Comecemos pelo fim, citando o autor nos agradecimentos: “Foi de Fernando Lopes 1935-2012) que recebi uma essencial lição de história: a de que o tempo de um filme integra a história em que nasceu, ao mesmo tempo que dela se separa – como quem conta um conto que, de tão realista, já não parece verosímil. Escrevo também para dar conta dessa ambivalência, porventura dessa contradição, que o cinema tem o poder de expor e relançar.”
João Lopes também nos oferece uma lista de filmes citados, dezenas de títulos, de L’arrivée d’un traine n gare de La Ciotad (Auguste e Louis Lumière, 1896) a American Sniper (Clint Eastwood, 2014); de A Tomada do Poder por Luís XIV (Roberto Rossellini, 1966) até A Morte de Luís XIV (Albert Serra, 2016). O autor revisita muitos títulos da história do cinema para reflectir sobre os modos de fazer história (e de contar histórias) através dos filmes.
O ensaio é constituído por uma série de textos pessoais onde reconhecemos a sensação de um pensamento que é simultâneo do acto de escrever, e que por outro lado se demarca do “triunfo obsessivo do directo e o esquemático efeito de simultaneidade” exercido pelas televisões que ocuparam as nossas vidas. Um livro que pensa e que dá que pensar.
José Riço Direitinho
O meu romance mais recente, O Escuro que te ilumina (Quetzal), é o Diário de um homem que percebe que o sexo é a única maneira de escapar a uma solidão desesperada, com uma escrita muito crua mas bastante literária. É um livro simultaneamente pornográfico e poético, quase ultra-romântico porque exprime também a paixão deste homem por uma vizinha. Uma descida aos abismos que expõe a vida por detrás das vidas que as pessoas mostram no dia-a-dia. Extinção de Thomas Bernhard é a minha sugestão de leitura de verão, um romance longo com um ritmo de escrita musical. Bernhard conhecia composição e sabia profundamente de música e este livro é quase uma sinfonia em termos de repetições de vozes, com frases que se repetem com se fossem estribilhos de canções. Um livro que, com alguma falta de censura, entra na cabeça das personagens e também desce a alguns abismos.
João Tordo
Ensina-me a Voar sobre Telhados (Companhia das Letras) é um romance dividido em duas partes distintas que acabam por se unir. Na atualidade, no Liceu Camões, em Lisboa, um funcionário tenta ajudar a ultrapassar a depressão coletiva causada pelo suicídio de um dos professores. No Japão, em 1917, um filho que desonrou a família é exilado pelo pai numa ilha deserta para morrer à fome e à sede. Um épico que cobre 100 anos de história sobre os temas da compaixão e da crueldade. Recomendo Meridiano 28 de Joel Neto. Gostei muito do seu primeiro romance Arquipélago e acho este ainda melhor. O livro passa-se nos Açores durante a II Guerra Mundial, tem uma forte componente de investigação histórica e uma vertente que me interessa que é a de compulsar vários elementos numa só narrativa. O Joel é um escritor que diz muito em poucas palavras, que traça na perfeição os destinos das personagens em histórias recompensadoras emocionalmente.
Luísa Costa Gomes
O romance Florinhas de Soror Nada (Dom Quixote) descreve uma perda de fé na igreja católica. Perda de fé que é vista como uma libertação e uma possibilidade de viver de forma mais verdadeira e humana. A minha proposta de leitura é Quincas Borba de Machado de Assis. Uma obra que releio todos os anos e que propõe uma conceção do mundo que é o humanitismo, critica ao humanismo no sentido em que este considera o homem a medida de todas as coisas, quando, no fundo, fazendo o que se fizer, o mundo não se compadece com nenhuma moralidade. A natureza é impassível e indiferente ao sofrimento humano. O livro proclama, num sentido paradoxal, a inutilidade do sofrimento e a sua impossibilidade de erradicação.
Joana Gorjão Henriques
Racismo no País dos Brancos Costumes (Tinta-da-China), é um livro sobre o racismo em Portugal, hoje. A ideia é, através de oitenta entrevistas, tentar abordar a forma como o racismo se manifesta estruturalmente na sociedade portuguesa. As pessoas contam as suas próprias histórias e fazem as suas análises sobre a descriminação racial em Portugal. Aconselho a leitura de Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism de Grada Kilomba, uma artista portuguesa, afrodescendente, a viver em Berlim. Um ensaio pujante que recorre também a algumas entrevistas sobre o racismo. Um livro na primeira pessoa de uma artista e académica que faz um cruzamento profundamente original da experiência pessoal com a análise científica.
Jacinto Lucas Pires
A Gargalhada de Augusto Reis (Porto Editora), romance sobre a personagem de um banqueiro e poeta, faz uma junção improvável entre números e palavras. A obra atravessa o nosso tempo histórico coletivo: vem do estado Novo até aos dias de hoje. O protagonista é alguém que tem a capacidade de manter a alegria no meio de grandes terramotos, de uma profunda crise coletiva e pessoal. O romance reflete sobre se, nestas condições, a alegria é uma possibilidade e se pode servil de farol para os outros. O livro que referencio é A Marcha de Radetzky, de Joseph Roth, um romance sobre a ideia de sonho europeu “avant la lettre”. Apesar de se reportar ao final do Império Austro-Húngaro, é uma obra muito atual porque fala na necessidade de vivermos num espaço único, mas multicultural, como forma de evitarmos novas guerras. Para além de estar muito bem escrito, com grandes metáforas, belas personagens e intriga brilhante, tem este lado suplementar de nos chamar a atenção para o presente.
Patrícia Müller
Chovem Cães e Gatos na Minha Rua (Zero a Oito), livro infantil para os meninos que já sabem ler, conta a história de uma amizade improvável entre um cão e um gato. É uma alegoria à situação dos refugiados porque o cão guarda o país dos cães e recebe uma gata que foi expulsa do país dos gatos. Uma história de amizade/amor, porque o amor e a amizade são muito parecidos. Enquanto Lisboa Arde, o Rio de Janeiro Pega Fogo, de Hugo Gonçalves, é uma obra incrível pela ponte que constrói entre Portugal e o Brasil. É um livro contemporâneo que narra a experiência de um português que vai viver para o Rio, a sua relação com as mulheres, com as drogas, com a nova cidade e com o que deixou para trás. Tem também um elemento policial que torna a leitura viciante e que o converte num romance ideal para o verão.
Joana Bértholo
O romance Ecologia (Editorial Caminho) tem como tema a privatização da linguagem, o momento em que começamos a pagar pelas palavras. Conta as histórias de pessoas muito diferentes entre si, um casal, um grupo de amigos, um homem que está preso, que têm que lidar com esta nova realidade em que as palavras são uma mercadoria que se vende e se compra. Como consequência, o livro apresenta uma nova proposta ecológica porque é a linguagem que nos liga ao meio ambiente. Proponho a leitura das Obras Completas de Nuno Bragança, um autor essencial do século XX português com uma inventividade e uma relação com a língua muito singulares. Esta é uma otima sugestão para quem nunca o leu, porque está lá tudo. Quem leu A Noite e o Riso ou Directa, encontra nesta edição uma série de textos nunca antes publicados em livro. Uma aposta ganha para quem conhece e para quem não conhece Nuno Bragança.
Deve ser um pouco estranho ver-se como personagem numa peça de teatro.
Garanto que nunca me passou pela cabeça [riso]. A ideia foi do Diogo [Infante] e surgiu a partir do meu último livro [Vozes dentro de mim, Sextante Editora, 2017]. Durante o lançamento, no Teatro Aberto, fiz uma leitura de trechos com outras atrizes e, nesse mesmo dia, ele veio ter comigo e diz “Carmen, quero falar consigo”. Uns dias mais tarde apresenta-me a ideia e eu apanho um susto… “que responsabilidade!”, pensei. Depois, refleti: o livro está escrito, são as minhas palavras, e é ele que faz a adaptação e vai buscar alguns apontamentos aos livros anteriores, portanto, o meu contributo limita-se a isso. Mas, não deixa de ser estranho, de repente, eu que fiz tantas personagens e nunca me interpretei a mim mesma, tornar-me agora figura de uma peça…
Com a Natália Luiza a interpretar a Carmen…
Fiquei muito contente por ser a Natália. Temos muitas afinidades, já trabalhámos juntas – no Espectros, do Ibsen, no Teatro Experimental de Cascais [em 1992, dirigida por Carlos Avillez, também com Diogo Infante no elenco] – e devo dizer que lamento que ela seja hoje mais encenadora do que atriz. Não porque não lhe reconheça mérito, bem pelo contrário, mas a Natália é daquelas atrizes que, pela entrega total às coisas, gosto muito de ver em palco. Por tudo isso, penso que foi extraordinariamente bem escolhida.
Não acompanhou nenhum ensaio?
Ensaio, não. Tivemos aqui em minha casa uma reunião, conversámos, e tudo isso. Mas só. Para mim irá ser uma surpresa. Porém, deixe-me dizer que a Carmen dela poderá não ser bem como eu. Será mesmo muito natural que ela ponha alguma coisa dela…
Aliás, é esse mesmo o trabalho do ator.
Exato. Enquanto representei tentei sempre não ser eu, mas sim a personagem. Embora houvesse uma coisa que me transcendia: quando interpretava não uma personagem fictícia, daquelas que o autor inventou, mas uma figura real, entregava-me de tal modo e assumia uma tal responsabilidade que acabava por emprestar muito de mim. Isso sucedeu com a Virginia Woolf [Virginia, de Edna O’Brien, 1985], que tanto gostei de interpretar, que estudei a fundo, desde os romances aos diários, e que me esmagou. Foi uma experiência fora de série.
Como é que compôs as personagens que interpretou?
Tentei sempre imaginar os sentimentos delas, o que as levaria à ação, àquele momento das suas vidas. Mas, sempre evitando usar os meus próprios sentimentos. Talvez por isso sempre me tenha interessado interpretar figuras tão diferentes daquilo que sou.
Mas isso nem sempre foi possível, pois não?
No princípio da minha carreira, no cinema, fazia personagens muito parecidas comigo. Era sempre a sentimental! [sorriso] Cheguei a receber a carta de uma admiradora que dizia: “você que morreu de amor deve compreender o meu problema”. Era muito curiosa a relação com o público nessa época em que o cinema português estava no auge e toda a gente ia ver os filmes.
Mas, no teatro, a sua relação com as personagens já era diferente…
Sabe que raramente escolhi os meus papéis? Quando me começaram a distribuir papeis que nada tinham a ver comigo ficava intimamente presa a eles. Faziam-me experimentar sentimentos que nunca vivera, como a raiva, o ódio… E gostava de os experienciar através daquilo que as personagens sentiam.
Alguma vez temeu que uma personagem tomasse conta de si?
Não, porque tentei sempre defender-me. Lutei muitas vezes para que tal não sucedesse. Mesmo na Virginia de que falámos há pouco… Por sinal, precisamente após a ter interpretado, aconteceu ir a passar no corredor, o meu marido ter o rádio ligado, e ouvir: “a Virginia Woolf…” qualquer coisa. Parei e pensei: “estão a falar de mim?” Mas foi caso único. Em tantos anos, procurei nunca trazer a personagem para casa.
Mesmo em jovem, conseguia ter esse controlo?
Sim, porque eu fui atriz por acaso. Comecei a dizer poesia na rádio e, de um momento para o outro, surge o António Lopes Ribeiro. Os meus dois primeiros filmes [Amor de Perdição e A Vizinha do Lado], tem graça, estrearam no Teatro da Trindade, numa altura em que durante seis meses passava cinema e nos outros seis, teatro. O Lopes Ribeiro leva-me entretanto para o teatro, para os Comediantes de Lisboa. E depois, mesmo sem Conservatório, vou parar ao Nacional. Acho que fui uma mulher com sorte.
Alguma vez sentiu que atraiçoou uma personagem?
Fiz sempre o possível por não as atraiçoar, mas houve algumas que julgo não ter ido até ao fim na sua composição. Sabe, eu sou uma insatisfeita. Nunca fico inteiramente contente com aquilo que faço.
Já que mencionou o cinema, a Carmen teve sempre uma relação notável com a câmara, e lembro a importância que atribui ao teatro televisivo…
Reconheço-lhe, de facto, uma grande importância na carreira, até porque me permitiu corrigir posturas ou entoações vendo-me na televisão. Costumo dizer aos meus colegas que aprendemos muito a ver-nos. E se o teatro por vezes não me satisfazia, era precisamente porque não possibilitava que eu desse conta dos meus defeitos.
Para lá desse lado de autoavaliação, gostava de fazer teatro num estúdio?
Dava-me imenso gozo. Vivia a personagem, não havia público, mas havia… estavam lá o realizador e os técnicos. E, por falar em técnicos, tive sempre uma relação muito boa com eles. No início de carreira, no cinema, eu era muito jovem e tímida e, simpaticamente, chamavam-me Teresinha por causa da personagem que interpretei no Amor de Perdição.
Porque é que fez tão pouco cinema?
Porque não tive convites. A seguir ao 25 de Abril ainda fiz um filme com o António de Macedo e, um pouco mais tarde, filmei com o José Fonseca e Costa [Balada da Praia dos Cães e A Mulher do Próximo]. O Zé ainda me convidou há uns anos para entrar naquele que foi o seu último filme, mas eu já estava retirada e recusei.
O José Fonseca e Costa sempre referiu a enorme admiração que tinha por si…
Ele dizia que se tinha apaixonado por mim aos dez anos, quando me viu no Amor de Perdição. [risos] Recordo-me dele me ter ligado a dizer: “Ó Carmen, venha fazer o filme comigo.” [pausa] Filme que ele já não acabou…
Ainda sai para ir ao teatro?
Há muito tempo que não vou. Desabituei-me de sair… mas vou-me mantendo a par. Vou falando com colegas…
Como é que olha para o estado do teatro em Portugal?
Primeiro, acho que as temporadas são muito curtas. Depois, preocupa-me que haja tanta gente a sair das escolas quando parece não haver mercado. Quanto ao resto, e ao contrário do que pensam algumas pessoas da minha geração, não acho que tudo seja mau ou um disparate. As coisas são diferentes, e tento compreender. Qual é o mal de não haver grandes cenários ou de os atores representarem de jeans? Aquilo que me parece negativo é não haver continuidade e faltarem companhias fixas. Sem a televisão, hoje, os atores não viviam. E isso aflige-me.
Já deixou de ir à Gulbenkian, aos recitais de piano?
Já deixei de ter a “assinatura”. O meu filho é que continua a ir. Sabe, eu sou muito comodista, gosto de estar em casa, no meu cantinho, a viver a minha solidão, da qual gosto muito. Mas sinto que deveria sair mais…
Imagino então que passa os dias envolvida com os seus livros, com os poetas que tão bem declamou…
Os meus dias passam-se, sobretudo, a escrever. Estou atualmente, com o Vitor Pavão dos Santos, a preparar um livro sobre os Comediantes de Lisboa. É bom recordar aqueles grandes atores, essas vedetas que trabalharam comigo, como o João Villaret, a Maria Lalande, o António Silva, a Josefina Silva… E nós, eu, o Ruy de Carvalho, o Igrejas Caeiro e outros, éramos os jovens da companhia.
A escrita é uma paixão antiga?
Uma paixão de sempre, mas nunca por encomenda. Tem de ser por inspiração. Comecei, sem querer, a redigir memórias, ou melhor, comecei a usar a escrita para partir à procura de mim numa altura em que, por ter decidido acompanhar o meu marido, fui viver para Paris. Como estava afastada dos palcos, começaram a surgir episódios de que me ia recordando, e tive a sorte de um jornalista português, o Daniel Ribeiro, me ter entrevistado e de eu lhe ter confidenciado que andava a escrever umas “memórias”. O José Carlos Vasconcelos, que estava nessa altura n’ O Jornal [semanário surgido após o 25 de Abril], mostrou-se interessado e, como havia paralelamente ao jornal uma editora, surgiu o meu primeiro livro, Retrato Inacabado [Edições O Jornal, 1984].
A Carmen é quase uma pioneira no panorama português, já que é muito raro, por cá, um ator escrever memórias…
O que é uma pena! Ao contrário do que sucede em França, onde isso é muito comum. Talvez influenciada por esse período em que por lá vivi, habituei-me a escrevê-las, até porque penso serem documentos de época que ficam para o futuro. Aliás, passo a vida a desafiar os meus colegas a escreverem memórias porque acredito que seria importante.
Por falar em “pioneira”, está intimamente ligada a um dos primeiros e mais influentes grupos de teatro independente em Portugal, o Teatro Moderno de Lisboa, que cofundou em 1961…
A importância do Teatro Moderno de Lisboa, e não é por ter feito parte dele, foi imensa. Mas tivemos muitas dificuldades. Atuávamos no Cinema Império, nos períodos de tempo em que não havia cinema… às vezes, entre sessões dos filmes do [Ingmar] Bergman, o que era extraordinário! [risos] Depois, como não tínhamos qualquer subsídio, era muito complicado, sobretudo para os atores que dependiam exclusivamente do trabalho para subsistir, como o Rogério Paulo ou o Ruy de Carvalho. Eu, como já era casada, e o meu marido tinha uma situação confortável, podia até não receber, mas para os meus colegas a situação era dramática.
E ainda havia a censura.
É verdade! Tenho aqui em casa muitos documentos da censura a proibir peças. Nós acabámos, precisamente, porque íamos fazer os Porquinhos da India, do Yves Jamiaque, com o Rogério Paulo, imagine-se, a interpretar um operário. Claro que a peça não passou na censura prévia, mas, tem piada, o Ribeirinho conseguiu fazê-la antes do 25 de Abril e, ao que sei, não houve problemas com a censura.
Incoerências?
O Teatro Moderno de Lisboa surge comigo, com o Rogério, o Armando Cortez, o Morais e Castro, e outros tantos, e houve sempre uma relação tensa com a censura, até porque alguns dos membros eram comunistas. Dai, talvez não seja propriamente por incoerência. Mas, repare, a censura atuava em todo o lado e nem sempre por razões políticas. Na televisão, por exemplo, lembro-me de estar a fazer uma peça russa em que eu interpretava uma mulher casada, mas o marido nunca aparecia em cena. Por isso, os censores obrigaram-nos a dizer que ela era viúva. Tudo por causa dos costumes!
Ainda antes do 25 de Abril vive um período que lhe é muito caro, na Casa da Comédia, onde palco e plateia quase se fundiam…
Adorei essa relação de proximidade da cena com o público. Depois da Casa da Comédia, deixei de gostar de representar em teatros grandes. Quando o público está próximo, sinto que me dou mais. Vivi tempos muito felizes nesse período.
E, logo a seguir à queda da ditadura, vai experienciar essa relação de proximidade com o público por esse país fora…
Apesar do [Luís Miguel] Cintra também ter feito um, segundo garante o João Lourenço, foi com o primeiro Brecht que por cá se encenou: As Espingardas da Mãe Carrar. Fizemos primeiro na Casa da Comédia, depois no Trindade ao longo de umas semanas e, logo a seguir, uma tournée. E foi muito divertido, apesar de algumas noites complicadas para a concentração dos atores [riso].
Porquê?
Porque as pessoas iam para o teatro como se fosse para um comício, levavam as crianças, traziam laranjadas… O que era natural, pois, para a maioria, era a primeira vez que viam teatro. É importante que hoje se saiba que isso se passava não assim há tantos anos. A maioria das pessoas não tinha acesso à cultura!
Ao lermos os seus livros de memórias sentimos que tem sempre um olhar otimista sobre a sua relação com a vida e com os outros. Nunca há espaço para acertos de contas com o passado, com os outros…
Mesmo os poucos com quem poderia fazê-los, não me interessa. Não vale a pena. Eu gosto do ser humano, tanto no bom como no mau. Como sempre fui muito reservada, sobretudo quando era jovem, dediquei-me a observar e a procurar compreender. Nenhum de nós é perfeito, todos temos qualidades e defeitos. Hoje sou uma otimista, ao contrário da criança melancólica que fui.
Fez rádio, cinema, teatro, televisão. Escreve… Para que lado pende o seu coração?
Gostava de ter sido escritora, mas tenho uma enorme ternura pela rádio. Sempre fiz rádio, sempre vivi com a rádio. E nunca tive, na rádio, aquele nervoso que sentia no teatro, antes da cortina subir (quando ainda havia cortina!) e, até mesmo, no cinema ou na televisão. Estar na rádio foi sempre como estar em casa.
Rita Canas Mendes e João Fazenda
A Nuvem
Pato Lógico
Este delicioso livro conta a história de uma nuvem que, certo dia, se instalou no céu e ali permaneceu durante dias a fio. A curiosidade da população não se fez tardar, com as teorias sobre o fenómeno a multiplicarem-se. Seria um milagre ou um prenúncio de uma catástrofe? Seria poluição? Até que, um dia, a desconcertante ordem natural das coisas acabou por se impor.
Isabel Milhós Martins e Bernardo P. Carvalho
Atlas das viagens e dos exploradores
Planeta Tangerina
As páginas deste livro estão repletas de aventuras. E de mapas. E de personagens de todos os tempos e lugares. Monges, botânicos, comerciantes, marinheiros e artistas viajantes que, para saberem o que era o mundo, tiveram que se fazer ao caminho. As suas viagens contribuíram para conhecermos melhor o planeta em que vivemos e sabermos da existência uns dos outros.
Anna Vivarelli
Pensa lá bem
Nuvem de Letras
Qualquer situação da vida nos faz despertar a curiosidade e a interrogação. No fundo, tudo serve de pretexto para surgirem dúvidas e hesitações. Este livro de filosofia para mentes jovens promete ajudar os mais novos a percorrer um mundo repleto de perguntas. Porque ser curioso, querer saber mais e estar atento ao que nos rodeia é que nos faz evoluir.
Marc Grañó e Gonzalo Fanjul
Somos os 99%
Nuvem de Tinta
Edgar, Samira, Kassia, Paul e Fabián não se conhecem. Na verdade, são cinco jovens com experiências de vida completamente diferentes. Mas, ao volante das suas bicicletas, testemunham diariamente algo que os une e afeta profundamente: a desigualdade. Tudo nas suas (e nas nossas) vidas é influenciado por esta realidade, seja a educação, a alimentação, a utilização dos recursos naturais e até a emigração.
Carolina Celas
Horizonte
Orfeu Negro
O horizonte rodeia-nos um pouco por todo o lado; aqui, ali e acolá. Pode até surgir visível ou disfarçado. Muitas vezes tentamos agarrá-lo, mas ele parece escapar sempre ao nosso alcance. Com uma linguagem meiga, este livro dá a conhecer a ilustradora Carolina Celas, não apenas ao público infantil, mas a todos que se deixarem levar pelo universo onírico e poético do seu livro de estreia.
E.E. Cummings
Contos de Encantar
Ponto de Fuga
O grande poeta modernista E.E. Cummings só reconheceu a filha Nancy quando esta era já adulta e casada. Estes contos terão sido escritos para ela quando era criança, mas só lhe foram dados depois, para que ela os lesse aos filhos. Hélia Correia traduz e Raquel Caiano ilustra estes belíssimos textos “jubilosos sobre o amor, o nascimento e o desfazer da solidão”.
O mais recente número da revista anual dedicada a estudos de teatro e artes performativas Sinais de Cena tem como tema primordial as “teorias da crítica”. Num extenso dossiê temático, composto por artigos de Luiz Fernando Ramos (Brasil), Diana Damian Martin (Inglaterra), Sergio Lo Gatto (Itália) e dos portugueses Gustavo Vicente, António Baía Reis e José Alberto Ferreira (este dedicado a um dos grandes críticos do teatro em Portugal, Manuel João Gomes) visa-se “perscrutar o modo como diferentes teorias e discursos e práticas [da crítica nas artes performativas] se posicionam face ao momento atual”, lembrando que este lado da “arte”, certamente tão esquecido na história do teatro, e tantas vezes tão mal amado, se debate ora com o estatuto de “prática obsoleta e condenada à extinção”, ora com a honrosa condição de ser “um dos últimos redutos possíveis para uma intervenção livre na esfera pública”.
Nesta edição, enfoque ainda para um portfólio, com fotografias de José Carlos Duarte, do trabalho da mala voadora (destacando-se, inevitavelmente, as magnificas criações do cenógrafo José Capela) e uma longa entrevista à coreógrafa e performer luso-cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas, recentemente premiada com o Leão de Prata na Bienal de Veneza.
A apresentação desta edição está marcada para dia 5 de julho, às 19 horas, no Teatro Nacional D. Maria II.
Em 1991, o jovem coreógrafo e bailarino Francisco Camacho partiu à procura de um “lugar para ser intérprete”, ainda no rescaldo da sua passagem por Nova Iorque, onde até equacionou trocar a dança pelo teatro. Foi na figura do último rei de Portugal, D. Manuel II, que se inspirou para criar a peça que seria determinante para a sua carreira, e onde introduzia o questionamento da forma artística como marca que haveria de perseguir em todos os seus trabalhos.
Ao lado de Fernanda Lapa, que acompanhou todo o trabalho de voz e de composição do personagem (apesar do coreógrafo o considerar “apenas uma figura apontada”), e de Carlota Lagido, que criou o figurino e foi “ajuda indispensável em todo o processo criativo”, Camacho concebeu um solo onde o intérprete (à época, também numa espécie de exílio, porque a situação da dança em Portugal era muito periclitante) se apõe à figura do último monarca português, explorando conceitos de Poder, de masculinidade e de solidão, enquanto testa os limites da dança e do teatro.
O sucesso internacional de O Rei no Exílio – “foi a peça que me abriu as portas” – deveu-se, nas palavras de Camacho, à “natureza coreográfica ser diferente daquilo que se fazia na época. Apesar de haver muita dança-teatro, sobretudo em França, a peça colocava a dança dentro de uma moldura teatral, ao mesmo tempo que promovia a justaposição entre mim, enquanto intérprete, e o personagem.”
Em 2013, com a crise no auge, Camacho regressaria a esta criação. Mas a opção foi fazer dela um Remake, com outros tempos e com menos de si mesmo. “Estou mais velho e mais pesado, e já não me interessa olhar tanto para mim como naquela altura, em que procurava descobrir-me”, confessa. Por isso, O Rei no Exílio – Remake é uma peça mais política, “com menos razão privada e mais razão de Estado, comparativamente à criação original, que até está imortalizada num filme dirigido para a RTP por Bruno de Almeida, filmado num estúdio de Nova Iorque.
Depois de várias récitas em Portugal e no estrangeiro ao longo dos últimos anos, o Remake desta que é considerada uma das obras mais marcantes da dança contemporânea portuguesa, sobe ao palco da Sala Garrett para uma apresentação única, que marca também os 25 anos da EIRA, estrutura dirigida pelo coreógrafo.
Depois de um longo processo de audições, workshops e entrevistas, Joana Craveiro e a equipa do Teatro do Vestido selecionaram cinco atores (Cláudia Andrade, Daniel Moutinho, Lavínia Moreira, Marina Albuquerque e Rafael Rodrigues) que, não tendo vivido a experiência efetiva do Portugal colonial, cresceram com a memória de um tempo em que este “não era um país pequeno”, e se estendia da “metrópole” a África e à India. As marcas dessas raízes vão sendo ilustradas em fotografias de família, em objetos e artefactos, naquilo que se contou sobre o passado, ou nos sabores do óleo de palma africano ou da bebinca goesa, que os atores utilizam como celebração de uma memória indireta, herdada, repleta de afetos e, por vezes, de uma doce nostalgia.
São estas memórias familiares idílicas, produzidas nessas terras distantes outrora portuguesas que, na peça, vão embater contra a realidade da História. Inevitavelmente, vão desfazer-se no mito do “colonialismo brando” que o fascismo sustentou, a reboque de uma historiografia oficial que, só após o 25 de Abril, e muito paulatinamente, vai sendo desmontada e, muitas vezes a medo, revelada (nesse sentido, a par de alguma literatura, é incontornável o papel desempenhado, no teatro, por Joana Craveiro e pelo seu Teatro do Vestido).
Em Filhos do Retorno – um “espelho invertido” do espetáculo Retornos, exílios e alguns que ficaram, acerca dos traumas de quem regressou, ou chegou, à dita “metrópole”, em sequência do processo de descolonização –, o conflito surge, como refere Joana Craveiro, “quando estes atores se confrontam com cadáveres no armário da história das suas famílias”. Como se um fantasma assombrasse as suas vidas para comprometer as boas memórias.
Assim, e se o espetáculo proporciona uma comemoração afetiva feita com tanto do que tão intimo aqueles atores transportam dentro de si, o que se torna particularmente avassalador é vermos como o passado lhes vai pesando, independentemente de qualquer julgamento moral sobre o comportamento dos indivíduos num determinado período histórico. Afinal, com ou sem memórias dum tempo obscuro, com ou sem raízes coloniais, uma questão vai trespassar-nos a todos: de que modo aquilo que somos é condicionado pelo legado familiar inscrito pelas gerações passadas.
Apresentado em 2017, no âmbito do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, Filhos do Retorno estreia agora, em Lisboa, a 21 de junho, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II.
Como começou a tua relação com a música?
A minha relação com a música não foi académica, mas sim afetiva. O meu pai toca violão de forma recreativa desde que eu era criança. Na primeira infância eu olhava para o violão com curiosidade, aí comecei a tocar com dez anos. Ouvia músicas no rádio e tentava tocá-las. Essa foi a minha escola. Mais tarde comecei a estudar, de forma autodidata, com a internet. Comecei a me interessar por teoria musical, harmonia, leitura, etc.
Canções de Apartamento (2011), Sábado (2013) e A Praia (2015) são discos com canções intemporais com a raiz brasileira sempre presente. Como descreverias a tua música?
Ainda me sinto bem com a designação Música Popular Brasileira (MPB). Ainda me sinto bem porque a relação que tenho com a MPB não é uma relação estética, é mais ideológica porque tudo se permite na composição, todos os elementos agregam a música brasileira porque ela é inclusiva, não excluente. Dentro dessa ótica, a minha música é MPB: é música, não é erudita, e é brasileira. Mas, num sentido mais comum, já não seria. Seria, talvez, world music.
Quais são as tuas referências musicais?
Há os discos que me formaram na infância e na adolescência e que ficam no subconsciente: do Caetano Veloso, Tom Jobim, Chico Buarque, João Gilberto, Nirvana, Radiohead, Pixies…
Neste disco juntas-te aos Albatroz, grupo formado por elementos de outras bandas da cena carioca. Porque decidiste chamar este grupo de músicos para este disco?
Essa banda foi-se formando ao longo dos últimos oito anos. Tinha um amigo que me ajudava a produzir um disco, aí um outro amigo indicava um outro amigo, saía um e entrava outro na banda. Eram músicos que iam para estrada comigo tocar as músicas que eu tocava em casa. Ao longo dos anos fomos criando uma identidade musical por causa da estrada, e as músicas foram ganhando uma personalidade própria em palco. Ficavam diferentes do que eu tinha feito no disco, só que soava bem, soava a uma coisa mais orgânica. Teve um dado momento em que eu vi que tinha uma sonoridade específica e eu queria gravar um disco com aquela sonoridade. Então peguei aquele grupo de amigos e botei no estúdio, e a gente interagiu e gravou o disco. Eu queria personalizar esse grupo de pessoas para não ser “Cícero e músicos amigos”.
Porquê Albatroz?
Porque é o maior pássaro do mundo e a banda é grande, são sete pessoas. É um dos únicos pássaros que consegue atravessar o oceano, faria Brasil-Portugal, é intercontinental. A ideia da banda era essa, vir a Portugal.
Como funciona o processo de criação?
O primeiro disco que gravei com banda tinha 15 anos, foi há 17 anos atrás. Depende muito. Há fases em que estou lendo alguma coisa, então eu começo escrevendo muito. Tem fases em que estou ouvindo muita música instrumental, então faço um disco inteiro sem letra e depois vou escrevendo. Às vezes faço colagens, pego um poema e boto em cima de uma música pronta e vejo se funciona. Canção de Apartamento, o meu primeiro disco a solo, foi todo feito mais ou menos de forma parecida: sempre sentado com o violão e um caderno, um processo mais à moda antiga.
Como é a tua relação com a música portuguesa? O que gostas de ouvir?
Gosto de muita coisa. Tive uma namorada portuguesa que me apresentou coisas que estavam fora do meu radar. Comecei a ouvir mais depois da primeira vez que vim a Portugal, já tem um tempo, foi em 2013. Ouço muito Manel Cruz, Capitão Fausto, Carminho, B Fachada… Estou até querendo tocar uma música do Manel Cruz nos shows aqui em Portugal.
Se pudesses escolher um artista português para fazer uma parceria musical, quem seria?
Manel Cruz. Vou tocar no Festival Rock Nordeste no mesmo palco e no mesmo horário que o Manel Cruz, só que no dia seguinte…
A relação entre a música brasileira e a portuguesa tem criado laços cada vez mais fortes. Como vês essa ligação?
Vejo a nação brasileira como se fosse uma continuação das linhas de raciocínio de Portugal, a forma de viver em sociedade, os sentimentos… Ontem estava no apartamento com a banda e com dois músicos portugueses que vão tocar com a gente, e aí começamos a ouvir Luiz Gonzaga, que é um músico brasileiro dos anos 30/40. Aí o trombonista começou a falar que o som era igual a fulano (que era um músico português da mesma época). Aí começaram a mostrar (esqueci o nome agora), mas era a mesma sonoridade, era a mesma poesia, o mesmo jeito de cantar, só que com o ritmo um pouquinho diferente. O processo civilizacional brasileiro é mais um modelo americano, mas eu acho muito parecidas nossas culturas. Nos últimos anos aconteceu uma abertura dos media, a internet começou a botar em contacto o brasileiro com a cultura portuguesa, mais do que através da televisão.
No dia 20 de junho, apresentas o disco no Capitólio. Quais as expectativas para este concerto?
Tento sempre controlar minha expectativa para que seja uma noite agradável, mas eu sempre penso no show de Portugal como se fosse a primeira vez que estou tocando para aquelas pessoas. Já toquei bastante em Lisboa, mas quero muito ter esse sentimento de primeira vez. Sempre tenho impressão de que são pessoas que estou vendo pela primeira vez, um sentimento de descoberta.
As tuas viagens inspiram-te de alguma forma?
Totalmente. Esse disco novo tem uma música que comecei a fazer aqui em Portugal. Chama-se Velho Sitio (sem o acento da língua portuguesa, sitio como lugar). O meio onde estou influencia as músicas que vou fazer naquele período. Todos os meus discos foram assim. São muito ligados ao bairro em que eu moro, ao som do dia-a-dia: se acordo com som de carro ou som de passarinho, se as pessoas são gentis ou não. Isso influencia seu estado emocional, seu interior. Suas questões mais profundamente internas têm a ver com seu vizinho, com o céu que você ’tá olhando.
Li numa entrevista que gostarias de viver em Lisboa. Para quando a mudança?
A minha ideia é vir no começo do ano que vem, logo depois do Carnaval. Março, talvez. Não é uma mudança definitiva, mas sim uma temporada. Meus pais estão com 65 anos, então eu pretendo ficar um, dois anos, mas voltar pra cuidar dos meus pais, em vez de me estabelecer definitivamente aqui. Já fiz a viagem para Lisboa cinco vezes e sinto que está cada vez mais curta a viagem. Eu chego à meia-noite no voo, durmo, e acordo em Lisboa.
Planos para um futuro breve?
Estou sempre pensando na próxima música. Não toco em casa as músicas que eu já gravei, tenho esse problema não sei porquê [risos]. É como se eu tivesse educado filho e ele, de repente, casou. Em casa estou sempre pensando na próxima ideia. Já estou com um monte de música nova, só que essas coisas ao longo dos meses vão melhorando ou piorando. Você grava e acha muito bonito, daí a um mês você ouve e acha horrível. Tem músicas que eu começo a achar horríveis, aí boas de novo, elas ficam mudando todo o ano. Tem algumas músicas que eu acho boas para sempre e algumas que eu acho eternamente chatas.
Partem de lados opostos do palco. Tomam os seus lugares numa espécie de namoradeira suspensa, como um balancé circular. Assumem “uma pose extremamente romântica que se estende a toda a duração do espetáculo”. Ele é o Princípe; ela, Cinderela. Amam-se, odeiam-se, louvam-se, insultam-se, concordam, discordam… Mostram o quanto é difícil amar no quotidiano. Mas, no final, confessam que só pretendem ser felizes. A dois.
Do imaginário de felicidade do amor romântico presente nos contos infantis, Lígia Soares oferece em Cinderela um olhar sobre os dias de hoje, onde as preocupações sociais que estão presentes no quotidiano irrompem na relação entre um casal. “Com este texto procurei perceber o deslaçar dos vínculos e o estado de isolamento de cada indivíduo na sociedade e na família, que resulta muitas vezes na incapacidade de cada um de nós se colocar no lugar do outro”, explica a autora e encenadora.
Ao mesmo tempo, Lígia Soares centra a relação do Príncipe com a sua Cinderela num quadro de conflito de classes, mesmo dentro do casamento. “Atualmente, não há, por norma, tanta oposição como havia no passado contra a união de um casal proveniente de estratos sociais diferentes. Porém, há uma consciência implícita, mesmo entre os cônjuges, da impossibilidade de resolução da assimetria resultante da origem social.”
Perante um espetáculo onde a palavra é torrencial, contrastando com a imobilidade dos atores, a autora deixa antever algum pessimismo, apesar de, no final, derrotada a “relação idílica”, acabar por “vencer o amor maduro”. E assim se vive com “a realidade, como contraponto ao conto de fadas.”
Entre os dias 4 e 18 de julho, o Festival de Almada marca o panorama cultural de Lisboa e da sua cidade vizinha a sul do Tejo, com alguns dos maiores criadores nacionais e internacionais. Como almadense de gema, Rodrigo Francisco, diretor do Festival e da Companhia de Teatro de Almada, convida os lisboetas a atravessar o rio, seja por via da Ponte 25 de Abril ou, “porque é bem mais agradável, e a travessia demora uns meros 11 minutos, por cacilheiro. Depois é só apanhar o metro de superfície e descer na Praça São João Baptista, a 50 metros do palco da Escola D. António da Costa e do Teatro Municipal Joaquim Benite”, bem no coração de Almada. E a razão desta sugestão é simples: será por estes palcos que vão passar as escolhas de Rodrigo Francisco.
Logo no dia 6, o coreógrafo oriundo do Burquina Faso, Serge Aimé Coulibaly apresenta o extraordinário Kalakuta Republik, inspirado no compositor Fela Kuti (criador do afrobeat); dias depois, a 9 e 10 de julho, Jean Bellorini, “um dos novos grandes encenadores do teatro europeu” traz a Almada Liliom ou a vida e a morte de um vagabundo, de Ferenc Molnár, peça que inspirou Fritz Lang e que, nesta magnifica produção, lembra mesmo o ambiente simultaneamente festivo e catastrófico de Casimiro e Carolina de Horváth. Por fim, quase a fechar a grande festa, o premiado encenador de origem húngara David Marton revisita genialmente a ópera La Sonnambula (dias 17 e 18) de Bellini, naquele que “será, com toda a certeza, um dos momentos mais surpreendentes de todo o Festival.”
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