) e até Bartolomeu de Gusmão, o frade-voador da Passarola de Memorial do Convento, caso não tivesse fugido para Toledo por ambicionar voar.

Do lado sul, dando origem ao dédalo de ruas que levavam ao Tejo, casas de habitação e uma arcaria, onde se iniciava a Feira da Ladra, posteriormente exilada para a actual Praça da Figueira.

Perto, a Igreja de São Domingos, comprida e baixa, donde partiam os autos-de-fé, um dia completo, que terminava com a queimança do corpo dos condenados, ora no Rossio, ora no Terreiro do Paço, com a família real e os dignitários maiores da hierarquia da Igreja a assistir.

Nasceste em Moçambique e com seis anos vieste para Portugal. Como foi a tua adaptação?

O meu pai estava a estudar na Alemanha, a minha mãe estava em Moçambique farta de estar longe dele. Eu tinha acabado de entrar para a escola, então eles decidiram que se iriam encontrar a meio caminho, foi por isso que vieram para Portugal. No princípio foi um bocadinho doloroso por uma questão climatérica. Viemos para cá em novembro, era verão em Moçambique. Nos primeiros meses ficámos em casa de uma amiga dos meus pais que era atriz, o que nos levou a conviver com imensos atores. Foram tempos muito excitantes. Os meus pais sempre estiveram ligados às artes plásticas e ao teatro e eu convivi muito de perto com esse meio.

A tua paixão pela música vem de família?

Acho que só tivemos televisão quando eu tinha uns dez anos, por isso ouvíamos muita rádio. A única pessoa da minha família que estava ligada à música era uma bisavó minha, de quem tenho o nome mas que não cheguei a conhecer. No meio moçambicano é muito normal crescer-se a ouvir música e a dançar, mas isso não faz com que as pessoas sejam bailarinos ou músicos. Há é uma predisposição e uma exposição muito grandes para a música fazer parte da nossa genética.

Em que altura é que a música foi uma escolha?

Cantava sempre nas festas da escola, e lembro-me de umas amigas me aconselharem a concorrer ao Chuva de Estrelas [programa de televisão da SIC, nos anos 90], no ano a seguir à vitória da Sara Tavares. Eu ria-me e achava um disparate. Comecei a cantar num coro de gospel. Um dia, numa festa de aniversário de uma prima,  o maestro Carlos Ançã (Coro Gospel de Lisboa) veio falar comigo porque achou que eu cantava muito bem. Na altura estava a formar um grupo e convidou-me para fazer parte. Só tinha 17 anos, fiquei um bocado reticente mas acabei por ir e fiquei completamente envolvida. Criou-se uma família ali, éramos cerca de 40 vozes. Mais do que um despertar espiritual, deu-se em mim um despertar musical. Nessa altura a televisão pagava aos grupos para irem atuar, e ainda ganhei algum dinheiro nessa fase. Cantava, estava com os meus amigos, ganhava algum dinheiro, mas sempre muito consciente de que queria ser engenheira.

Entretanto surge o projeto WrayGunn…

Um dia recebemos um convite do José Cardoso (manager dos Wraygunn), que queria gravar um disco com um coro de gospel. O maestro da altura, que era um homem conservador, ficou reticente porque achou que era um projeto “do demo” [risos]. Desmistifiquei a ideia e incentivei a que participássemos nas gravações do álbum Eclesiastes. Passado um tempo recebi um telefonema do Pedro Pinto (baterista) a convidar-me para fazer parte da banda. O primeiro ensaio foi horrível, a primeira reunião foi péssima, o primeiro concerto foi detestável, mas entretanto o disco rebentou em França e foi uma experiência incrível em termos de espetáculo.

Em termos logísticos não deve ter sido fácil, uma vez que a banda era de Coimbra…

Eu era conhecida como a “Selma do Expresso”, porque fazia várias coisas ao mesmo tempo e ia a todo o lado. Se tivéssemos um concerto em Braga às 22h, eu era menina para apanhar o primeiro comboio e estar às 9h a cantar na igreja em Lisboa. Era muito nova, não vivia com os meus pais, estava a viver “the time of my life”.

No meio disso ainda havia o curso de Engenharia Civil…

Fiz o meu trabalho de fim de curso em digressão em França com os WrayGunn. Já não fui ao último concerto da tournée, em Itália, porque tive de fazer a defesa do trabalho. Cada vez que parávamos nalgum sítio eu agarrava-me ao computador a trabalhar.

“Mati” é o primeiro album a solo da cantora.

Adaptas-te bem a estilos musicais muito diferentes. Tens uma voz versátil?

O gospel abriu-me as portas e ajudou-me a perceber muito sobre a minha voz. Com os Wraygunn aprendi muito sobre estar em palco, montar espetáculos e andar na estrada. Gravei com os Buraka, com Sean Riley, com a Rita Redshoes, universos muito diferentes. Sempre tive este lado muito camaleónico. Acho que a principal razão não tem a ver com a voz, mas sim com a minha capacidade de adaptação. Trabalho muito no sentido de, sem deixar de ser eu própria, me adaptar ao universo dos outros. Nunca quis ter um percurso a solo, sempre achei que o que eu fazia devia servir a música. Trabalhar com o Rodrigo Leão, por exemplo, é para mim um dos maiores desafios – não em termos vocais – mas sim em gerir quem eu sou musicalmente. A música do Rodrigo é muito particular e a voz é mais um instrumento. Não posso ser um elefante que entra numa loja de porcelana, tenho que ser mais um elemento que ali está, para que a minha voz trabalhe em conjunto com toda aquela pintura. Tem sido um trabalho muito enriquecedor.

Também estudaste jazz no Hot Clube…

O jazz foi muito importante porque a determinada altura senti necessidade de colocar as coisas em caixas. Abriu-me muito os horizontes e fez-me perceber que eu poderia brincar ainda mais com a minha voz de uma forma mais segura, ajudou-me a entender a matemática da música e também me deu a conhecer músicos extraordinários, com quem tenho trabalhado.

Foi difícil largar a Engenharia Civil?

Sempre tive a convicção de que a profissão que escolhesse serviria uma missão. Escolhi o curso de Engenharia Civil porque queria ir para Moçambique fazer parte de uma classe laboral e intelectual que impulsionasse o desenvolvimento do país e não estava a fazê-lo. Sentia que, enquanto engenheira, esse processo seria moroso, extremamente político e muito pouco palpável. Percebi que através da música ia conseguir fazer aquilo que não conseguiria de uma maneira tão eficaz com a engenharia. Comecei a sentir que fazia diferença a quem me ouvia, que era urgente fazer música porque as pessoas precisavam disso.

O facto de teres participado em tantos projetos diferentes dificultou a descoberta da tua própria identidade?

Sim e não. O meu filtro, quando recebia convites, era basicamente perceber se era um projeto de bom gosto, se eu me identificava ou não com ele, e a verdade é que me identificava com muitas coisas. Tanto estava a cantar numa banda de funk como numa de afrobeat ou de jazz.

Em que altura decidiste investir num projeto a solo?

Em 2012, quando fui mãe pela segunda vez, percebi que estava a emprestar a minha voz a muitos projetos, e se queria viver da música tinha que ter um percurso a solo. A grande dificuldade foi perceber qual era o caminho. Facilmente podia ser gospel, rock, afrobeat ou jazz e isso dificultou o processo. Sabia também que queria as raízes de Moçambique presentes, mas a dificuldade foi em saber como misturar tudo. Foi isso que tornou o percurso mais demorado. Comecei por fazê-lo com o Pablo Lapidusas, que conheci no Festival da Conexão Lusófona. Na altura eu vivia em Bruxelas, então fechámo-nos num sótão a partir pedra, a construir canções. Ele tinha um editor moçambicano, fomos gravar no estúdio em Moçambique, mas depois no final, em 2014, tinha um disco que, bem espremido, ainda não era bem aquilo que eu pretendia. No fundo o que eu pretendia era fundir o meu lado africano com o meu lado mais urbano usando os instrumentos tradicionais moçambicanos sem serem usados de uma maneira tradicional, até que cheguei ao Jori Collignon, um holandês que tem estado a trabalhar com outras bandas portuguesas. Sem qualquer tipo de vaidade, o disco ficou o que eu desejava e que eu acho que é o meu som.

Neste disco cantas em changana e chope. Foi difícil tomar essa decisão?

Não falo nenhum dos dialetos moçambicanos. Tive receio que os moçambicanos achassem que não era muito autêntico, mas depois pensei: “em 2016 gravei o Retiro com o Rodrigo Leão em latim. Se gravo coisas em latim, não vou gravar num dialeto meu por medo do que possam pensar?” Tive uns amigos moçambicanos que me incentivaram e depois brincavam comigo a dizer “lá está ela a cantar changana com sotaque ‘tuga’”. Achei isso muito engraçado. Vivo em Portugal há 30 anos, é normal que tenha sotaque português.

Porquê Mati?

Queria muito que o título fosse em chagana, que fosse a marca de uma moçambicana que abraça Portugal como uma segunda nação. Queria um nome simples e fácil de dizer. Depois porque tinha escrito uma canção/oração com esse nome que era uma fusão muito doce de todos os meus universos, a música que representava o disco. Depois porque a água é algo que nos liga a todos, que faz parte do nosso corpo, mas também porque era um nome bonito e especial.

Escolheste o Lux para apresentares este disco. Porquê?

É um sítio com o qual tenho uma relação muito boa, e eu queria fazer o concerto onde me sentisse em casa. Por via do Rodrigo Leão comecei a ter alguns seguidores mais clássicos, que estão habituados a estar sentados em concertos, e eu queria que fosse uma sala em que as pessoas estivessem em pé. Quis encontrar um ambiente que fosse um bocadinho de clube, de dimensão intermédia, onde me sentisse em casa, que fosse um sítio urbano. É um sítio feliz para mim.

O que traz o futuro próximo?

Este ano está muito direcionado para a divulgação do Mati, mas também para a internacionalização. Já tenho alguns concertos marcados: Polónia, Luxemburgo, Brasil, França, Espanha. O futuro do próximo disco já está delineado, gravei-o no verão passado com o meu produtor antigo mas também conta com produção do Guilherme Kastrup (produtor da Elza Soares). Estou com muita vontade de mostrar o disco, mas só sairá em 2020. Em relação às colaborações, os convites vão surgindo mas a disponibilidade é outra e vou dizendo que não mais vezes do que gostaria. Este ano já tenho concertos do Rodrigo Leão marcados vai sair um novo disco dos Throes & The Shine para o qual escrevi uma canção, tenho pedidos de duas bandas para fazer músicas e, para além de tudo isto, tenho duas filhas e um marido [risos].

“Não se pretendeu uma retrospetiva, nem houve a pretensão de mostrar exaustivamente a obra de João Onofre”, esclarece previamente Delfim Sardo, curador de Once in a Lifetime [repeat], a exposição que reúne, nas galerias da Culturgest, alguns dos trabalhos mais significativos do artista lisboeta, nascido em 1976. Dir-se-ia que, ao longo da mostra, “o enfase é dado a essa espécie de limbo entre o romantismo e os grandes temas da história da arte, nomeadamente, o amor, a falha ou a morte, que parece atravessar toda a obra de Onofre. Tudo com incontestável ironia.”

A exposição começa ainda na rua, à entrada da Culturgest, com Box, um cubo em aço com uma dimensão de 1,83 metros, alusão aos 6 pés (six feet) de profundidade de uma sepultura. A peça é uma citação a uma escultura seminal do minimalismo, a obra Die (1962) de Tony Smith, e nesta “leitura” de Onofre resulta numa caixa insonorizada na qual uma banda de death metal (os Holocausto Canibal) realizam “uma performance extrema”: encarcerados no seu interior, a banda toca até o oxigénio permitir (a performance voltará a realizar-se a 17 de maio, às 22h30).

Box sized DIE featuring…, Marlborough Contemporary, Londres, junho 2014

 

Os ecos da história da arte moderna e contemporânea compõem também a trilogia O Estúdio. Os três vídeos são uma citação direta a Bruce Nauman, influente artista conceptual norte-americano, que desenvolveu algumas das suas obras mais marcantes elegendo como tema o próprio estúdio. Nauman acreditava que “a arte é aquilo que o artista realiza no atelier”, e Onofre parece partir desta referência da década de 60 do século passado para, “com uma ironia incisiva em relação à ambição transfiguradora das imagens artísticas”, filmar uma cantora a interpretar as preposições de “arte conceptual” do minimalista Sol LeWitt sobre a melodia de Like A Virgin de Madonna; colocar um ilusionista a executar o tradicional número de levitação da sua partner (de novo, uma citação a Nauman); e libertar, no confinado espaço do próprio atelier, um abutre que, com a sua envergadura, acabará por destruir tudo, num irónico exercício de “necrofagia da obra do artista”, como sublinha o curador.

Outra referência a Nauman, mais concretamente ao seu famoso Self-Portrait as a Fountain, surge em Untitled (Luminous Fountain), autorretrato enquadrado pela fonte luminosa da Praça do Império, em Belém.

Untitled (Luminous Fountain), 2005 | Foto digital montada entre alumínio e plexiglass | 110 x 150 x 4 cm

 

No percurso de Onofre, o cinema é outra fonte de citações. Se, por um lado, a peça mais antiga presente nesta exposição é um curto excerto de O Eclipe, obra-prima de Michelangelo Antonioni, em que os protagonistas (Alain Delon e Monica Vitti) encenam, com as mãos, o jogo de sedução em loop, a mais recente, e até aqui inédita obra, é um complexo e arrojado take único de perto de duas horas e meia, a lembrar o One Plus One, de Godard, ou A Arca Russa, de Aleksandr Sokurov.

Untitled (zoetrope) trata-se de um enorme plano sequência protagonizado por um coro de gospel, um quarteto de músicos e uma equipa mista de râguebi, que “encenam um ritual interminável, até à completa exaustão”. Ao som de I want to know what love is, tema pop da década de 1980 celebrizado pelos Foreigner, os jogadores tentam, à vez, entoar o refrão da canção num microfone situado no centro do set, rodeado pelos músicos e pelo coro. Porém, nunca o conseguem terminar, uma vez que são insistentemente placados pelos seus colegas de equipa.

Untitled (zoetrope), 2018-19 | Video 4K, cor, som, 142’ | Coleção Maria João e Armando Cabral / Cortesia Cristina Guerra Contemporary Art

 

Esta performance filmada é particularmente ilustrativa do espírito de toda a exposição, “concebida em torno da importância da circularidade e da repetição como processo criativo”, como ressalva Delfim Sardo. Depois, há sempre essa “omnipresença da ideia de finitude, de falta, de fracasso e de erro inerentes à vida e, consequentemente, à criação artística” que, na obra de João Onofre, detêm “a fina ironia com que [cada peça] oscila entre tragédia, comédia e conceito.”

Depois de gravemente ferida no Iraque, a fotojornalista Sarah (Sandra Faleiro) regressa a casa onde reencontra o namorado, também ele repórter de guerra, James (João Reis). Além das mazelas visíveis, Sarah continua profundamente abalada, apesar dos esforços de James na sua recuperação. Entretanto, o casal recebe a visita de Richard (Virgílio Castelo), editor de fotografia e amigo de longa data, que traz consigo a jovem namorada, Mandy (Sara Matos). O contacto com esta mulher mais jovem, algo frívola e completamente deslocada do mundo destes jornalistas, vai provocar um forte abalo nas suas perspetivas de vida.

“O que mais me fascina nesta peça”, conta o encenador Diogo Infante, “é toda a natureza humana contida nestas personagens. Por um lado, há aquelas três que se regem pelos mesmos códigos, pela profissão, pelos mesmos interesses. E, depois, surge Mandy, e tudo é como que colocado em causa.”

A atriz Sandra Faleiro volta a ser dirigida por Diogo Infante.

 

O abalo começa, desde logo, na vida de Richard. Apaixonado, a relação com a jovem proporciona-lhe uma mudança radical no seu percurso, que passará, mais tarde, pela assunção plena do compromisso. Para James, enquanto observador, a relação do amigo leva-o a questionar o seu próprio papel social enquanto repórter e, simultaneamente, aquilo que tem sacrificado ao longo da vida em nome da profissão, nomeadamente, os afetos e a perspetiva de construir uma família.

Zoom é, apesar do olhar sobre o mundo em que vivemos, “uma história de amor.”

 

“Apesar do olhar muito atual sobre os conflitos que ocorrem no mundo, sobre o papel dos jornalistas e a sua implicação social, Zoom é sobre essa trupe que é a família”, releva Infante. “No fundo, é uma peça sobre relações, sobre encruzilhadas. Uma história de amor.”

E, no centro da encruzilhada está Sarah. Uma “vida normal” até a pode tentar, mas continua a existir um mundo lá fora e histórias para contar. Sem certezas e no limite das emoções, a fotojornalista vai ser colocada perante decisões que poderão definir toda a sua vida.

Zoom, de Donald Margulies, está em cena, na Sala Carmen Dolores do Teatro da Trindade, até 31 de março.

Dirigindo-se ao público, André Amálio começa por prometer um espetáculo diferente de todos os que dirigiu anteriormente. “Este não é político. Este é sobre o amor!”, anuncia. De seguida, cada um dos intérpretes elenca como vai demonstrar o amor em cena e começa por apresenta “o seu amor” – seja ele um pai, no caso de Júlio Mesquita, ou a companheira, no caso do próprio Amálio. Tudo porque, parafraseando o filósofo esloveno Srecko Horvat, “o amor é revolução”. Sempre, e em que circustância for, “a nossa revolução.”

Mas, “revolução” é um conceito político, não é? “Trata-se de uma falsa premissa que decidimos lançar, porque aquilo que realmente nos importa é dar a entender que todo o amor é político”, esclarece Amálio. Político porque, acredita, “todas as histórias de amor o são.”

Júlio Mesquita, Romi Anauel, Laurinda Chiungue e Pedro Salvador num cena do espetáculo.

 

Será precisamente nesse sentido que Amores Pós-Coloniais avança, começando por fazer ecoar entrevistas a ex-combatentes da Guerra Colonial que tiveram filhos com mulheres africanas negras durante o conflito, seguindo pelas memórias de portuguesas brancas que viveram histórias de amor com ativistas africanos (como Agostinho Neto e Amílcar Cabral) ou dando voz a testemunhos dos filhos resultantes de relações interraciais.

Porém, o mosaico que Amálio e a sua companheira e parceira criativa Tereza Havlíčková constroem, vai ainda mais além. O império acabou e vivemos, desde o final do fascismo, um período pós-colonial, embora subsista ainda uma colonização do pensamento e dos comportamentos. Torna-se particularmente pungente escutar os testemunhos de hoje, nomeadamente dos atores negros em cena (Júlio Mesquita, Laurinda Chiungue e Romi Anauel), todos nascidos após o 25 de Abril, mas ainda marcados pela herança nefasta de quase 500 anos de história que teimamos em mascarar. Afinal, pergunta-nos Amálio, “o que terá sido mais marcante na história deste país: a descoberta do caminho marítimo para a Índia ou o início do colonialismo e do tráfico de escravos no Atlântico?”

Um espetáculo que é também festivo, e como tal não faltam a música, a dança ou a gastronomia.

 

Se, por um lado, Amores Pós-Coloniais é um objeto de denúncia, assumidamente ativista e político, por outro, é indiscutivelmente um espetáculo sobre o amor. Apesar de toda a gravidade que paira quando se tocam estes temas, é também festivo, e como tal não faltam a música, a dança e a gastronomia. Festeje-se então o amor que é “a nossa revolução”, como se escuta a dado momento. Porque, como se torna implícito, só o amor pode conduzir à descolonização que ainda está por fazer. Aqui, em Portugal; agora, neste ano de 2019.

No palco da Comuna reúne-se um elenco inteiramente feminino para levar à cena o Hamlet de William Shakespeare, quase 500 anos depois da primeira encenação da peça, quando em pleno período isabelino apenas aos homens era permitido subir ao palco. Para este “projeto transgressor”, o encenador Hugo Franco pega na (academicamente) controversa, mas a todos os níveis belíssima, tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen, depura o texto e entrega a Maria Ana Filipe, Margarida Cardeal, Diana Costa e Silva, Mónica Garnel, Tânia Alves, Lia Carvalho e Custódia Gallego, as personagens centrais da tragédia.

“Interessou-me perceber como é que aquelas palavras que parecem conter toda a essência do amor e do ódio, e tanta, mas tanta paixão, poderiam ser ditas por mulheres”, explica Hugo Franco. “E aquilo que descobri ao longo dos ensaios foi que, ao entregar as personagens de Hamlet a um elenco feminino, essas palavras tornaram-se ainda mais humanas” acrescenta, não deixando de sublinhar que, pessoalmente, acha inigualável “a sensibilidade a que uma atriz se entrega quando as diz.”

Independentemente do género da personagem interpretada (de facto, apenas Custódia Gallego e Lia Carvalho encarnam personagens femininas), são sempre mulheres que vemos em palco. “Não pretendi que houvesse qualquer traço de masculinização das personagens. São elas a ser Hamlet, a ser Cláudio ou Polónio, com figurinos que não lhes conferem qualquer outra característica que não a de serem mulheres a representar aqueles papéis.”

Cabe a Maria Ana Filipe interpretar Hamlet. Segundo a atriz, “o que importa é deixar que o texto nos atravesse, e não o facto de estar a representar um personagem masculino”. Margarida Cardeal, que representa Cláudio, o tio usurpador de Hamlet, tem opinião semelhante, mas ressalva nunca se sentir a representar um Rei, nem mesmo uma Rainha. “Afinal, uma mulher é sempre uma mulher”, salienta a atriz.

Para além do género, Hugo Franco inclui uma outra “transgressão” nesta sua visão da peça de Shakespeare. Para interpretar Ofélia, a apaixonada do protagonista, o encenador escolheu Custódia Gallego, a mais velha das atrizes do elenco. “Aquilo que pretendia de Ofélia, aquele misto de tesão e afeto, de paixão e sentido trágico, só me poderia ser dado por uma atriz mais velha e com a capacidade de dar uma força suplementar a uma personagem tão marcante.”

HAMLET(a) pela Comuna Teatro de Pesquisa

HAMLET(a)Nota do EncenadorSer ou não ser…?É uma questão que me inquieta e Inquietar-nos é uma das funções do Teatro.A minha proposta para esta encenação foi a de TRANSGREDIR, quero muito TRANSGREDIR.Há muito tempo que tenho esta ideia de fazer um "Hamlet" em que todas as personagens são interpretadas por mulheres, situação essa que seria impossível na altura em que a peça foi escrita (séc.XVII), pois nesse tempo as mulheres estavam proibidas de representar .O que me interessou neste processo de criação foi a abordagem ao texto por parte das actrizes: as questões que daí surgiram, questões de género (claro), e também questões filosóficas mas, acima de tudo, o meu intuito sempre foi o de contar esta história que está para além do género. Este texto representado por mulheres tem, sem dúvida, uma pulsão diferente. E é essa diferença que me interessa. Mas que diferença é essa? O amor de Hamlet pelo Pai é diferente quando representado por uma mulher? A amizade de Horácio por Hamlet é diferente quando é representado por uma mulher? Mais do que um género, estas questões são essenciais à humanidade.Nesta tragédia temos amor, assassinato, traição, ódio, vingança – sentimentos transversais da natureza humana, sentimentos que não têm género…SER OU NÃO SER?O Verbo SER não é feminino nem masculino. É irregular.É próprio da natureza humana a busca pela felicidade, eu busco a felicidade a fazer teatro.Viva o Teatro!!!Hugo Francocreditos_Eduardo Breda

Posted by Teatro da Comuna on Friday, 1 February 2019

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Para além do masculino ou do feminino

O percurso das peças de Shakespeare nos palcos tem sido profícuo em ultrapassar toda e qualquer questão de género. Basta lembrar, como já sublinhámos, que na Inglaterra isabelina apenas aos homens era permitido atuar num palco, por isso, a primeira vez que um mortal teve o privilégio de tomar contacto com a beleza da “alma suicida” de Ofélia foi no corpo de um homem. O mesmo se poderia dizer da Julieta que conquistou o coração de Romeu, ou da Rosalinda (que até chegou a ser homem) de As You Like It, para alguns a mais hamletiana das personagens femininas de Shakespeare.

A enigmática dedicatória nos sonetos de Shakespeare.

 

Fora dos textos para palco, imagine uma teoria diferente para abordar a temática do masculino e feminino em Shakespeare, tal como Oscar Wilde o fez. Em O Retrato de Mr. W.H., o autor irlandês avançou com a tese provocadora de que a enigmática dedicatória feita por Shakespeare nos seus sonetos era dedicada a Willie Hughes, um jovem ator da sua companhia especializado em papéis femininos. Seria o senhor W.H. o misterioso Fair Youth, protagonista dos primeiros 126 sonetos?

 

Universais e simplesmente humanos

Será difícil aferir se no mundo, e ao longo dos tempos, Hamlet terá sido ou não interpretado somente por mulheres. Se ainda não aconteceu, o encenador Hugo Franco e o Teatro da Comuna tornam-se pioneiros na direção de um Hamlet “com pulsão totalmente feminina”. No entanto, na história do teatro, grandes atrizes subiram ao palco para interpretar os heróis do teatro shakespeariano, acreditando em personagens universais e simplesmente humanas, à prova de poderem ser reduzidas meramente ao masculino ou ao feminino.

A mítica atriz francesa Sarah Bernhardt interpretando Hamlet no final do século XIX.

 

O exemplo mais famoso é o de Sarah Bernhardt que, em 1899, estrearia em Paris um Hamlet por si protagonizado. Embora assumindo (como se escreveu em jornais da época) “uma masculinidade engenhosa”, Bernhardt rasgava o cânone – muito embora atrizes de inferior gabarito já tivessem interpretado o papel antes da diva francesa – e seria aplaudida no país natal do Bardo, atuando mesmo em Stratford, no Shakespeare Memorial Theatre. Mais recentemente, sem optar pela masculinização da personagem, atrizes como Frances de la Tour e Maxine Peake também encarnaram o papel do jovem Hamlet.

 

Gonçalo Couceiro Feio

A Guerra no Renascimento

Durante o Renascimento, a arte militar ocidental sofreu profundas alterações: os exércitos tornaram-se maiores e mais centralizados, assistiu-se a uma generalização das armas de fogo, a logística tornou-se mais sofisticada e a instrução mais cuidadosa e regulamentada. De que forma Portugal se adaptou a estas alterações de modo a criar forças militares que correspondessem à nova realidade? Gonçalo Couceiro Feio, investigador no Centro de História da Universidade de Lisboa, explica como Portugal se adaptou a estes novos requisitos, como funcionava a máquina militar – o recrutamento, a instrução, a disciplina a remuneração do serviço militar, a logística, o armamento –, qual era o perfil dos soldados e comandantes portugueses e de que forma foi feita a transferência de saberes e permuta cultural entre as forças militares portuguesas e outras de várias nacionalidades. Uma obra fundamental para conhecer a História Militar portuguesa na época de D. Manuel I a Felipe II.

A Esfera dos Livros

 

Milan Kundera

Os Testamentos Tráidos

O presente ensaio tem como tema principal a arte do romance. Kundera, defensor apaixonado dos direitos morais do artista e do respeito devido às obras de arte e aos desejos dos seus criadores, produz uma fascinante meditação sobre a necessidade de preservar o trabalho dos artistas das avaliações destrutivas. Assim, Stravinsky e Kafka surgem-nos “avaliados” pelos seus curiosos amigos Ansermet e Max Brod,  e Hemingway pelo seu biógrafo Jeffrey Meyers. Kundera examina os grandes processos morais erguidos contra arte do século de Céline a Maiakosvski. Desenvolve os temas do humor como “grande invenção do espírito moderno” ligada ao nascimento do romance, a misteriosa ligação entre romance e música ou a defesa do romance como “território em que se suspende a moral”. Aborda ainda outras questões relevantes da nossa época. Refletindo sobre “o uivo extático” do rock que se apoderou do mundo, interroga-se: “Quererá o século esquecer as suas utopias soçobradas no horror? Esquecer a sua arte? Uma arte que pela sua subtileza, pela sua vã complexidade, irrita os povos, ofende a democracia?”

Dom Quixote

 

José Cardoso Pires

Lisboa –- Livro de Bordo

“Cada um tem uma lisboa pessoal”, era uma frase de José Cardoso Pires. Nesta sua obra escreve: “ninguém poderá conhecer uma cidade se não a souber interrogar, interrogando-se a si mesmo. Ou seja, senão tentar por conta própria os acasos que a tornam imprevisível e lhe dão o mistério da unidade mais dela”. Por isso, este não é um livro para os que praticam as vias-sacras dos monumentos, os labirintos de roteiro ou para os viajantes de museu. É uma rota atenta à luz e às cores, aos cheiros e às vozes, ao humor, ao tom, à sintaxe e aos gestos, “registos inconfundíveis do espirito do lugar”. O autor evoca as antigas tertúlias das letras e da política nos cafés do Rossio, a cor de lisboa na pintura de Bernardo Marques, Carlos Botelho, Abel Manta ou Vieira da Silva, e os bares da capital (“cada bebedor tem o seu mapa, cada mapa os seus portos”). Elege a geografia cultural do Chiado como o local que define Lisboa e, ao recordar a ferida aberta do incêndio de 1988, questiona-se: “Quando estas cicatrizes tiverem fechado, como será este rosto de mim mesmo?”

Relógio D’Água

 

Carlos Morais José

O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja

Os jesuítas de Macau terão criado no século XVI um secreto Arquivo das Confissões para melhor estudarem os meandros das almas dos crentes e, desse modo, adquirirem uma compreensão mais vasta da natureza humana. Para entenderem o que terá levado esses homens a cometer tão grande pecado e arriscar penas eternas. O livro gira em volta da leitura de um desses documentos que narra a história do homem que, devorado pela Inveja, roubou na Ilha de Moçambique um livro de versos ao maior poeta português da sua época. Absorvido pela obra e pelo crime, empreende uma estranha viagem pelos confins da Ásia, que o levará, de infâmia em infâmia, até aos pés de um confessor, na Igreja da Madre de Deus, em Macau, onde procura a absolvição e o esquecimento. Inspirada no roubo de Parnaso, manuscrito do poeta Luís de Camões que desapareceu na Ilha de Moçambique, esta obra tece uma admirável reflexão em torno do sentimento da inveja – “paixão retorcida, deusa esverdeada, aguilhão da História” – e dos seus efeitos devastadores.

Arranha-céus

 

Natália Correia

Entre a Raíz e a Utopia

“Nenhuma sociedade pode ser grande sem grandes homens”, escreveu o filósofo Bertrand Russel, frase escolhida para a epígrafe desta publicação. O grande homem a quem este livro é dedicado é o pensador, pedagogo, ensaísta e cooperativista António Sérgio; a grande mulher a é sua autora, a poetisa Natália Correia. Este conjunto de documentos, na sua maioria inéditos, corresponde a pelo menos doze anos (1946-1958) de uma relação de profunda cumplicidade e de luta pelos ideais universais, vivida entre Natália Correia e António Sérgio (1883-1969). Um encontro entre dois grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, sob o signo da fraternidade humana e da paz ou, segundo as palavras de Sérgio, na viva esperança de um cooperativismo integral enquanto libérrima anunciação profética de uma humanidade diversa da que temos hoje.

Ponto de Fuga

 

Romana Romanyshyn e Andriy Lesiv

Alto, baixo, Num Sussurro

Um verdadeiro catálogo ilustrado de sons! No princípio tudo era silêncio. Porém, um dia o universo encheu-se de sons. Sons agradáveis, a música ou os sons da natureza, e sons desagradáveis, a poluição sonora. Sons que ouvimos e sons que não ouvimos. Alguns animais ouvem sons num especto mais amplo que os humanos (as baleias ou os golfinhos comunicam com ultrassons, os morcegos guincham no espectro ultrassónico para se orientarem). O nosso corpo produz a sua própria música com uma grande diversidade de sons (uns mais convenientes que outros!). Este belíssimo livro, Prémio Bologna Raggazzi 2018 – Não Ficção, apresenta-nos as diferentes sonoridades que existem, chamando a atenção para a importância do silêncio e para necessidade de ouvir e escutar o outro. Por vezes sem usar palavras, nem sons. A escritora Romana Romanyshyn e o ilustrador Andriy Lesiv nasceram em 1984, na Ucrânia. Depois de se licenciarem na Academia Nacional de Arte de Lviv, fundaram o estúdio gráfico Agrafka. Formam uma inventiva e premiada dupla de autores de literatura infanto-juvenil.

Orfeu Negro

2019 é ano do centenário do falecimento do homem que passou à história como o pai da Olisipografia, Júlio de Castilho. Natural de Lisboa, onde nasceu a 30 de abril de 1840, Castilho frequentou a Universidade de Coimbra, onde tirou o Curso Superior de Letras. Ao longo da sua vida afirmou-se como um intelectual destacado do seu tempo, dedicando-se à escrita, investigação, jornalismo, política, crítica literária e docência, chegando a ser nomeado professor de História e Literatura portuguesa do Infante D. Luís. Foi também diplomata, exercendo as funções de Cônsul Honorário de Portugal em Zanzibar, na atual Tanzânia.

No que concerne à cidade de Lisboa, foi um estudioso pioneiro que publicou várias obras de referência tais como Lisboa Antiga (O Bairro Alto), em 1879 e Lisboa Antiga (Bairros Orientais) de 1884 a 1890, e fundador da moderna Olisipografia, actualizando-a na teoria e metodologia. O seu legado bibliográfico é composto por um vasto conjunto de obras, artigos e ensaios da maior relevância cultural e patrimonial sobre Lisboa, bem como um lote de discípulos que continuaram a investigar o conhecimento arqueológico, histórico e artístico da cidade.

Para celebrar a efeméride, a Câmara Municipal de Lisboa – Pelouro da Cultura, através da Direção Municipal de Cultura e da EGEAC, em colaboração com a família do homenageado e outras instituições públicas e privadas, criou um programa transversal de actividades culturais e educativas sobre a vida e obra de Júlio de Castilho.

Este programa decorre desde fevereiro e terminará em novembro de 2019, com os seguintes eventos:

Júlio de Castilho e o Acaso da Olisipografia
Exposição no Museu de Lisboa – Palácio Pimenta
Até 19 maio

Augusto Vieira da Silva – a régua e o compasso na continuação dos estudos de Júlio de Castilho
Por Elisabete Gama
Gabinete de Estudos Olisiponenses
27 de março, 18 horas

Júlio de Castilho, Um Olhar
Conferência de Pedro Bebiano Braga
Grémio Literário
7 de maio 19h

Júlio de Castilho, Vida e Obra
III Colóquio de Olisipografia
Teatro Aberto
21 a 23 de novembro

Lisboa de Júlio de Castilho
Roteiro Histórico
Percurso de autocarro por vários locais de Lisboa
23 novembro, às 10h

Júlio de Castilho
Dossier Digital
Disponibilização de bibliografia ativa e passiva na coleção da Hemeroteca Digital

Há uns anos, quando decidiu começar a escrever para teatro, Rui Neto descobriu um velho fascículo abandonado numa prateleira de livros dos seus pais. Ali jazia, tão incógnito, um pequeno conto inacabado do grande escritor russo Dostoievski. Chamava-se KroKodil e narrava a insólita e terrível história de Ivan, que durante um passeio pelo jardim zoológico de São Petersburgo foi devorado de um só trago por um enorme crocodilo albino. Desengane-se quem crê que tal “extraordinário acontecimento” tenha levado Ivan a encontrar a morte. Pelo contrário, o homem sobreviveu intacto, e Neto descobriu que poderia acrescentar mais do que um ponto e completar o que falta do conto.

“Digamos que tomei a liberdade de prosseguir a história que Dostoievski não completou”, esclarece o autor e encenador. “Decidi tornar o aparentemente terrível destino de Ivan no grande motivo de atração do parque”. E, assim, surgiram nesta “extensão do conto” as tão pérfidas personagens do banqueiro, do economista e do político que vão lançar os dados e decidir que “mais vale o lucro gerado pela nova atração do que a salvação do homem”. Tudo normal, portanto.

O ator Miguel Sopas interpreta várias personagens nesta deliciosa comédia negra de Rui Neto.

 

Então Ivan, esse sonhador que ambicionava explorar as Galápagos tal como Darwin, e tinha como consorte uma bela companheira obcecada por uma viagem a Paris, lá acabou encarcerado na boca do crocodilo. Mas será que para ele foi assim tão terrível o destino?

Entre o surreal, o grotesco e o absurdo, O Crocodilo ou o extraordinário acontecimento irrelevante é um delicioso espetáculo sobre um homem banal que ganha a importância que nunca esperou. Um homem simples, “quase uma criança”, abandonado num mundo em que, a cada momento, “um acontecimento extraordinário depressa se torna irrelevante.”

“A vós, voluptuosos de todas as idades e sexos, só a vós ofereço esta obra”, escreveu o Marquês de Sade, em tom de dedicatória, a abrir A Filosofia na Alcova. Mais do que um clássico da literatura erótica, espécie de versão mitigada, e até didática, de outros livros mais enigmáticos e radicais do autor (como Justine ou Os 120 Dias de Sodoma), a obra é, simultaneamente, uma antologia da libertinagem e um tratado filosófico de raiz republicana, anticlerical e anticristã.

Sem olhar a conceções moralizantes, assumindo a linguagem direta que caracteriza a escrita de Sade, Martim Pedroso dirige um espetáculo que pode ser entendido como “uma provocação, mas não gratuita, face a tantos temas que a nossa sociedade teima em não resolver, como o culto do patriarcado, a heteronormatividade, a descriminação daquilo que é diferente aos olhos dos princípios judaico-cristãos.”

Um espetáculo “para fazer pensar, seduzir e provocar.”

 

À semelhança de Sade, como se construísse um manifesto sobre a liberdade em tempos de “censuras subtis”, Pedroso faz corresponder a cada uma das letras de B-o-u-d-o-i-r (alcova ou quarto de senhora, especificamente destinado para receções intimas) uma visão sobre os sete diálogos do texto original. Com muito humor e irreverência, num ambiente de cabaret, e emprestando ao elenco fortes traços de burlesco, o público acompanha a viagem iniciática, sem limites nem tabus, que a ingénua Eugénia (Margarida Bakker) empreende sob condução da “voluptuosa” Senhora de Saint-Ange (Maria João Abreu) e do “cínico” Dolmancé (João Gaspar), personagens que se afiguram como representações modelares do pensamento do controverso autor francês do século XVIII.

Mais de dois séculos depois da publicação (clandestina) de A Filosofia na Alcova, poderá parecer estranho classificar Boudoir – 7 Diálogos Libertinos como um objeto de enorme coragem artística. O certo, é que o é, sobretudo quando se desenha crescentemente a perceção de que o sonho presente de “um mundo plural e diverso vai sendo cada vez mais ameaçado”.

Enquanto espetáculo que pretende celebrar “a liberdade do corpo e do pensamento”, haverá certamente quem leve a mal a crueza da linguagem, quem se sinta vilipendiado ou até ofendido na sua suscetibilidade quando vir e ouvir aquilo que durante duas horas os “libertinos” têm para contar… e mostrar. Mas, como nos diz Martim Pedroso, “a arte serve para pensar, para seduzir e provocar”. E, ainda pior andará o mundo, se assim deixar de o ser.

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