Em princípios dos anos de 1970, o escritor e ensaísta britânico John Berger (recentemente falecido) assinou, para a BBC, uma minissérie sobre arte que viria a produzir um obra de referência para inúmeros críticos e historiadores de arte. Foi precisamente na “dissecação da obra de arte proposta por Berger” em Ways of seeing (Modos de Ver, na edição portuguesa), que a atriz Teresa Coutinho se inspirou para, com Guilherme Gomes, criar Ways of Looking, espetáculo que pode ser visto, de 29 de setembro a 1 de outubro, no Teatro Nacional D. Maria II.

“Quando comecei a ler o livro não tive, no imediato, a sensação de encontrar ali algo suscetível de reflexão teatral”, explica a atriz. Porém, “aquela ideia veiculada por Berger de que a câmara tinha vindo a desvirtuar o contexto da obra de arte ao selecionar partes, ao ampliar pormenores, etc., despertou algumas premissas que pudessem conduzir ao teatro”. Ou seja, “através da luz, sobretudo, nós conseguimos, num palco, manipular, controlar, ampliar e até desvirtuar o olhar do espetador.”

É esse jogo que Teresa Coutinho e Guilherme Gomes propõem a partir de uma espécie de coreografia descortinada, quase inteiramente, e só, por um foco de luz. É essa luz que guia o olhar do espetador até o encontrar e, de certo modo, fazer dele, espetador, parte do objeto artístico. Mas, não é só: àquela coreografia vão sendo acrescentadas camadas (música, depois texto) e a leitura que fazemos do que vimos até ao momento vai sendo constantemente alterada.

Para o final, os artistas guardam uma última surpresa, recorrendo, como sublinha Guilherme Gomes, a um trecho de “uma peça icónica e reconhecível” que, sendo uma cena de intimidade, convoca uma vez mais o olhar do espetador a fazer parte dela.

Quando saiu a notícia de extinção do Ministério da Cultura, por decisão do governo de Passos Coelho, a Carla Bolito acorreu de imediato um breve conto de Kafka, Um Artista da Fome, e a premência de colocá-lo em palco como “um statment perante a desconsideração que os governantes estavam a ter para com a cultura e os artistas”. O tempo passou e, como se sabe, a vida de artista no teatro nem sempre se coaduna com as emergências da criação, pelo que este A Arte da Fome foi amadurecendo e, àquele conto, se haveriam de acrescentar mais dois: Primeiro Sofrimento e Josefine, a Cantora ou o Povo dos Ratos.

Para os mais desatentos, poderia pensar-se que as intenções da encenadora lograriam esfumar-se no otimismo reinante pós-troika. Mas, e infelizmente para a Cultura e para os artistas, tal não aconteceu, apesar de ter voltado a haver um Ministério da Cultura. Para desgosto de Bolito e seus pares, “o teatro continua a ser A Arte da Fome”. Por isso, um espetáculo sobre o artista na sociedade, sobre a sua relação com o público, entre a idolatria, a incompreensão e o esquecimento, é sempre “uma urgência”.

Num “ambiente bas-fond de cabaret de província”, a encenadora coloca Cláudio da Silva e Ivo Alexandre como narradores dos contos, numa espécie de “stand up literário”, onde estas bizarras histórias se estabelecem num diálogo amargo, embora pontuado pelo “grande sentido de humor” que carateriza parte das narrativas kafkianas. Perante a excitação do aplauso e a amargura do esquecimento, ao som de um órgão barato que debita música mexicana, também eles são, naquele lugar, dois artistas em fuga ao destino anunciado dos esquecidos de Kafka.

Quando Carlos Drummond de Andrade fez publicar, na Revista de Antropofagia, o poema No meio do caminho, estaria longe de imaginar que, décadas depois, haveria de sentir a necessidade de fazer a Biografia desse mesmo poema. Em causa, estavam dez versos, contendo 61 palavras, nas quais apenas dez não se repetem, e uma polémica sem paralelo.

Se houve quem enalteceu – como o escritor português Arnaldo Saraiva, que viu no poema um instrumento para “travar o conservadorismo ignorante, contra a inércia burguesa, contra a estupidez instituída” -, muitos atacaram com desdém (os que apelidavam de “poema da pedrinha”), ou em modo anedótico (como aquele que sugeria a Drummond que fosse até à sua cidade visitar as muitas obras públicas em curso e encontrar um sem-número de pedras no caminho). Certo é que, No meio do caminho é o mais simbólico poema do modernismo brasileiro, e eternizou Carlos Drummond de Andrade.

É todo um manancial de histórias, pareceres, comentários e variações do próprio poema que António Pires transporta para este novo espetáculo. Em palco, o encenador reúne à atriz Rita Loureiro, os atores brasileiros Cassiano Carneiro e Chico Diaz, e constrói uma irresistível comédia, repleta de ironia e provocação que faz pensar “como a arte pode mexer com a vida das pessoas.”

Quando os modernistas brasileiros subscreveram, em 1928, o Manifesto Antropofágico proposto por Oswald de Andrade, aspiravam “deglutir” o legado cultural europeu e “digeri-lo” em nome da criação de uma arte efetivamente brasileira. No fundo, reclamavam uma identidade nacional que suscitasse uma rutura efetiva com a ideologia colonial (“contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra”), apropriando-se de uma forma quase rudimentar do mito de que os indígenas Tupi praticavam um ritual de canibalização do inimigo, para desse modo se unirem ao outro, absorvendo-lhe as qualidade e as virtudes. A antropofagia não só marcou os autores do modernismo brasileiro como encontrou ecos noutros pontos da América do Sul.

Ao longo do século XX, e pontualmente, o conceito de “antropofagia” foi sendo recuperado – há inúmeras presenças nas artes plásticas, na literatura, no teatro, no Cinema Novo brasileiro e foi mesmo o tema da Bienal de São Paulo de 1998. O conceito não morreu neste século, e três das mais aclamadas e internacionalizadas peças da dança contemporânea brasileira evocam-no. São elas Pororoca (2009), de Lia Rodrigues; Vestígios (2010), de Marta Soares; e, sobretudo, Matadouro (2010), de Marcelo Evelin.

À luz do conceito, e partindo de cada uma das peças para também as “canibalizar”, a uruguaia Tamara Cubas e o coletivo Perro Rabioso criaram uma trilogia que recorre ao dispositivo de um ritual antropofágico. Como sublinha Lucia Nasser, não estará aqui em causa “devorar o inimigo” como pensavam os Tupi ou o “colonizador” (cultural) europeu como pretendiam os modernistas brasileiros. Cubas procura, isso sim, “descolonizar as relações de poder que estabelecemos com o outro”. Para tal, as peças compõem uma procura de “transformação orgânica” que se socorre da antropofagia para sublinhar a necessidade de uma cultura centrada na “assimilação e na comunicação presencial, corpórea, erótica.”

De certo modo, através de Permanecer (inspirada em Vestígios, de Marta Soares), Resistir (inspirada em Matadouro, de Marcelo Evelin) e na ainda inédita Ocupar (inspirada em Pororoca, de Lia Rodrigues), a sempre surpreendente Tamara Cubas desenvolve “um ato político sobre a nossa relação com o outro.”

‘Resistir’

 

Sobre Tamara Cubas

Uruguaia, nascida em 1972, iniciou a sua carreira artística nas artes plásticas, tendo posteriormente desenvolvido um consistente trabalho na dança, primeiro como bailarina, tendo sido dirigida por Marcelo Evelin ou Luciana Achugar, depois como coreógrafa.

Arrojada e radical, nas suas criações ecoam memórias, muitas vezes traumáticas, a que não é estranha a experiência de prisão, desaparecimento e exílio de alguns membros da sua família paterna durante a ditadura militar uruguaia. O seu trabalho é marcado por uma continuidade em que são, não raras vezes, reunidos pedaços de outras criações, num processo que a própria denomina de metonimização.

Em Portugal, Tamara Cubas apresentou Atos de Amor Perdidos (em 2013, no Negócio ZDB) e Putto Gallo Conquistador (em 2014, no âmbito do programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian).

Depois de uma surpreendente incursão no texto de Edward Albee Encontrar o Sol, Ricardo Neves-Neves regressa a um território aparentemente mais familiar, com uma celebração do teatro de Karl Valentin (1882-1948), o comediante e dramaturgo bávaro que é reconhecido, hoje, como um dos mais influentes do século XX. Às peças curtas, pejadas de humor e de absurdo, o encenador junta um conjunto de temas do repertório tradicional alemão do final do século XIX e princípio do século XX, proporcionando um entusiasmante espetáculo de cabaret, a lembrar o imaginário fervilhante da Alemanha de Weimar.

“Selecionei um conjunto de peças pelas quais senti uma especial afinidade, e juntei outras do agrado dos atores”, refere o encenador. Apesar do olhar particular sobre a obra de Valentin, o espetáculo proporciona uma visão ampla sobre um teatro que aplica com mestria “um estado de graça a coisas que parecem não ter qualquer importância”. Depois, há o fascínio pelo absurdo, tão caro a Neves-Neves (como a tantos grandes autores que idolatraram Valentin), e presente em textos como o de um pai que apresenta a lista de encargos que teve com a filha quando ela cumpre a maioridade ou essa ‘pérola’ chamada Um Fogo e Peras, cujo título dispensa pormenores.

Em ‘Karl Valentin Kabarett’ acontece um curioso diálogo entre as peças do “Chaplin de Munique” e alguns temas musicais alemães

 

Mas se neste espetáculo o ambiente é de festa, o encenador não esquece o tom que Valentin reserva para os seus personagens: “eles vivem um sentimento de inferioridade perante o mundo”. Ou seja, “as situações são cómicas, mas os personagens são, de facto, infelizes”. Por isso, a alegria no teatro de Valentin está impregnada de melancolia que, segundo Neves-Neves, citando a sua professora de lingua alemã, “revelam um complexo de inferioridade que, à semelhança dos portugueses, e embora com efeitos históricos muito diferentes, os alemães também sentem.”

Depois, há a música interpretada ao vivo pelos atores, por um cantor lírico e por uma orquestra de dez músicos oriundos do jazz, dirigidos pela maestrina Rita Nunes. Neste Karl Valentin Kabarett acontece um curioso diálogo entre as peças do “Chaplin de Munique” e alguns temas musicais alemães, por sinal não contemporâneos do período áureo de Valentin (os anos 20), mas oriundos de décadas anteriores. Para isso, ao elenco foi pedido que os cantassem na língua original, “um enorme desafio, já que poucos dominavam o alemão”. As canções, “muito alegres mas, por vezes, carregadas de pré-conceitos vincadamente eurocêntricos”, são, por opção, legendadas em português para que o público as entenda.

Depois da aplaudida estreia no Festival de Almada, este novo espetáculo do Teatro do Eléctrico faz oito representações em Lisboa, e apresenta-se a 29 de julho, em Quarteira, no Algarve.

Mais do que expor o tema da tortura, Marta Carreiras e Romeu Costa quiseram, através de um trabalho aturado que envolveu uma série de iniciativas preparatórias (como um ciclo de conferências no Museu do Aljube) e muita investigação e consulta a especialistas, produzir uma reflexão tenebrosa sobre os efeitos da violência. Se por um lado, Pedro e o Capitão é, como diz Romeu Costa, “uma história uruguaia que, também poderia ser portuguesa (afinal, o 25 de Abril só aconteceu há 44 anos)”, por outro, e perante aquilo que se vai descortinando sobre as práticas do poder um pouco por todo o mundo, “esta é uma história universal”. E, tragicamente, atual, ou não houvessem por ai estados de exceção à mercê dos mais democráticos governos, proto-ditaduras e outras de facto, ou seres humanos morrendo diariamente nas águas do Mediterrâneo.

A plateia é colocada em três frentes, uma central e duas laterais, em ferradura, perante uma passadeira que representa o espaço de clausura e isolamento que é a sala de interrogatório. Ao longo de quatro momentos, Pedro, (ou Rómulo?), um suposto militante comunista é interrogado por um oficial da polícia política conhecido pela patente de Capitão. Sabe-se que, entre as sessões em que se dá o recontro entre os dois homens, Pedro é barbaramente torturado. Ao Capitão, que se define como “o intervalo em que respiras”, cabe manipular o preso para que fale, para que denuncie os seus camaradas, sem que o uso físico da violência seja a regra.

Perante a resistência de Pedro e uma estratégia desesperada de superação da dor e do terror, acaba por acontecer um extraordinário equilíbrio de forças, revelador também das vulnerabilidades do opressor. Afinal, como sublinha Marta Carreiras, “o que é fascinante neste texto é, precisamente, colocar frente-a-frente dois homens que não têm de ser necessariamente bons ou maus, e até fazer-nos pensar como as circunstâncias da vida podem definir as escolhas que fazemos.”

Pedro e o Capitão é interpretado por Ivo Canelas e Pedro Gil, e estará em cena na Sala Mário Viegas, até 2 de julho, inserido na programação de Lisboa 2017 – Capital ibero-americana de Cultura.

Promete ser um dia em cheio, aquele que o Teatro São Luiz e o coletivo de teatro meia volta e depois à esquerda quando eu disser preparam com os três grupos do projeto O Público vai ao Teatro. Foram meses de trabalho árduo em que cerca de sete dezenas de pessoas se dedicaram a descobrir, a ver e sentir e a explorar as entranhas de uma instituição cultural tão emblemática da cidade de Lisboa.

“Este projeto não pretende formar públicos. Quer, isso sim, potenciar o interesse e facilitar a aproximação das pessoas ao objeto artístico”, esclarece Alfredo Martins que, conjuntamente com Sara Duarte e Anabela Almeida coordenaram os trabalhos dos grupos tão heterogéneos que participaram, desde outubro, nesta edição de O Público vai ao Teatro. Explica Sara Duarte que o primeiro foi constituído por alunos do 5.º ano da Escola Básica Passos Manuel, “a quem propusemos o acompanhamento de vários espetáculos para os Mais Novos [programação infantojuvenil do São Luiz, dirigido por Susana Duarte], desafiando depois os miúdos a refletir sobre o que viram”. Com o objetivo claro de “facilitar um discurso crítico” a estas crianças, no evento de dia 4, caber-lhes-á organizar a Gala do Clube dos Críticos, onde, a partir de uma aturada reflexão, os melhores dos melhores serão distinguidos.

Um segundo grupo, intergeracional e “muito distinto quanto a percursos de vida”, formado, sobretudo, por moradores da Freguesia de Arroios, experimentou o Teatro em toda a sua amplitude. Isso permitiu “a estas pessoas pensar a relação entre o público e as instituições e a criação artística e, para alguns, derrubar o medo de entrar num local, este Teatro, a que pensavam, por insegurança ou por desconhecimento, não pertencer.”

Ao terceiro grupo de O Público vai ao Teatro, formado por professores e alunos finalistas da Escola Superior de Educação de Lisboa, “quisemos proporcionar um espaço de reflexão sobre a relação entre a escola, o teatro e a criação e o objeto artístico”. À semelhança do segundo grupo, os participantes acompanharam ensaios, assistiram a espetáculos e refletiram sobre o seu papel de professores e pedagogos enquanto mediadores e intermediários nessa relação.

No dia em que O Público Recebe, vamos encontrar participantes dos dois grupos, instalados em Namoradeiras dispostas pelo espaço do Teatro, a descrever os espetáculos que viram ao longo da temporada do São Luiz. Para concluir o programa, será apresentado o Manifesto do Público, ou seja, um conjunto de pensamentos e reflexões sobre a experiência obtida durante a temporada no âmbito desta edição do projeto, com os olhos postos naquilo que se pode denominar como “os direitos do público”.

“Acima de tudo, achamos que O Público vai ao Teatro deu um sentimento de pertença destas pessoas à instituição que é o São Luiz”, conclui Alfredo Martins. E é o testemunho dessa pertença que, no próximo domingo, se estenderá a todos aqueles que entrarem num Teatro que se quer cada vez mais da cidade, e de todos.

“É como estar fechado dentro de um sepulcro a assistir a um conto infantil”, diz Ricardo Aibéo, o ator, agora encenador, que reuniu quatro colegas, “e companheiros ao longo de 20 anos na Cornucópia” – Duarte Guimarães, Rita Durão, Sofia Marques e Dinis Gomes –, sobre o espetáculo que dirige a partir de uma das três peças para marionetas de Maurice Maeterlinck.

Carregado de simbolismo, o texto do nobelizado autor belga, que atingiu a fama com Pelléas et Melisande (peça da qual Debussy fez uma das suas óperas mais famosas), conta a história de Tintagiles (Dinis Gomes), uma criança que regressa à sua ilha natal, ensombrada pelo poder oculto de uma Rainha. Recebido pela irmã mais velha, Ygraine (Duarte Guimarães), depressa o jovem experiencia o negrume que se abateu sobre aquele pequeno mundo e o destino fatídico que o espera, mesmo que Bellangère (Rita Durão) e o velho mestre Anglovale (Sofia Marques) tudo façam para o contrariar.

Como sublinha Aibéo, “a história é apenas um alibi para Maeterlinck promover um exercício teatral”, em que importa mais o que “a imaginação alcança do que aquilo que se vê”. E os atores assumem-se como marionetas, sem género, nem condicionalismos, peças dispostas a serem “movidas” por uma personagem não corpórea, mas omnipresente, que é a Rainha, manipuladora de todas as existências, e até do silêncio, “a música de fundo deste espetáculo”.

Em que momento da tua vida percebeste que irias ser atriz?

Foi uma descoberta que surgiu com o tempo. Em criança nunca me passou pela cabeça que queria ser atriz. Sem que consiga entender muito bem porquê, andava eu na escola secundária, e vejo numa revista o anúncio de abertura de audições para a Escola Profissional de Teatro de Cascais. Decidi experimentar e acabei por ficar. A partir dai, as coisas foram surgindo e, depois da minha formação, acabei por ficar cerca de um ano e meio no Teatro Experimental de Cascais (TEC), com o Carlos Avillez. Posteriormente, decidi-me pela licenciatura e ingressei na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC).

Portanto, não foi a consumação de um sonho de criança…

[risos] Nada mesmo. É verdade que me divertia imenso a fazer teatro na escola, mas nunca pensei que fosse esse o meu futuro.

Em 2010 estreias-te numa produção do TEC…

É verdade, mas, apesar de circular por todo o lado que foi em As Bruxas de Salém [de Arthur Miller], a minha estreia fez-se com A Nossa Cidade, de Thornton Wilder, um espetáculo dirigido pelo Carlos, e que serviu como exercício de conclusão do curso, culminando três anos muito importantes na minha vida, tanto a nível profissional como pessoal.

Seguindo-se esse período no TEC, a tua carreira foi absolutamente vertiginosa, multiplicando-se a presença em produções de algumas das mais conceituadas companhias de teatro independente do país. Foi uma ascensão medida, controlada?

Há dias falava nisso a um amigo e confessava que a maior virtude foi não pensar, foi não tomar consciência de que tudo estava a acontecer ao mesmo tempo. Foram, de facto, muitos projetos em simultâneo, num curto espaço de tempo, e com maior ou menor dificuldade fui dando conta deles. Considero que, acima de tudo, tive sorte: as pessoas conheceram-me e quiseram trabalhar comigo…

Uma atriz afortunada.

Sem dúvida. [risos]

Referente a um trabalho de 2016, foste este ano distinguida com o Prémio da Crítica. O que é que mudou em ti?

Acima de tudo, fico profundamente grata pela Associação Portuguesa de Críticos de Teatro achar-me merecedora do prémio, ainda mais porque sucedo à Cristina Reis, uma pessoa que muito admiro e tenho como amiga. Comoveu-me, emocionou-me, mas não mudou nada na minha vida… A profissão continua a ser instável e não me garante, certamente, que daqui a uns seis meses tenha trabalho. Portanto, o que mexeu comigo foi a felicidade de saber que as pessoas viram ao espetáculo, gostaram e, de certa forma, estive à altura dele.

O espetáculo pelo qual foste distinguida acaba por ficar marcado por ter sido a última produção de palco da Cornucópia, uma casa que, aliás, conheceste muito bem…

Também por isso reconheço que este é um prémio que sabe muito bem. Música foi um espetáculo muito duro, muito difícil, que me marcou e desafiou como nenhum outro. Independentemente da distinção, é um espetáculo que guardarei para sempre na memória.

Também foi na Cornucópia que nasceu o “teu” Teatro da Cidade, uma companhia que fundaste com o Bernardo Souto, o Guilherme Gomes, a Nídia Roque e o João Reixa. Conte-nos um pouco da história desse projeto.

Para mim, continua a fazer sentido estar com essas pessoas: com o Bernardo e a Nídia estou desde Cascais e, depois na ESTC, onde conhecemos o Guilherme e o João. A seguir, na Cornucópia, voltámos a encontrarmo-nos, e nasce a vontade de criar qualquer coisa nossa. Acaba por ser lá que apresentámos a nossa primeira criação, Os Justos, de Albert Camus, um texto sugerido pelo Luís Lima Barreto. Agora, estivemos na Ribeira com Topografia, espetáculo que pretendemos levar pelo país, estando já confirmada a ida ao Festival de Almada, em julho.

“Considero que tive sorte: as pessoas conheceram-me e quiseram trabalhar comigo.”

 

Em maio, sobes ao palco com O Cinema, de Annie Baker. Que olhar tens sobre a peça?

É uma peça sobre três trabalhadores num velho cinema e o modo como eles vivem o dia-a-dia. Acima de tudo, o texto fala de como a necessidade de subsistência interfere no relacionamento entre as pessoas. Durante algum tempo reconhecemos a cumplicidade, e até a amizade entre aqueles personagens. Isso é muito bonito! Até que tudo é posto em causa, porque o que realmente importa é pagar a renda e ter algum dinheiro para comer. Afinal, é por isso mesmo que suportam aquele emprego.

Estas personagens parecem ter uma autenticidade que nos faz mesmo duvidar da ficção.

Acho que é precisamente isso que o Pedro [Carraca] queria ao colocar, literalmente, a plateia do cinema no palco. O texto salta do quotidiano para ali: eles falam da sua realidade e dos seus problemas, com a sua linguagem. E isso é muito, muito autêntico.

Depois de Punk Rock, de Simon Stephens, voltas a ser dirigida pelo Pedro Carraca.

É verdade. São peças muito diferentes, mas é sempre bom trabalhar com alguém com quem temos uma relação muito honesta e de mútua confiança. Sente-se isso no trabalho…

E, por falar em cinema, dentro em breve poderemos ver-te no grande ecrã…

Será no novo filme do Sérgio Tréfaut, baseado no romance Seara de Vento, de Manuel da Fonseca. Foi a minha primeira experiência a sério no cinema e, para mim, foi reveladora – adorei mesmo! E, é engraçado, o Sérgio convidou-me para o papel depois de me ter visto no Punk Rock.

Se recuarmos pouco mais de um ano, a Dessa Carne Lassa do Mundo, peça inspirada em Romeu e Julieta de Shakespeare, os amores trágicos continuam a inspirar o teatro coreográfico e imagético de Daniel Gorjão. Agora, o cofundador do Teatro do Vão parte para outro clássico,  Menina Júlia de Strindberg, fazendo de Jean, o criado, e de Júlia, a jovem aristocrata, instrumentos que permitam “olhar para o fundo de nós.”

Ao colocar no epicentro do espetáculo as variantes do desejo que alimentam a relação entre os protagonistas, Gorjão optou por suprimir a terceira personagem do texto original (a criada). “Interessava-me que o enfoque estivesse apenas sobre Júlia e Jean, sublinhando o que os aproxima e os afasta, o que os faz amar e odiar, quase em simultâneo. Interessa-me mostrar o poder do desejo e o desejo de poder que existe em cada um deles, tal como em cada um de nós numa relação amorosa.”

Mas a obra-prima de Strindberg é rica em abordar outros contextos e conduzir a leituras sobre a ordem social e política da época, afinal, tão marcada pela luta de classes. Gorjão contorna-as, atenua-as através de uma dramaturgia apurada que, “sem mexer no texto, prefere sublinhar as perspetivas que o próprio Strindberg tinha do desejo amoroso.”

Cada espetador torna-se assim um voyeur que, por entre os arbustos do jardim, encontra os amantes num recanto. Eles dançam (é noite de São João!), eles amam-se, eles partilham confidências; mas também discutem, agridem-se, odeiam-se. Afinal, é de tudo isso que é feita a linguagem dos amantes.

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