O que têm em comum as montanhas-russas que tanta adrenalina provocam nos mais corajosos e a adolescência, com o seu universo de tantas, e tão ambíguas, emoções à flor da pele? Inês Barahona e Miguel Fragata respondem com um musical vibrante que acompanha, através do discurso diarístico, quatro personagens de gerações diferentes que, embalados pelas canções originais de Hélder Gonçalves, nos levam “a dar uma volta rápida, intensa e transformadora na Montanha-Russa que é a adolescência.”

A raiz do espetáculo nasceu de um open-call para a entrega de diários. “Recolhemos mais de 20, de pessoas de diferentes e de períodos diversos”, explicam. A partir deles, “criámos personagens que retratam a adolescência nos anos de 1970, 1980, 90/2000 e um mais atual que troca a caneta e o papel pelo teclado e o blog”. A interpretá-los estão, respetivamente, Anabela Almeida, Carla Galvão, Miguel Fragata e Bernardo Lobo Faria.

A música é protagonista nesta ‘Montanha-Russa’ que é a adolescência

 

Como “chão comum” para estas personagens – que afinal têm muito mais a uni-las do que a separá-las, apesar das gerações a que pertencem –, em palco há canções originais interpretadas ao vivo por um elenco de músicos de exceção: Hélder Gonçalves, Manuela Azevedo, Miguel Ferreira e Nuno Rafael. Eles dão, contracenando com os atores, um caráter ainda mais vertiginoso e vibrátil a este maravilhoso espetáculo, feito e pensado para adolescentes, mas que promete conquistar públicos de todas as idades.

Em complemento ao espetáculo, Maria Remédio realizou um documentário intitulado Canção a Meio que acompanhou todo o processo de construção do espetáculo, desde o contacto com jovens ao processo de composição da música e construção dramaturgica (a ver a 11 e 25 de março, a seguir ao espetáculo, e a 27 de março, Dia Mundial do Teatro, às 16h30). No dia 23, especialmente para os jovens, o Teatro Nacional D. Maria II patrocina, logo após o espetáculo, uma noite Teen Friendly, com muita música para dançar.

Em 1949, em Savigny-sur-Orge, na região de Essone, a Senhora Rabilloux, mãe de duas raparigas, investiu um martelo contra o crânio do marido enquanto ele lia o jornal. Metodicamente, esquartejou o corpo e, noite após noite, foi-se livrando dos pedaços, lançando-os a partir de um viaduto para os comboios de mercadorias que passavam. O crime acabou por ser rapidamente deslindado, até porque, Amélie Rabillou confessou-o prontamente quando a polícia a procurou.

Chegada às páginas do Le Monde, a notícia fascinou a escritora Marguerite Duras, sobretudo quando percebeu, através das crónicas de Jean-Marc Théolleyre, que a assassina “nunca parou de fazer perguntas para tentar perceber aquele crime” que ela própria cometera.

Isabel Muñoz Cardoso interpreta Claire Lanne

 

A razão do fascínio materializou-se na obra de Duras. Primeiro, através da peça Os Viadutos de Seine-et-Oise, depois no romance A Amante Inglesa; e, depois ainda, numa adaptação ao teatro desse romance, que daria lugar a O Teatro da Amante Inglesa, texto que a autora não abandonou, reescrevendo-o continuamente. Porém, como exemplar ficcionista, a Senhora Rabilloux torna-se Claire Lanne, dona de casa, casada com Pierre, um homem que pouco mais do que a despreza. A vítima do crime também se altera. Não é o marido, como na vida real, mas uma prima deste, que com eles partilha a casa.

Assim, em cena, e em momentos diferentes, encontramos Pierre (João Meireles) e a misteriosa Claire (Isabel Muñoz Cardoso). Ambos são entrevistados por um personagem anónimo (Pedro Carraca) que, vindo da plateia, tenta deslindar o mistério que envolveu Duras e se prepara para enlear o público. Tal como a autora, e como sublinha o encenador Jorge Silva Melo, é “a banalidade do mal que nos vai fascinar, jamais as respostas que nunca teremos.”

Exercício singular sobre o crime e a loucura e sobre as tortuosas e inexplicáveis razões do comportamento humano, O Teatro da Amante Inglesa é, como escreveu um dia Cameron Woodhead, “teatro brilhante, puro e simples.”

Ao abrir as portas do seu apartamento a Alberto (Diogo Infante) e Bernardete (Rita Salema),  o casal Verónica (Patrícia Tavares) e Miguel (Jorge Mourato) está apostado em demonstrar toda a civilidade, depois do filho dos primeiros ter partido dois dentes ao deles numa discussão entre crianças. Na sala, frente a frente, Verónica vai lendo a declaração amigável a ser apresentada ao seguro, porém, as primeiras altercações entre os casais começam quando alguns termos do texto incomodam Bernardete. A partir daí, a situação descontrola-se e, em crescendo, as ofensas extravasam o razoável. A outrora pacata sala de estar transforma-se, assim, numa arena de onde, provavelmente, ninguém sairá vivo.

Nome incontornável do teatro e das letras francesas, Yasmina Reza atingiu a notoriedade nos anos de 1990, sobretudo devido ao estrondoso sucesso mundial da peça Arte (encenada pela primeira vez em Portugal por António Feio, em 1998). Há precisamente uma década, a dramaturga estrearia, em Paris, uma das mais primorosas dissecações dos valores burgueses na comédia negra Le Dieu du Carnage, numa produção que contou com Isabelle Huppert no elenco, e que valeria à autora o seu segundo Tony Award. A aclamação generalizada de público e crítica levaria a peça para o cinema – num filme de Roman Polansky, com Kate Winslet, Jodie Foster, John C. Rilley e Christopher Waltz – e por cá, João Lourenço juntava-se aos muitos encenadores que, da Europa aos Estados Unidos, não conseguiam resistir ao fogo cruzado entre dois casais com vidas aparentemente confortáveis, mas munidos de um rol de intensas frustrações prestes a tornarem-se explosivas.

“Considero-o um texto brilhante que importa dar a descobrir a toda uma geração que não teve hipótese de o ver representado em palco”, aponta o encenador Diogo Infante, sublinhando ainda o orgulho de contar, nesta coprodução entre o Teatro da Trindade/INATEL e a Plano 6, com o elenco certo para o representar. “Esta peça é como um jogo em que nós, enquanto atores, vamos navegando em águas agridoces, oscilando constantemente entre o drama e a comédia, e surpreendendo constantemente o público, até porque tudo decorre com enorme imprevisibilidade.”

Para lá do brilhantismo do texto rápido, cortante e vertiginoso, as pouco simpáticas personagens são facilmente “reconhecíveis na vida real”, o que faz de O Deus da Carnificina “uma peça de grande atualidade”. “O Alberto e a Bernardete são o casal tipicamente burguês que, tendo ou não dinheiro, usam e abusam da aparência”, refere o encenador. Ele é um advogado inescrupuloso, que passa todo o tempo agarrado ao telemóvel; ela é uma mulher carregada de ambição social e com muito pouca tolerância ao álcool. Do outro lado, estão Verónica, estudiosa de arte africana e escritora errante, munida de “muita preocupação social”, e Miguel, dono de uma pequena empresa de venda de ferragens. “Diria que eles são aquilo que apelidamos de ‘esquerda caviar’, sobretudo ela. Até porque, se alguma personagem demonstra alguma normalidade é o Miguel”, acrescenta. Afinal é o único que se considera “um grunho” e desafia todos os outros a deixarem “cair as máscaras”. Como se, aos nossos olhos, elas já não tivessem caído.

Imposto pelas normas sociais com o intuito de transformar as pessoas em homens ou mulheres com consequências reais nas suas vidas, o género não é algo que os indivíduos possuam, mas sim algo que se vai construindo a cada momento do quotidiano, em permanente interação com os outros. A identidade do género, como a heterossexualidade, o lesbianismo, a homossexualidade, a transsexualidade, a intersexualidade, a bissexualidade, o transgenderismo, entre outras, tornam-se, assim, um ato de liberdade, diversidade e expressão individual.

Conduzida pelo corpo, identidade e resistência – as dimensões presentes na construção diária do Género -, esta exposição, com curadoria de Aida Rechena e Teresa Furtado, procura destruir estereótipos relativamente à compreensão do género, levando para o espaço museológico a reflexão e o debate sobre a sua dimensão a partir de um conjunto de obras de artistas portugueses.

E porque os museus não são lugares neutros, mas procuram antes dar respostas a questões fundamentais para a sociedade, nesta mostra a resposta é dada através de trabalhos de Alice Geirinhas, Ana Pérez-Quiroga, Ana Vidigal, Carla Cruz, Cláudia Varejão, Gabriel Abrantes, Horácio Frutuoso, João Gabriel, João Galrão, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, Maria Lusitano, Miguel Bonneville, Thomas Mendonça e Vasco Araújo.

Em 2011, chegaram, viram e venceram, com o primeiro álbum, Cai o Carmo e a Trindade. Estavam à espera de causar tanto furor?

Marisa Liz: Todos nós já tínhamos tido projetos anteriores, já andávamos por cá há algum tempo. Eu, o Ricardo, o Tiago e o Rui vínhamos de uma banda de bares chamada Catwalk. Lançar os Amor Electro, editar o primeiro disco e acontecer tudo isto, sinceramente não estávamos à espera. Claro que há sempre esperança, porque se não não fazemos nada para que as coisas aconteçam. Acreditávamos que era possível, achávamos que tínhamos um som próprio, que juntos éramos mais fortes, mas na realidade recebemos muito mais do que estávamos à espera.

A vossa música junta modernidade e tradição, raízes populares e eletrónica. Mistura-se tudo e temos os Amor Electro. Como chegaram a esta identidade?

Tiago Dias: Somos todos distintos a nível de identidades musicais, apesar de nos entendermos todos e de termos uma química única. Aquilo que temos só resulta com estas cinco pessoas. Cada um tem o seu estilo: a tradicionalidade da banda é dada pela Marisa, o Rex é um eclético, o Ricardo pende mais para o jazz, o Mauro para a música alternativa (é o nosso Thom Yorke) [risos], e eu tenho uma vertente mais anglo-saxónica e pop, diria. A junção destas cinco personalidades, cada uma com as suas influências, acaba por resultar nisto. É algo muito natural e genuíno.

Em pouco tempo afirmaram-se como uma das maiores bandas portuguesas da atualidade, somando nomeações, prémios e esgotando concertos. Num país com um mercado tão pequeno, qual é o segredo do vosso sucesso?

TD: A dificuldade não é atingir o sucesso, é conseguir mantê-lo. Essa é sempre a grande questão. Há bandas que surgem com um single que tem imenso sucesso e passado algum tempo caem no esquecimento. É difícil manter esse interesse, ser consistente e manter as pessoas recetivas ao que fazemos. Esse é o grande desafio.

O lado visual é muito importante para a banda. É uma forma importante de comunicar?

ML: Acima de tudo é uma parte divertida. Costuma-se dizer que a primeira impressão é muito importante. Tentamos que a nossa imagem e a nossa música sejam consistentes e que passem uma mensagem no seu todo. Temos a sorte de poder vestir coisas super doidas sem ninguém nos internar, o que é um dos grandes aspetos positivos desta profissão [risos]. Há roupas específicas que nos dão mais força, mais confiança, que fazem com que sejamos mais aventureiros, é quase como um alter-ego. Todos os super-heróis mudam de roupa para irem combater o mal, tem de haver uma explicação para isso [risos]. Não preciso de me sentir a Super-Mulher todos os dias, mas há concertos para os quais nos vestimos de forma mais extravagante, outros de forma mais discreta. Tudo depende da energia do momento, do tipo de público que vamos ter, e, sobretudo, daquilo que precisamos nesse momento. Às vezes estamos a tocar num sítio onde a nossa roupa até pode ser desadequada, mas naquele momento precisamos daquela roupa para nos dar confiança.

O novo single, Procura por Mim, tem a particularidade de ser cantada pelo Tiago, algo de inédito. Cantar com a Marisa foi um desafio?

TD: Sim, quase tive um AVC antes da gravação [risos]. A história desta canção é muito longa, foi uma sucessão de eventos que nos trouxe até aqui. Quando optámos por ter a minha voz, fui sozinho para estúdio ver como é que a coisa corria, para perceber se me sentia confiante. Entretanto regravei com as diretrizes da Marisa, e para mostrarmos à editora o produto final resolvemos fazer uma pequena partida, uma versão um bocadinho diferente… uma coisa assim tipo Pavarotti em final de carreira só para ver qual era a reação [risos].
ML: Tudo o que isto envolve e que a música acarreta, transformou-se em algo muito maior do que todas as complicações que tivémos para chegar até aqui. Foi um processo cheio de entrega, que quisemos partilhar com as pessoas que gostam de Amor Electro. Aliás, o videoclipe retrata a vida das pessoas, são momentos do dia-a-dia a que não normalmente damos importância… Esta música é uma reunião de sentimentos e este é um disco de intenções emocionais, de estarmos mais perto do que achamos mais importante.

Este ano, voltam a participar na edição do Montepio – Às vezes o Amor. O que pensam do conceito do festival?

ML: Um festival no Dia dos Namorados era algo que nunca tinha acontecido. Um evento que decorre em várias cidades, só com artistas portugueses, sempre em salas emblemáticas e onde se pode viver uma noite que, não sendo só para namorados, é uma noite de amor. Há amigos que vão juntos, há pais que vão com filhos… O ano passado até houve um pedido de casamento no Coliseu do Porto e também houve outra coisa muito gira, a kiss cam, como se faz na NBA. Havia um casal mais velho que estava muito entusiasmado, e houve um momento um bocado desconfortável para toda a gente, mas foi uma experiência gira. Basicamente vai ser uma celebração do nosso percurso com as músicas que toda a gente conhece, e outras do disco que está para sair.

Sei que haverá convidados muito especiais. O que podem adiantar?

ML: Vamos celebrar estes últimos oito anos no Campo Pequeno, e queremos muito partilhar estas canções com pessoas de quem gostamos e que admiramos. Uma das convidadas é a Áurea. Não vou adiantar qual é o tema que vamos partilhar, mas posso dizer que vai ser intenso. Outra das surpresas é o grande e único José Cid, com quem temos uma relação próxima. Vamos também ter connosco em palco a grande Teresa Salgueiro, e ainda outros que não vamos revelar já, mas que são igualmente interessantes e completamente diferentes uns dos outros. Vai dar-nos muito prazer ouvir as nossas músicas interpretadas por estas pessoas, artistas muito respeitados no nosso país e com uma forma de cantar muito própria.

No cartaz deste ano, há algum concerto que não podem mesmo perder?

ML: O cartaz é muito interessante, não é fácil escolher, mas gostava de assistir ao concerto da Sara Tavares, Deixem o Pimba em Paz e Resistência.

O que se faz num karaoke? “Repetem-se as palavras dos outros, e isso não é mais do que aquilo que fazemos a toda a hora, hoje”. Quem o diz é Raimundo Cosme, poucos minutos depois de ter feito mais um ensaio integral de You need heart to play this game, a sétima criação da Plataforma285, coletivo multidisciplinar que dirige com Cecília Henriques e Marta Passadeiras.

“Quisemos fazer um espetáculo assumidamente político, que acentuasse essa tirania da repetição de linguagens, discursos, códigos e símbolos a que vamos sendo impelidos”, sublinha. Para isso, o performer poderia deixar-se ficar em frente de um ecrã de computador a “brincar“ numa qualquer rede social. Mas, a opção para frisar “a desumanização” recaiu no karaoke, essa máquina que projeta imagens normalmente inócuas e nos põe a cantar, ou a soletrar, palavras que outros combinaram.

“A ideia para fazer este projeto surgiu quando vi um documentário sobre os autodenominados herbívoros, japoneses entre os 20 e os 35 anos que abdicaram de sexo e que, têm como ponto alto das suas ‘vidas sociais’ ir a uma cabine de karaoke, privada, onde cantam”, explica Cosme. Agarrando na ideia de isolamento proposta por tão insólita forma de vida, em palco é recriado “um recetáculo fechado prestes a ruir”, onde, quase sempre de costas para o público, o performer interage com “a máquina” que o torna estrela solitária do seu mundo.

De microfone na mão, perante “uma imagem medíocre” onde desfilam palavras ou interjeições, Cosme (e, consequentemente, a plateia) viaja ora pela tragédia dos migrantes, ora pelas vidas fantasiosas nas redes sociais; ora por símbolos pop, ora por modas do momento; ora por guerras declaradas, ora por discursos políticos inflamados. Em suma, um mundo filtrado pela imagem do karaoke, ao som de músicos como Jezek & Kurepa, Filipe Sambado, Vaiapraia e As Rainhas do Baile, Nívea-San, DJ Pastilhado, Tiago Nunes e Van Ayres.

Porque gosta de “começar sem saber como acaba”, Mónica Garnel quis trazer para o palco um policial inspirado em Agatha Christie. Por isso mesmo, anunciou um assassinato, testemunhado ao vivo e em direto pelo público, tal qual como numa das aventuras de Miss Marple. Desafiou então Ricardo Neves-Neves a escrever uma peça onde ecoassem aquelas ambiências tão marcadamente british dos romances da célebre autora inglesa. Mas, o dramaturgo, confessa, não se sentiu suficientemente inspirado pela pena de Christie, até que, através do célebre The Cocktail Party de T.S. Elliot, encontrou a pista que o levou a montar o “crime”.

Para dar vida a oito personagens tão decadentemente festivas que se tornam sombrias, e que Neves-Neves criou como sendo gente de uma “classe elevada, mas insensível e ignorante”, Mónica Garnel fez-se rodear por um elenco rico em afinidades. Da Casa Conveniente/Zona Não Vigiada, trouxe Mónica Calle, Inês Vaz, Rute Cardoso, José Miguel Vitorino e Ana Água, e a estes juntou “amigos que muito admiro como o Álvaro Correia, da Comuna, e o Tiago Vieira, da Latoaria”. Sem esquecer, no desenho de luz, vindo do Teatro Meridional, Miguel Seabra, e, na música ao vivo, a também atriz Sofia Vitória. No fundo, como conclui a encenadora e atriz, “trouxe a minha casa atrás.”

Reunidos tão nobres ingredientes, Garnel empregou ao espetáculo “uma ideia de festa, enérgica e ruidosa, à medida do homicídio que está prestes a acontecer”. Num ambiente de artifício, povoado por figuras “excessivas e grotescas, que me lembram obras do pintor flamengo Jacob Jordaens (1593-1678)”, a encenadora pinta uma tela feérica à volta da piscina que teima em não encher. Até ao momento em que a água transborda e se desvenda o mistério.

A aguçar o apetite para a “festa”, minutos antes do início do espetáculo, é exibido na Sala Bernardo Sassetti (antigo Jardim de Inverno), um trecho de Espelho Quebrado, filme dirigido pelo bondiano Guy Hamilton, com Angela Lansbury a interpretar Miss Marple. Talvez valha a pena levar mais do que à letra a pontualidade britânica e chegar a tempo de dar uma espreitadela… Quem sabe se não lhe irá ser útil para desvendar o crime anunciado.

Arrabalde da cidade até ao século XVI, época em que foi elevada a freguesia pelo Cardeal D. Henrique, a Colina de Santana, era conhecida como Campo do Curral por ser um local onde se abatia gado e se vendia carne fresca. Foi zona de palácios e conventos, alguns dos quais reconvertidos no século XIX, para funções hospitalares. Como nada acontece por acaso, esta vocação alargou-se à investigação e conferiu a esta zona da cidade o epíteto de “colina da Ciência”. Num circuito longo, com vários desvios e muitas histórias, vamos perceber porquê.

Campo Mártires da Pátria – Estátua Dr. Sousa Martins

 

O percurso começa no Campo Mártires da Pátria, junto à estátua do Dr. Sousa Martins, ao som pouco urbano do canto dos galos e do grasnar dos patos que coabitam no jardim Braancamp Freire. Também chamado Campo Santana, por causa da ermida aqui construída dedicada a Santa Ana, este planalto teve diversos usos e ocupações. Foi curral e açougue, teve uma praça de touros (inaugurada em 1831 e demolida em 1889) e recebeu a Feira da Ladra até 1882. O topónimo Campo Mártires da Pátria data de 1880 e pretendeu homenagear o general Gomes Freire de Andrade e os seus companheiros que tentaram derrubar o governo do Marechal Beresford, acabando alguns por ser enforcados no local.

Em 1907 foi aqui colocada a estátua do Dr. Sousa Martins (1843-1897), da autoria de António Augusto da Costa Motta (tio). Situada em frente à Faculdade de Ciências Médicas, antiga Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, onde Sousa Martins foi professor, é objeto de devoção por parte de crentes que aqui deixam oferendas por benesses recebidas. Conhecido como “Pai dos Pobres”, este médico dedicou-se a ajudar os mais carenciados a quem recusava honorários. Trabalhou sobretudo no combate contra a tuberculose, doença que acabou por atingi-lo.

R. do Instituto Bacteriológico – Antigo Instituto Bacteriológico Câmara Pestana 

O passeio prossegue pela Rua do Instituto Bacteriológico, assim chamada devido ao antigo Instituto Bacteriológico Câmara Pestana. O médico que lhe deu o nome e que o fundou (1892) e dirigiu foi o bacteriologista Luís da Câmara Pestana. Sumidade no campo das doenças infecto-contagiosas, implementou a vacina contra a raiva, estudou e combateu as várias pestes que assombravam o país, acabando por sucumbir num surto pestífero em 1899 no Porto. O edifício do instituto, hoje sob alçada da Reitoria da Universidade de Lisboa, aproveitou as ruínas do antigo Convento de Santana, do qual resta apenas uma esquina que alberga atualmente uma creche.

Ao observarmos as instalações, impulsionadas pela Rainha D. Amélia (1865-1911) com o objetivo de evitar a ida de doentes a Paris para receberem tratamento contra a raiva, percebemos que o desenho geral é de influência francesa, com mansardas e grandes janelas. Na fachada, deparamo-nos com uma placa evocativa a Luís de Camões que viveu na zona e morreu em 1580, vítima da peste. Os seus restos mortais encontravam-se no exterior do Convento de Santana e foram transladados, sem segura identificação, para o Mosteiro dos Jerónimos em 1880.

Calçada de Santana – Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Pena

 

   

Descendo a Calçada de Santana chegamos à Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Pena. Em 1689, na qualidade de irmão da Confraria de Nossa Senhora das Virtudes, João Antunes projetou uma capela e respetiva obra de pedraria, tendo a atual igreja sido construída em 1705. Ao entrar pela porta lateral deparamos com o magnífico altar-mor em talha barroca que inclui a figura de dois Atlantes, da autoria de Claude Laprade. A igreja sobreviveu com alguns danos ao sismo de 1755. O piso superior foi o mais afetado, nomeadamente o teto que desabou. O pintor Luís Baptista, ajudado por José Tomás Gomes e Jerónimo de Andrade assumiu o restauro do teto e o templo reabriu em 1763, tendo os trabalhos de reedificação e decoração continuado até 1793.

Rua de Júlio Andrade – Jardim do Torel 

 

Infletimos a marcha e subimos até ao Jardim do Torel, zona apelidada de Riviera de Lisboa, em resultado dos belíssimos palacetes aí construídos. Com origem numa quinta do início do século XVIII, o Jardim do Torel, deve o seu nome ao desembargador Cunha Thorel, o mais rico proprietário da zona. Em 1928 o terreno do palácio foi cedido à Câmara Municipal de Lisboa que aí construiu o jardim e o miradouro que oferece uma vista magnífica da cidade. Da antiga casa mantém-se apenas o lago, hoje uma piscina que, nos dias quentes, se transforma em praia urbana.

 

Saídos do jardim, continuamos o périplo pelas moradias nobres dos séculos XVIII e XIX, entre as quais se destacam aquela que alberga a Xuventude da Galicia, associação cultural dos galegos residentes na cidade; o Palacete Virtvs, um espaço requintado destinado a eventos particulares ou de empresas; e por fim o Palácio Sommer, adquirido recentemente pela Fundação de Macau e que irá acolher a Delegação Económica e Comercial.

Alameda Santo António dos Capuchos – Hospital de Santo António dos Capuchos

A caminho do Hospital dos Capuchos, regressamos ao Campo dos Mártires da Pátria, e aí a atenção desvia-se para o antigo Palácio do Patriarcado, datado de 1730, da autoria do arquiteto João Frederico Ludovice, mais conhecido pelo projeto do Convento Nacional de Mafra em parceria com o arquiteto Mateus Vicente de Oliveira. Contornando este edifício, entra-se na Alameda Santo António dos Capuchos, onde se localiza o Palácio Centeno mandado construir para as damas de companhia de D. Catarina de Bragança, Rainha de Inglaterra e mulher de Carlos II. Do lado oposto da alameda ergue-se o Palácio da Bemposta, antiga residência real que é hoje a Academia Militar. Reza a tradição que existia um túnel a ligar os dois palácios, acreditando-se que mais do que uma lenda romântica, é uma realidade muito provável.

Chegados ao Hospital de Santo António dos Capuchos, ficamos a saber que se tratava de um antigo Convento inaugurado em 1579 e entregue aos Padres Recoletos da Custódia de Santo António. O edifício principal do hospital resulta de várias transformações que o convento sofreu. Em 1836, na sequência da expulsão das ordens religiosas, a rainha D. Maria II fundou nas suas instalações o Asilo de Mendicidade de Lisboa. O hospital foi oficialmente criado em 1928 e, no seu interior, encontra-se um riquíssimo património azulejar e um dos mais antigos relógios de sol existentes em Portugal. Nos dias que correm detém valências únicas em áreas como a dermatologia, gastrenterologia, hematologia, neurologia e oncologia.

Rua do Passadiço – Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto

Da Rua Santo António dos Capuchos entramos na Rua do Passadiço. É uma zona antiga, conforme atestam os vestígios arqueológicos da época romana descobertos no nº 26 no decurso de obra. O ponto de paragem é, aqui, o Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto, único instituto oftalmológico público do país. O médico que lhe dá o nome e que foi também o seu fundador em 1889, Caetano António da Gama Pinto, nasceu em Goa. Formou-se na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1878, e estagiou em Paris, Alemanha e Viena de Áustria. O Instituto é ainda hoje um símbolo de serviço público exemplar, destacando-se pela investigação científica e inovação.

Rua de Santa Marta – Hospital de Santa Marta

Descendo pela Travessa de Santa Marta deparamos com um muro alto que pertencia ao Convento de Santa Marta. O asilo de Santa Marta foi criado em 1569, no reinado de D. Sebastião, para acolher e tratar as órfãs dos serviçais reais vitimados pela peste, a mesma que matou Luís de Camões. Em 1583, o arcebispo de Lisboa autorizou a instituição de um convento de religiosas clarissas de 2ª regra (urbanistas), sob a invocação de Santa Marta. Em 1890, foi destinado ao serviço da saúde, sob o nome de Hospício dos Clérigos, especializando-se mais tarde em doenças venéreas. Na primeira década do século XX, foi-lhe atribuída a função de Escola Médico Cirúrgica de Lisboa, assumindo um importante papel no ensino da Medicina. Manteve esta função até 1953, data em que a clínica universitária foi transferida para o recém-criado Hospital de Santa Maria. O médico Machado Macedo deu ao hospital a inovação que o diferenciou na área cardiovascular, sendo atualmente um dos principais centros de diagnóstico e tratamento das doenças cardiovasculares a nível nacional.

Rua de Santa Marta – Universidade Autónoma de Lisboa

 

Na Rua de Santa Marta, passamos pelo Instituto Cervantes, local onde em tempos esteve a Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Descobrimos também que a Igreja pertencente ao Hospital de Santa Marta esteve ligada ao antigo Palácio dos Condes de Redondo (século XVII), atualmente a Universidade Autónoma de Lisboa. Este pormenor foi do agrado da Rainha D. Catarina de Inglaterra – a que introduziu o chá das cinco naquele país – que no seu regresso a Portugal depois de enviuvar, aqui se instalou antes de se mudar para o Paço da Rainha (Palácio da Bemposta). A ligação entre os edifícios permitia à Rainha uma entrada para a tribuna de onde podia assistir à missa. Em meados do século XX o palácio pertencia à condessa de Arnoso, e chegou a albergar instituições de assistência social, duas escolas primárias e vários estabelecimentos comerciais. Nos anos de 1980, instala-se no local a Universidade Autónoma de Lisboa.

Mudou-se para uma cidade estranha (fria e “tão ao norte do mundo”) por amor a uma mulher. Deixou-se ficar porque chegou um filho, e “um medo” que não consegue explicar. Agora, na meia-idade, canta e toca na rua e em subterrâneos “para ganhar umas coroas”. Em traços largos, está feita a apresentação do personagem que devolveu Manuel Wiborg ao teatro do norueguês Jon Fosse, de quem encenou, com Diogo Dória, o magnifico Sou o Vento, já lá vão quase cinco anos.

“O que mais gosto no Jon Fosse é uma escrita muito musical e minimal, como se os textos fossem canções. Isso dá-me uma imensa liberdade enquanto encenador e, ao mesmo tempo, concilia-me com a minha distante vontade de um dia ter sido músico”, confessa-nos Wiborg. Neste caso preciso, O Homem da Guitarra é “um monólogo de grande atualidade porque aborda o drama das pessoas com 40 e muitos, 50 anos, que, se confrontadas com o desemprego, por exemplo, sentem deixar de ter lugar neste mundo. É um belo texto sobre alguém para quem os sonhos ruíram, para quem julga que toda a vida falhou…”

Acompanhado de uma guitarra, que pontualmente o ator toca para interpretar os lamentos do personagem, Wiborg usufruiu da liberdade do texto para convidar um velho amigo, o músico e artesão Adriano Sérgio, a acompanhá-lo em cena. Replicando no palco a sua oficina de construção de guitarras, este músico, que é, atualmente, um dos mais requisitados construtores de guitarras do mundo, reproduz o seu ofício em contracena. “Porque o som que se produz a fazer guitarras é também música”, sublinha.

Como curiosidade, questionámos Adriano Sérgio sobre o que o levou a aceitar o convite de Wiborg para este O Homem da Guitarra: “identifico-me muito com o texto. Eu que deixei de ser músico de palco porque não podia fazer a música de que realmente gostava; eu que me tornei técnico de guitarras de alguns nomes sonantes do heavy metal, como o Ozzy Osbourne ou os Anthrax, e me cansei… A diferença que assumo perante o personagem do Manuel é nunca ter desistido”. Por isso mesmo, Adriano e a marca que criou, a Ergon, são hoje referências no meio musical.

O espetáculo está em cena na Sala Mário Viegas do Teatro São Luiz até 4 de fevereiro.

Remonta aos tempos da estada dos Artistas Unidos n’ A Capital a vontade de Jorge Silva Melo de encenar o influente clássico Albergue Noturno de Maximo Gorki (1868-1936). Nesse já longínquo ano de 2001, o encenador trabalhava a montagem da peça, interrompida devido ao trágico desaparecimento do ator Paulo Claro. “Nesse ano preparávamos um ciclo russo que levaria à cena o Na Estrada de Tchekhov e o Albergue Noturno, do Gorki”, recorda. “Eram peças que pensávamos adaptarem-se muito bem às características do edifício d’ A Capital, sobretudo este último, que me recordo de ter visto encenado por Monteiro Meireles, em 1970, no Trindade, com uma companhia amadora, o Grupo Mérito Dramático Avintense”.

Durante um seminário que conduziu no D. Maria II, e que haveria de resultar no espetáculo Na margem de lá: um lamento, Silva Melo confessa ter recorrido à companhia desse “texto maior” de Gorki sempre que voltava a casa. Entretanto, a convite de Tiago Rodrigues [diretor do TNDM II], o encenador é desafiado “para trabalhar clássicos e mitos”. Nem a propósito, Silva Melo pensa em Dido e Eneias, “coisa que se presta mais à música e ao lamento que ao teatro”, e consequentemente “na tragédia dos que morrem no Mediterrânio em busca de refúgio, nos desempregados, nos desgraçados atirado para o lixo de Schengen e de todas as outras globalizações”. E que outro senão Gorki, com “a canalha” do seu Albergue Noturno, se poderia tão bem prestar a dar “voz aos pobres, vis e oprimidos que ninguém quer.”

Embalado pela “peça que abriu a hipótese de um realismo coral”, Silva Melo foi revendo “os filmes de Jean Renoir e de Kurosawa” que magistralmente transportaram o texto de Gorki para os seus tempos – o de Renoir, imbuído da vitória eleitoral em França da Frente Popular, que se quis crer poder travar fascismos e nazismo; o de Kurosawa, procurando vias para a esperança no arrasado Japão do pós-guerra. Simultaneamente, “e não porque o de Gorki fosse insuficiente, apercebi-me como este texto foi dos que mais textos gerou a outros, de Eugene O’Neill a Lars Noren, passando por Tennessee Williams e William Saroyan”, sem esquecer a intriga amorosa entre o ladrão honesto e a mulher mal casada “que terá inspirado O Carteiro Toca sempre Duas Vezes”. Aliás, sublinha, “a peça é dupla porque, num plano, contém essa narrativa de amantes, e noutro, “concentricamente”, estão esses personagens “sem história, sem drama e sem destino que por ali pairam.”

Acreditando que “todos somos necessários para fazer o mundo”, como se diz a dada altura na peça, o novo espetáculo de Jorge Silva Melo junta a Gorki múltiplas referências, desde a poesia de Gomes Leal – de onde provém o título – a canções e panfletos revolucionários, plasmados, sobretudo, na presença de “uma espécie de coro” que, à boca de cena, confronta diretamente o público. Estes homens que saem da turba surgem como o coletivo que amplifica o sentido trágico do mundo que os rejeita. Até porque, em O Grande Dia da Batalha de Gorki e Silva Melo, o palco a estes párias pertence.

paginations here