A exposição Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades, concebida e coordenada pela historiadora Isabel Castro Henriques, parte do fundamento de que na “sociedade portuguesa, caracterizada pela existência de um racismo sistémico, verifica-se a existência de correntes de negação do racismo resultantes de mitos associados ao colonialismo português como o lusotropicalismo e a ideia de um ‘bom’ colonialismo português”.

A mostra, que visa apresentar as linhas de força do colonialismo português em África nos séculos XIX e XX, tem, consequentemente, para além dos propósitos de descolonizar os imaginários portugueses e contribuir para uma renovação do conhecimento sobre a questão colonial portuguesa, o objetivo de desconstruir os mitos criados pela ideologia colonial, destruindo a sua natureza falsificadora.

Uma organização expositiva semicircular apresenta esses mitos e ideias fundamentais em sete núcleos:

I – Estamos em África há 500 anos

A ideia de que Portugal possuía direitos históricos em África pois tinha descoberto o Continente negro e mantido relações com os povos africanos desde o século XV.

II – Missão colonizadora e Progresso

O mito da “missão civilizadora” baseado na ideia de superioridade biológica e civilizacional do homem branco, associada ao progresso das ações europeias que permitiam iluminar e transformar a África “selvagem”.

III – Vocação colonial e Missão histórica

Recurso à ciência para construir os mitos da “vocação colonial”, característica da “raça” portuguesa” e da “missão histórica”, para justificar a ocupação dos territórios africanos e consagrar a singularidade do colonialismo português.

IV – Os outros (Selvagens) e Nós (Civilizados)

A ideia construída sobre a oposição “primitivo ou selvagem”/ “civilizado ou evoluído” que legitimava as relações luso-africanas de superioridade branca e inferioridade negra, bem como a dureza das práticas destinadas a assegurar a dominação portuguesa sobre os povos colonizados.

V – A África portuguesa

Mito que põe em evidência um vasto espaço que é Portugal em África constituído pelas suas colónias, mas também a sua “portugalização”, onde impera a presença de uma identidade portuguesa que se pretende assente na língua, na cultura, na organização e nas práticas quotidianas.

VI – A Grandeza da Nação e a Luta Armada

A ideia de que “Portugal não é pequeno”, assente na ciência cartográfica que mostrava a grandeza da nação portuguesa que se estendia do Minho a Timor, apresentando uma dimensão semelhante à da Europa ao englobar todas as colónias do império português designadas, a partir dos anos 50, de províncias ultramarinas.

VII – Descolonização, Independências e Legados do Colonialismo

Por fim, abordam-se os 13 anos de luta armada, destruição física e cultural que terminaram no dia 25 de abril de 1974, a complexidade dos processos de descolonização, os fenómenos de violência militar e social, o regresso de milhares de retornados e a construção de novas relações políticas, culturais e económicas com os novos Estados independentes.

Dois eixos centrais estruturam a narrativa da exposição. O primeiro organiza-se em painéis temáticos, nos quais texto e imagem se articulam, dando a palavra ao conhecimento histórico. O segundo eixo pretende “fazer falar” as obras de arte africanas, como evidências materiais do pensamento e da cultura africanas, evidenciando a complexidade organizativa dos sistemas sociais e culturais destas sociedades.

“As produções artísticas africanas, em particular as formas esculpidas e pintadas, traduções materiais do pensamento e das culturas das populações, integradas em todos os seus quotidianos, das práticas domésticas aos mais diversos rituais religiosos e festivos, não só ‘dizem’ a África, como também põem em evidência a capacidade criativa, a sabedoria, a racionalidade institucional e social e a riqueza cultural dos africanos, contribuindo poderosamente para afirmar identidades e práticas civilizacionais africanas”, salienta Isabel Castro Henriques.

Este segundo eixo da exposição é constituído por uma seleção de 139 obras, repartidas entre seis temas: símbolos de autoridade; sacralização da vida; quotidianos: trabalho, produção, comércio; culturas, artes e técnicas; família, relações socias, identidade; África Europa; sínteses culturais. As obras são provenientes das coleções do Museu Nacional de Etnologia, incluindo algumas peças em depósito da Fundação Calouste Gulbenkian e do colecionador Francisco Capelo, e obras de arte africana contemporânea dos artistas Lívio de Morais, Hilaire Balu Kuyangiko e Mónica de Miranda.

No âmbito do programa paralelo que complementa a exposição, patente até 11 de novembro de 2025, decorre no ISEG e no Museu Nacional de Etnologia o ciclo Cinema e Descolonização, com projeções de filmes relacionados com a realidade pós-colonial, além da realização de outras ações de caráter científico, nomeadamente conferências e colóquios.

Françoise Vergès, politóloga, historiadora, e especialista em estudos pós-coloniais francesa, escreveu no livro Decolonizar o Museu (Orfeu Negro, 2024) “decolonizar verdadeiramente o museu é pôr em prática um ‘programa de desordem absoluta’, é fazer um esforço de imaginação e criar outras formas de narrar e compreender o mundo, que nutram a criatividade coletiva e tragam justiça e dignidade às populações que delas foram desapossadas”.

Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades é uma importante exposição que dá um passo firme nesse longo caminho a percorrer.

Carolina Deslandes, Tatiana Salem Levy, Raquel Castro, Catarina Mourão e Lou Vives contam como a sua arte se reflete em manifestações do “eu”.

Carolina Deslandes

Cantora e compositora

Foi quando saiu o disco Praticamente, de Sam the Kid, que Carolina Deslandes percebeu que música queria fazer. Hoje, as suas letras falam das suas conquista e derrotas, dos seus amores e desamores e daquilo que a incomoda e alegra. A 24 e 25 de janeiro, sobe ao palco do Coliseu, ao lado de Diogo Clemente, seu ex-marido e pai dos seus filhos, no espetáculo Eu e Ele.

“Esse lado mais autobiográfico, que aparece muito no rap e aparece sem vergonha, foi inspirador para mim, porque não havia constrangimento em abordar fosse o que fosse. Todos os artistas que verdadeiramente influenciaram a minha vida e pelos quais me apaixonei são autobiográficos. Senti que esse era o meu compromisso com a minha música: dizer a minha verdade. Quando fazemos música assim, inevitavelmente falamos das nossas coisas boas e das nossas coisas mais difíceis – e ninguém quer sentir que está sozinho nas coisas mais difíceis. Mesmo que não esteja a cantar sobre uma coisa que me aconteceu, estou a ser mensageira de um assunto que me preocupa. Fazer estas canções foi fundamental para me conhecer e para conseguir dar o passo de fazer música mais interventiva. Não posso ser uma mulher em 2024 e não ser feminista. Sinto que nós, mulheres, estamos a acordar partes da nossa vivência e infância, do nosso dia-a-dia e estamos a sentir necessidade de ser vocais sobre isso e de incluir isso na arte que fazemos. As coisas dão-nos vergonha até percebermos que não são só nossas, que aos outros também acontece aquilo. A música e a arte são, cada vez mais, um exercício de aproximação ao outro: ‘anda aqui, que vou dizer-te que isso não faz de ti uma pessoa esquisita ou um perdedor’.”

Tatiana Salem Levy

Escritora

No seu livro mais recente, Melhor Não Contar, Tatiana Salem Levy fala da mãe e da sua morte prematura, do padrasto e do assédio de que foi vítima, e de vários outros episódios que a marcaram. Este mês, voltará à escrita, só não sabe ainda de que livro: se um de pura ficção que vem escrevendo há 10 anos, se outro, mais pessoal, que se pode interpor no caminho.

“Me escrever é uma tentativa de me colocar na escrita, mas não só: me colocar no mundo, elaborar os acontecimentos pela escrita. Mas essa Tatiana da escrita é sempre uma outra Tatiana, uma Tatiana tornada literatura. Do meu eu vai para o eu da leitora e do leitor e entre esses dois eus tem um terceiro, que é a literatura e que torna tudo universal. Quando se passa para texto, de alguma forma, ficciona-se. O ato de contar já é um distanciamento do acontecimento. Esse boom da autoficção toca muito as pessoas. É um toque de uma sensibilidade e de uma emoção, que talvez as pessoas estejam precisando neste mundo tão acelerado. A literatura resiste a esse tempo e proporciona uma experiência temporal diferente onde está incluído tudo o que não dá tempo de viver. É também um gesto comunitário, tal como este movimento feminista. A Vista Chinesa e Melhor Não Contar são livros que não existiriam fora dessa vaga em que as mulheres começaram a se expor mais, a falar mais de si e das violências que sofrem. A gente se sente apoiada, como aquela frase no Brasil que diz ‘ninguém solta a mão de ninguém’. Embora a gente se reconheça na tradição literária, até aqui tínhamos a ideia de que as histórias já tinham sido todas contadas. Quando decidi ser escritora tinha esse fantasma. E, de repente, percebemos que muitas histórias ficaram por contar ou, então, foram contadas, mas não nessa página da grande literatura: eram contadas nos ambientes domésticos, nos diários, nos sussurros. O que tem de diferente agora é a transformação dessa escrita de si em literatura.”

Raquel Castro

Atriz e encenadora

São várias as peças de teatro em que Raquel Castro parte das suas experiências pessoais para criar ficções. A mais recente, As Castro, estará em Lisboa de 8 a 18 de maio, na Sala Estúdio Valentim de Barros dos Jardins do Bombarda, que o Teatro Nacional D. Maria II ocupa durante 2025.

“Como espectadora e como leitora, desde há muitos anos que sou atraída por trabalhos de pendor mais autobiográfico ou autoficcional. Quando os meus espetáculos partem de uma inquietação minha, sinto que há uma chama inicial que se mantém e que, no final, falam mais comigo. Há uma tensão que se cria quando é dito ao público que aquilo a que vai assistir tem esse ponto de partida. As pessoas ligam-se de uma maneira diferente. Quando começo os meus espetáculos a dizer ‘Olá, o meu nome é Raquel…’, tento que esse contrato seja honesto, porque isso cria no espectador uma expectativa. Às vezes a parte ficcional é mais óbvia, outras menos. Existe um processo criativo em que as coisas são muito escavadas e trabalhadas, para conseguir que de uma história individual se chegue a uma história mais coletiva. Ando muito em torno da domesticidade e da família, da maternidade, das mulheres, temas que são comuns a uma grande maioria das pessoas. É preciso deixar que o processo nos conduza e que haja uma liberdade poética e criativa por cima daquilo que são os nossos pontos de partida. Isso pode levar-nos por vários caminhos e por cima disso podem existir muitas camadas. Até porque a memória também é uma ficção, são coisas que contamos a nós próprios. É verdade que os pontos de partida são autobiográficos, mas a partir do momento em que se escreve e se põe uma personagem em palco, aquilo não sou eu. Estou a fazer de mim, mas é uma persona criada para aquela situação.”

Catarina Mourão

Realizadora

Nos filmes A Toca do Lobo (2015) e O Mar Enrola na Areia (2019), Catarina Mourão parte de imagens de arquivo pessoais para contar histórias: a do avô que nunca conheceu e a de um personagem que vagueava nas praias e vivia da caridade dos banhistas. Este ano, depois de estrear uma curta ficcional rodada nos Açores, e de filmar uma longa também de ficção, há de começar outro projeto a partir dos cerca de 600 diapositivos do pai que encontrou numa caixa.

“Há sempre um momento no percurso artístico em que as pessoas se voltam para questões que as inquietam e têm mais a ver com o seu percurso e biografia. Se calhar porque ganhamos uma certa confiança e não temos tanto medo da exposição, ou porque não vemos isso como um gesto narcísico. As pessoas já não têm esse pudor: assumem muito mais o seu olhar sobre as coisas. É aquilo que melhor conhecemos e que mais podemos aprofundar. E esse trabalho de aprofundamento – parece paradoxal – mas é fundamental para a universalidade, para que chegue ao outro. O perfurar da superficialidade tem a ver com isso. É preciso perceber quando é que se passa de um filme caseiro que só interessa à família para outra coisa, torna-se necessário identificar quais são as inquietações mais profundas que ali estão. Aí conseguimos tocar mais as pessoas e somos mais originais também. Se não, entramos num cliché do “eu, eu, eu” e das recordações e dos natais e das festas de aniversário. Esse processo sobre o arquivo torna-se muito interessante, porque não basta só escarrapachá-lo, é preciso trabalhá-lo.”

Lou Vives

Artista plástico e músico

Ritmos y Poemas é a primeira exposição individual de Lou Vives, patente de 16 de janeiro a 5 de abril, na Kunsthalle Lissabon. Partindo de uma performance com bateria, aborda as “noções de memória, poética queer e efemeridade”. Entre as várias peças, estão litografias, um mural e uma cassete chamada “a minha voz antiga”.

“Nos últimos anos, tenho explorado muito a relação entre verdade e ficção, onde se situam essas fronteiras e como são percecionadas. Agrada-me a ideia de que quem vê ache que a realidade pode ser ficção e a ficção pode ser realidade. Esta exposição em Lisboa é quase toda uma espécie de diário do que vivi este último ano e tem muito a ver com uma exploração de identidade e queerness e de uma relação de distância de uma pessoa que cresceu em Lisboa, mas que tem pais espanhóis e agora vive na Holanda. Utilizo a minha biografia e as minhas coisas como material plástico, mas a verdade é que nos podemos interrogar que trabalho não tem a ver com a subjetividade do seu autor. Os meus processos passam muito pela criação de um arquivo, que pode ser um diário ou um arquivo contemporâneo, que vou explorando. Interessa-me também a fluidez do sujeito e uso no meu trabalho pessoas que ouço na rua, livros que estou a ler, vídeos que vi no Tik Tok, fazendo uma colagem de tudo à minha volta. Nunca tive outra forma de pensar, é aí que encontro a energia, o desejo e a vontade de fazer. O impulso de criar é a partir de mim. É a única forma que tenho de encontrar beleza nas coisas.”

A propósito de um outro espetáculo, assumias encarar o teatro como um espaço de criação pleno de liberdade. A liberdade é o gatilho essencial para criar?

Sim, claro. Acima de tudo, vejo o meu trabalho no teatro muito associado à infância, um tempo em que somos totalmente livres porque não temos grandes inibições. Dou quase sempre o exemplo de crianças a brincar que transformam uma caixa num castelo e um pau numa espada para matar o dragão. Procuro muito comunicar com esse tempo, e isso faz-me fazer as coisas da forma mais livre possível, sem ter de corresponder às ideias de ninguém, senão às minhas e, naturalmente, das pessoas com quem trabalho.

Essa liberdade vinca-se também num lado muito pessoal…

Acho que é a forma de me confrontar com temáticas como a mortalidade, o oblívio, a perda, a passagem da infância para a idade adulta. Esta ideia da mortalidade está sempre muito presente, chega a constranger-me no dia-a-dia e afeta-me particularmente à noite, porque a cabeça não para…

Porquê essa fixação com a morte em alguém ainda tão jovem?

Houve vários momentos na minha vida que me fizeram contactar com a morte. A minha mãe faleceu prematuramente, quando eu tinha oito anos, e isso foi o catalisador da minha vida, que estabeleceu um antes e um depois. A ausência, a perda e o luto levaram-me a procurar uma forma de lidar com isso, por isso, coloquei-me num lugar de silêncio e de plena escuta, uma criança que observava os outros. Isso fez-me ganhar uma grande paixão pela matéria humana…

E terá sido esse o estímulo para te tornares artista?

Penso que sim. Até porque criar é, também, uma forma de comunicar com a minha mãe. Inconscientemente, nos meus espetáculos, estão sempre presentes figuras maternas e pessoas que, embora sendo já adultas, procuram voltar a ser crianças.

Sei que o cinema foi a tua primeira paixão…

Costumo dizer que o cinema me salvou a vida e, particularmente, um filme – À procura de Nemo [de Andrew Staton, 2003]. Lembro-me de vê-lo e pensar: “eu não sou o único a perder a mãe, isto existe no mundo, outras pessoas passam por isto”. Ajudou-me muito a encontrar forma de lidar com a dor e o luto. Mas, antes disso, já havia o gosto pelos filmes, e inevitavelmente isso está muito ligado ao que vivi com a minha mãe e àquilo que tanto nos uniu: os filmes que víamos juntos. Era muito novo e recordo uma coleção de VHS que saía com a revista TV Guia, penso que chamada qualquer coisa como “os filmes da nossa vida”. Foi assim que descobri um filme que, embora a minha mãe tenha referido não ser adequado para a minha idade, vi às escondidas e me fez apaixonar pelo cinema: Beleza Americana [de Sam Mendes, 1999].

O que te fascinou?

Naturalmente não percebia muito bem o que estava a ver, mas aquela sucessão de imagens, aquelas personagens e as histórias paralelas, o casal protagonista, a filha, os vizinhos… acho que foi ali, ao ver tudo aquilo, que nasceu a minha paixão pelo cinema.

“Este é, também, um espetáculo sobre relações altamente íntimas, altamente tóxicas.”

E como é que o teatro aparece na tua vida?

Não tinha grandes referências no teatro. Morava na zona de Alverca e, entre Vila Franca de Xira e Moscavide, locais onde cresci, não havia propriamente o mesmo acesso que se tem em Lisboa. Por isso, o teatro entra na minha vida apenas na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), à qual fui parar porque queria fazer cinema, depois de ter feito Humanidades e julgar ter poucas hipóteses de entrar…

Portanto, era cinema que pretendias estudar…

Queria fazer o curso de Realização mas, a dada altura, estava a ver um filme e percebi que não me bastava criar imagens – eu queria estar dentro das imagens! Por isso, entrei na ESTC para o curso de Teatro – ramo de atores, apenas porque aquilo que pretendia verdadeiramente era ser um ator de cinema.

Logo no final do curso, surge o primeiro projeto em nome próprio. Como é que isso sucedeu tão prematuramente?

Eu tinha um texto que escrevi especificamente para 12 atores, pessoas do meu ano de curso, mas que não pretendia, de modo algum, ser eu a dirigir. Não queria fazê-lo porque sentia haver gente muito mais bem preparada para isso. Fiz vários convites, deixando apenas a exigência de serem esses 12 atores a interpretá-lo, já que aquele texto era uma carta de amor àquelas pessoas em concreto. O certo é que acabei por ser eu a encenar a minha primeira peça, É possível respirar debaixo de água [2015], num espaço do Martim Moniz, a Manteigaria. E menos de dez anos depois, estou a estrear a minha décima criação…

Precisamente. E, a julgar pelo título, será esta a tua peça mais cinematográfica?

Progressivamente, acho que as minhas criações vão estabelecendo uma ligação mais estreita com o cinema. Parece que me tenho aproximado cada vez mais dessa busca, procurando perceber como é que o teatro e o cinema se podem fundir e podem dialogar.

Aquilo que se pode ler na sinopse de Quando eu morrer, vou fazer filmes no inferno! parece remeter para o cinema de género, com uma mulher ameaçada, surpreendida por dez estranhos que lhe invadem a casa…

Sim, este espetáculo tem uma forte ligação com os temas do obscuro, do mistério, da assombração e da ameaça. Queremos, para já, que tudo se mantenha o mais críptico possível, mas posso avançar que este é, também, um espetáculo sobre relações altamente íntimas, altamente tóxicas. E também sobre a própria criação artística, no caso, sobre o cinema português num futuro próximo…

E é dedicado à tua mãe…

Uma das razões que me levou a fazer este espetáculo foi um diário que a minha mãe escreveu. Antes de falecer, percebi que ela estava a passar por uma grande depressão, falando recorrentemente da sensação de se sentir observada e de poder ser atacada a qualquer momento. Esta ideia do grupo de estranhos que entra pela casa adentro foi uma forma de materializar o estado de ansiedade em que vive alguém que sente que a qualquer momento algo de muito mau pode acontecer. Como o público depois irá perceber, esta situação de ansiedade vai concretizar-se fisicamente, como um cancro. Para além disso, uma das personagens tem o nome da minha mãe e há a invocação de um conjunto de figuras da minha família.

Este projeto acontece no momento certo?

Na verdade, ando há uns seis anos a tentar fazê-lo. Era para ser a minha quinta criação e vai ser a décima. Claro que esta é para aí a 40.ª versão do texto. É um espetáculo que necessita de uma equipa muito grande, tem 12 pessoas no elenco, e a força dele deve-se também a elas.

Um elenco com muitos dos artistas que costumam trabalhar contigo e alguns estreantes, como por exemplo a Lúcia Moniz…

Não é por estarem comigo, mas são um elenco de sonho. Para já, há as pessoas que começaram comigo, e das quais digo sempre que falar do meu trabalho é também falar da Cléo Diára, da Ana Valentim, da Rita Rocha Silva ou do Pedro Baptista. Depois, estou pela primeira vez a trabalhar com pessoas que adoro como a Alice Azevedo e o Leonardo Garibaldi, que para além de ator é também o produtor do espetáculo. Quanto à Lúcia Moniz… reservei para ela a figura, digamos, central e primordial…

A “mãe”, a figura materna?

A personagem da “mãe”, a Otília – tem o nome da minha mãe, mas não é a minha mãe –, levou-me, pela primeira vez, a trabalhar com alguém fora da faixa etária do grupo. E o certo é que a Lúcia trouxe uma grande frescura tendo levado, de repente, o espetáculo para um lugar que eu não pensava de antemão.

Como é que escolheste a Lúcia Moniz?

Foi a intuição de que era a pessoa certa. Já tinha falado algumas vezes com ela aquando de Anima [2022], um projeto do Pedro Batista, em que ela esteve para entrar. Não sei se por causa de O Amor Acontece [filme de Richard Curtis, 2003] [risos], sempre tive pela Lúcia uma grande empatia e carinho, embora não nos conhecêssemos pessoalmente. O certo é que havia de haver um encontro meu com ela e, quando por fim aconteceu, pareceu que já tínhamos estado juntos várias vezes. A verdade é que a Lúcia veio mexer no bom sentido com a dinâmica do grupo, e eu não poderia estar mais feliz por ser ela a fazê-lo.

Em 2021 recebeste o Prémio Revelação Ageas/Teatro Nacional D. Maria II. Estar hoje a poucos dias de estrear um projeto teu numa instituição como a Culturgest também se deve a isso?

Os prémios ajudam sempre qualquer coisa e esse, especialmente, permitiu que começassem a surgir as coproduções com instituições como o CCB ou a Culturgest, ou o apoio da Direção-geral das Artes (que só aconteceu à minha oitava criação), e até a atenção da imprensa… até aí, trabalhávamos à bilheteira, naquele regime de ensaios à noite com as pessoas a virem de outros trabalhos, e muito raramente nos atendiam o telefone quando procurávamos apoios. Embora reconheça ser um privilegiado, é sempre bom quando sabes que há quem te esteja a observar e a reconhecer um percurso, quanto foi preciso lutar e trabalhar para encontrar um lugar. Mas, os prémios não solucionam tudo e problemas como a falta de dinheiro e de meios persistem na atividade artística. Por isso, e como sempre, a luta continua.

Diretor artístico da Plataforma285, ao lado de Cecília Henriques, Raimundo Cosme anda embrenhado no novo espetáculo do coletivo, que se há de estrear a 29 de janeiro, no Teatro do Bairro Alto. Crice Crice Baby, em cena até 1 de fevereiro, define-se em negação: “Não é uma ode à resiliência. Não é uma romantização da resistência. Não é um apelo à perseverança. Mas também não é um último reduto”, sublinham na apresentação do que descrevem como “um concerto-performance-acontecimento transpirado”. Quase a chegar ao palco, estes são dias de ensaios e de experimentação de ideias, até porque, fazem questão, nunca põem de pé dois espetáculos iguais. “Gostamos de trabalhar sempre com o que não dominamos. Acho que se alguma vez a forma de fazer espetáculos ficar sólida me reformo. Garantindo todas as condições necessárias, agrada-me este privilégio de estar num sítio pela curiosidade e pelo amor”, diz Raimundo. Neste processo de trabalho e por causa do doutoramento que está a fazer, tem mergulhado nas páginas de dois livros que aqui sugere, mas, para esta semana, não faltam outras recomendações – para quem gosta de sair à rua e para quem prefere ficar em casa.

fio^, de Inês Campos

9 a 11 janeiro
Teatro do Bairro Alto

Raimundo Cosme confessa que nunca viu nenhum espetáculo de Inês Campos, mas este, que junta as linguagens da dança, da música, do teatro visual, da poesia e do storytelling, prendeu-lhe a atenção. “Na Plataforma285, vimos do teatro, mas estamos a trabalhar cada vez mais com artes performativas, indo buscar artes visuais e música para os nossos espetáculos. É uma luta, esse trabalho, e interessa-me ver como outras pessoas a resolvem”, diz. Já pôs, por isso, na agenda rumar ao Teatro do Bairro Alto para ver fio^, uma peça sobre as narrativas e os diálogos internos que acontecem dentro das nossas cabeças. “O TBA é um sítio onde têm aparecido muitos nomes que não conhecia, apresentados sem etiquetas paternalistas, e onde tenho feito muito boas descobertas, tanto nacionais como internacionais.”

Agressive Girls

10 janeiro, 22h
Galeria Zé dos Bois

Em Crice Crice Baby, haverá uma banda em palco, as Agressive Girls, e, nem de propósito, esta é a semana em que dão um concerto na Galeria Zé dos Bois, numa noite onde atuam também Bleach Mane & Mizu, warupmaria, 7777 の天使 e Um6ra. “São uma banda de punk eletrónica, queer, feminista, tudo o que é importante. São muito lindas, têm muita força e muita energia, vale muito a pena ir vê-las. Ainda por cima, num espaço mais intimista como a ZDB. Foi a Cecília que, ainda antes de sabermos o que ia ser este espetáculo, disse que gostava que elas estivessem connosco. Fui ouvi-las e gostei muito, são incríveis.”

Endless Sun: Capital Blindness, de Hugo de Almeida Pinho

Até 16 fevereiro
Carpintarias de São Lázaro

Inaugurou em dezembro, esta mostra de Hugo de Almeida Pinho, com curadoria de Paulo Mendes, “sobre a ideia de políticas solares e as suas implicações críticas em diversas esferas energéticas, biopolíticas e tecnológicas”. Para Raimundo Cosme, não se deve perder a oportunidade de ir às Carpintarias de São Lázaro, para a ver. “É uma exposição tão consistente, estruturada e depurada. O Hugo de Almeida Pinho trabalha no detalhe a ideia do sol e da luz do sol e constrói peças de arte visual a partir daí. É linda e muito inteligente.”

©Netflix

A Vida, Segundo Philomena Cunk

Netflix

Está disponível desde 2 de janeiro, este novo filme de Philomena Cunk, personagem delirante, criada pela atriz inglesa Diane Morgan, que faz documentários sobre assuntos que não domina de todo. “É tudo muito fantástico: a leviandade com que ela fala, a caras dos especialistas que entrevista, as teorias que apresenta e que nos fazem rir mas que, na verdade, não andam longe de muitas defendidas hoje por negacionistas e outros…”, afirma o ator e encenador. “Adoro a seriedade com que ela faz aquilo – nunca resultaria em teatro, mas funciona mesmo bem ali num programa de falso documentário. Além disso, a atriz tem alguma coisa, no olhar, de Lucy McCormick, uma artista incrível que também vai estar em Lisboa e que recomendo já”, adianta Raimundo, referindo-se ao espetáculo Lucy and Friends, que estará no TBA, nos dias 14 e 15 de fevereiro.

Love Has Won: The Cult of Mother God

HBO Max

Outra sugestão para ver em streaming, este documentário sobre a vida e a morte de Amy Carlson, uma “salvadora espiritual”. “É uma história muito americana, mas muito interessante. Sou fascinado por cultos e pela forma como as pessoas os seguem sem pensar. A humanidade sempre precisou de fugas e salvações, mas é incrível como as pessoas acreditam em tudo quando querem. Fascina-me a incapacidade de lidar com a inevitabilidade da morte e do drama, quando devíamos estar antes preocupados em deixar o legado de um mundo melhor e memórias de felicidade. Estas crenças não andam muito longe dos populismos que vemos hoje.”

Reality Shows – Ritos de Passagem da Sociedade do Espectáculo, de Eduardo Cintra Torres

Edições Minerva Coimbra

A tirar um doutoramento em Artes Performativas, partindo do primeiro espetáculo da Plataforma285, Raimundo Cosme tem lido e relido este livro de Eduardo Cintra Torres, um autor a quem recorre com frequência. “Gosto muito dos livros dele e este permite-nos pensar no fenómeno da televisão, mas também no impacto da ideia de ‘ser conhecido’ e dos reality shows no nosso imaginário coletivo. Interessa-me bastante este tema da sociedade do espetáculo. Sou da geração do nascimento da SIC, em que se passou a dar primazia ao entretenimento, e nos nossos espetáculos pensamos muito no que é isso da alta e da baixa cultura.”

The Virtues Of Underwear – Modesty, Flamboyance And Filth, de Nina Edwards

Reaktion Books

Na conceção de Crice Crice Baby, Raimundo Cosme descobriu este livro, que ainda não está traduzido para português. “O tema da roupa interior e da sua representação nas artes interessa-me muito. Tem bastante a ver com o que estamos a preparar nesta criação e gosto de pensar nos significados que uma peça de roupa interior, que começa por ser uma coisa comum, pode ganhar ao longo do espetáculo. Tenho lido este livro e pensado muito na forma como vamos conseguir montar espetáculo”.

Para responder a essa tendência, diversos espaços têm-se dedicado a promover cursos e oficinas, tanto para iniciantes, como para pessoas experientes nessas práticas artesanais. Mas o que esses espaços oferecem vai muito além da aprendizagem técnica; eles criam verdadeiras redes de conexão e troca de experiências entre os participantes.

Croché

Retrosaria Rosa Pomar

Rua Maria Andrade, 50A / 213 473 090

Na Retrosaria Rosa Pomar somos recebidos por muita cor, graças aos novelos, meadas e tecidos que forram as várias mesas e estantes do amplo espaço. Aquela que é considerada uma referência na cidade para os amantes de tricô tem como principal missão valorizar as lãs de ovelhas portuguesas. “O nosso foco principal e diferenciador em relação às outras lojas é o facto de nós fazermos os nossos próprios fios, exclusivamente com lã de ovelhas de raças autóctones portuguesas. Já temos mais de uma decada de trabalho em prol da defesa dessas raças e do aproveitamento dessa matéria-prima. Além de fazermos um trabalho de valorização das lãs autóctones, criamos uma série de fios para tricô, diferentes uns dos outros, com a lã das várias raças, que também exportamos para o estrangeiro”, conta-nos Rosa.

Para lá do comércio de fios, a retrosaria aposta também na formação, algo que está presente desde o ínico da loja e que surgiu devido a “uma lacuna no mercado”. Os workshops de tricô são dados pela própria, mas há mais labores na área têxtil para aprender ou aperfeiçoar, sempre através das técnicas tradicionais, como é o caso do croché, diferentes tipos de bordados, tapeçaria, costura, entre muitos outros. “Ensinar as pessoas a trabalhar com as mãos é uma coisa muito bonita de se fazer. As pessoas saem daqui com um grande sorriso e, muitas vezes, orgulhosas de uma nova conquista. O facto de ser capaz de criar uma coisa com as próprias mãos é um poder que se tem perdido muito ao longo do tempo, mas que é fantástico e que traz muita alegria e bem-estar”.

Tricô

Auri Retrosaria

Rua Oliveira Martins, 10E / 961 201 042

A Auri é uma retrosaria tradicional, daquelas à antiga, onde há novelos de lã, carrinhos de linha, kits de costura e todos os acessórios imagináveis para os ofícios com agulhas um pouco por todo o lado. Fundada em 1961, assume-se como mais do que uma loja, é um espaço de convívio. Prova disso são os encontros semanais de tricô que promove e que, inclusive, se estendem para fora de portas: “Temos uma situação muito engraçada, que é o Museu do Tricô. Todos os meses, um grupo de senhoras visita um museu e tricota nesse museu. E também fazemos retiros de fim de semana. É muito giro, é uma coisa fabulosa”, diz Adelina, a atual proprietária do espaço.

Além de aulas de tricô, a loja oferece também aulas de croché, bordado em lã, patchwork e costura criativa e, no âmbito do Projeto RADAR da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que tem como objetivo a promoção de bairros mais solidários, comunicativos e atentos à população com mais de 65 anos em situação de risco de isolamento e de solidão não desejada, atua de forma integrada para contribuir para o bem-estar e melhor qualidade de vida destas pessoas através do ensino do tricô. Essa técnica de entrelaçar o fio é, aliás, a maior aposta da Auri, como esclarece Adelina: “O nosso forte é o tricô. Todos os anos vamos ao Jardim Fernando Pessa celebrar o Dia Mundial de Tricotar em Público e também temos o Jornal do Tricô, que tem uma peridiocidade mensal”.

Arraiolos

Associação dos Artesãos da Região de Lisboa

Rua de Entrecampos, 66 e 66A / 217 962 497

Desde 1982 que as Oficinas de Artes e Ofícios da Associação dos Artesãos da Região de Lisboa (AARL) ensinam diversos saberes, disponibilizando cursos nas mais distintas áreas, como a cerâmica criativa e figurativa, conservação e restauro de loiças, encadernação, olaria, pintura em azulejo, restauro de mobiliário, entre outros. Aliás, quem entra no n.º 66 da Rua de Entrecampos não imagina o que o espaço esconde assim que se desce à cave. Várias oficinas apetrechadas com todo o material necessário para desenvolver os mais diversos ofícios, todas com trabalho a acontecer, o que torna aquele lugar num sítio de convívio e partilha. Na área têxtil, a associação oferece cursos em tecelagem, bordados e Arraiolos, onde se aprendem técnicas tradicionais portuguesas.

A AARL dá apoio aos sócios na divulgação e venda dos seus produtos, mas, de acordo com Carina Trigueiros, “a base da associação sempre foi a formação”. “É um dos nossos pilares. A formação sempre foi muito importante nos objetivos da nossa fundadora; o chegar às pessoas, a toda a gente. As nossas aulas não têm limite nem de idade, nem de género, nem se é sócio ou não, toda a gente pode participar”, diz. “As pessoas vêm aqui por vários motivos: algumas vêm só aprender uma coisinha, umas vêm para se distrair, outras vêm para aprender técnicas, para desenvolverem trabalhos seus. Há, inclusive, pessoas que, ao fim de um tempo de cá estarem, abrem o seu negócio, tornam-se mesmo artesãos”.

Punch Needle

FICA – Oficina Criativa

Rua de Arroios, 154B / 913 190 670

O espaço é muito amplo e luminoso. Ali, tudo está preparado para se deitar mãos à obra. Os 300m2 abrem-se a curiosos e profissionais que queiram aprender um ofício – através dos workshops,  oficinas ou masterclasses -, ou realizar os seus próprios projetos, seja de forma independente ou com ajuda personalizada – através do Ginásio de Ofícios, uma modalidade onde todos podem usufruir da oficina totalmente equipada com máquinas e ferramentas para os executar. Aquele que se assume como um espaço criativo, e para o qual a democratização do saber e do acesso a oficinas técnicas é prioridade, oferece formação em áreas tão diversas como a serigrafia, a marcenaria, a cerâmica e o têxtil.

No que respeita a este último ofício manual, a FICA dá workshops de tufting, punch needle, tecelagem, bordado sobre tecido, iniciação ao bordado, tapeçaria, croché, esmirna, entre outros. O objetivo, segundo Rita Daniel, “é transmitir ao máximo aquilo que são as técnicas manuais e os ofícios manuais, tentando ter uma oferta um bocadinho pragmática. Apesar dos nossos workshops estarem focados para a transmissão da técnica num sentido muito direto e prático, não queremos facilitar aquilo que é o ofício e aquilo que implica o saber fazer; a ideia é a pessoa ter um conhecimento que lhe permita, depois, valorizar as peças que são feitas à mão e valorizar o artesão em si”.

Remendo de tecido

Artlier

Rua Gervásio Lobato, 47B / 933 932 532

Escola de artes e ofícios, o Artlier junta o conhecimento e o lazer, apresentando-se como um espaço de partilha de saberes, de aprender pelo fazer e aprender o saber fazer. É um lugar de contar histórias e estórias de pessoas e costumes, um lugar de resgatar tempo e tradições, e fá-lo através de cursos, workshops e oficinas em áreas tão distintas como o têxtil, a madeira, a cerâmica, a pintura e o desenho. Em relação ao têxtil, Joana Teixeira interpela-nos: “o têxtil é um mundo, não é? É uma portinha que se abre e é gigantesca”.

Nesta área, o Artlier oferece formação, entre outros, no clássico tricô, croché, tapeçaria, bordado de Arraiolos, bordado livre em papel, remendo de malha e remendo de tecido, sendo estes dois últimos os workshops mais recentes, e Joana explica porquê: “A escola começou em 2002 com restauro de móveis e restauro de madeiras. E, ao longo deste tempo, foram-se acrescentando mais, mas sempre numa vertente de recuperação, de restauro, de reparação. Além disso, o processo de remendo alia a importância ambiental de um guarda-roupa mais circular e os benefícios mentais e criativos da costura manual”. O objetivo deste workshop é aprender formas de recuperar e intervir em peças de roupa danificadas, prolongando o seu uso e conferindo-lhes mais valor.

Como surgiu esta parceria com o LU.CA?

A primeira vez que falámos sobre este projeto foi há dois anos. A ideia materializou-se no ano passado, com três pequenos vídeos chamados Ficções Coolinárias, criados para as plataformas digitais do LU.CA, e que abordavam o tema dos doces tradicionais de Natal. Começámos com os sonhos, as rabanadas e o bolo-rei para contar uma história que não é necessariamente estanque, que se vai construindo. Cada vez que praticas alguma coisa que é tradicional, podes acrescentar-lhe a tua camada de intervenção sobre isso. Este Ciclo das Comidas é o culminar de uma coisa muito bonita surgida quando, através do universo da gastronomia, me tornei uma pessoa muito mais visível. Isso coincidiu com o momento em que a minha filha mais velha começou a fazer introdução alimentar e surgiram uma série de constatações muito práticas, que também partiam das minhas inquietações. O facto de eu ter o pensamento mais condicionado e forjado para o lado artístico teve uma influência muito grande.

E de repente começaste a ser associada à culinária…

O meu marido convenceu-me a explorar este universo das receitas de uma forma que fosse pública e que tivesse uma certa utilidade. Porque a comida tem mesmo a ver com o sentimento de partilha, de comunhão, de criação de laços… começou por aí e culminou com Nhom Nhom, o meu primeiro livro de receitas. Nhom Nhom são as onomatopeias do prazer e esse livro está todo construído em torno de uma herança gastronómica que tenho e que não sabia ter um potencial tão interessante. De repente, fazer caldeirada, ensopado de borrego ou sopas de tomate para dar a uma criança, como as avós faziam antigamente, tornou-se uma coisa enorme e começou a ocupar uma parte ainda mais central da minha vida. Percebi, com a pediatra dos meus filhos, que isso era uma prática pouco comum porque há uma camada de conveniência que surge na nossa alimentação mais contemporânea, que tem a ver com a introdução dos ultraprocessados. Esse lado da degradação alimentar é uma coisa que me preocupa. Isto tudo eram coisas que eu não sabia que poderiam ser transformadas noutros objetos: livros, espetáculos, programas de televisão. Não tinha consciência de que era, de facto, um campo de oportunidades.

O ciclo inclui uma exposição, uma oficina, um podcast, uma sessão de contos, um espetáculo e uma leitura encenada. Foi fácil encontrar as pessoas certas para integrarem este projeto?

Grande parte da escolha está intimamente ligada a este percurso. Por exemplo, na sessão de contos temos o Paulo Pascoal, que já tinha feito parte das Ficções Coolinárias; o Tiago Miranda, que também participa na sessão de contos, é um artista que aprecio imenso e que tem muitos filhos, portanto é uma pessoa que está perto da infância; a cenografia e a imagem estão comissariadas à Margarida Alfacinha, uma artista de quem gosto muito e que também tem um traço muito especial. Existe uma particularidade muito interessante na Margarida, porque é pintora, e a pintura enquanto atividade física também é uma coisa muito interessante que as crianças continuam a gostar de explorar. A Patrícia Azevedo Silva, curadora do ciclo de conversas, é alguém com quem tenho muitos anos de relação, não só de amizade, mas de intercâmbio de conhecimento e experiências, sempre relacionadas com comida, comunidade e maternidade; o Rogério Nuno Costa faz os podcasts comigo, é um artista performativo que há muitos anos anda a brincar com a comida, e havia uma vontade muito antiga de trabalhar em conjunto; a Cristina Taquelim contava histórias na Biblioteca Municipal de Beja, onde cresci. Quis proporcionar a mais crianças a hipótese de ouvirem histórias contadas por uma pessoa que marcou para sempre a minha forma de ouvir uma história. O espetáculo também tem a participação da Rita Blanco, que faz o papel de uma mãe abstrata, mas está ali a servir esse propósito muito importante. A minha experiência de infância é extraurbana, é mais rural, especialmente a minha ligação à gastronomia, que vem de uma forte ligação com a terra, com o campo. Portanto, estas coisas nunca deixam de ser extremamente autobiográficas.

Mostrar às crianças que cozinhar (e comer de forma saudável) pode ser divertido é um desafio?

Pela minha experiência pessoal não é um desafio, é uma prática quotidiana. Quando somos crianças, possuímos uma curiosidade latente e inata que nos faz querer descobrir imensas coisas. E comer na infância, pelo menos nesta experiência que eu tenho com os meus filhos, é uma coisa muito aventureira. Podemos viajar através da boca, que é uma cavidade que manda imensa informação para o cérebro e isso é um campo imenso de oportunidades. É importante desmontar a ideia do que é saudável e do que não é, de como é que se come… à medida que pesquiso e mergulho no universo da alimentação, mais coisas vou descobrindo que não têm um significado único. Há muitas camadas de informação e de conhecimento e há muitas coisas que convergem para isto. E através da comida tu podes falar de tudo, portanto, como não utilizar este veículo?

Os teus filhos foram uma grande fonte de inspiração para este projeto?

É uma resposta bastante óbvia [risos]. Peço-lhes opiniões. Vou fazendo, vou mostrando e vou dando para ler, e eles são muito críticos, obviamente. A dada altura, nas nossas vidas, esquecemo-nos da nossa criança interior. Deixamo-la num sítio qualquer e, de repente, já não sabemos brincar, já não sabemos divertir-nos, mas continuamos a poder fazê-lo. Mesmo sendo adultos e tendo um trabalho sério, não podemos deixar que isso desapareça. Devíamos manter a capacidade para rir, para descobrir, para nos contentarmos com coisas simples.

Com fome, ninguém é simpático

Os figurinos também são da tua responsabilidade. Afinal, há alguma coisa que não saibas fazer?

Tantas coisas [risos]. Os figurinos funcionam como um prolongamento daquilo que queremos dizer no espetáculo. Não esquecer que faço parte do Teatro Praga e venho dessa escola. Não ter oportunidade de intervir nessa linha discursiva extra, seria uma grande tristeza. Na possibilidade de poder refletir um bocadinho sobre isso, achei que me apetecia também fazer. Nem sequer pus a hipótese de pôr outra pessoa a fazer figurinos.

A comida tem um papel determinante na tua vida. Como surgiu esta paixão?

Passei mais de metade da minha infância sentada à mesa em jantares e almoços de família e de amigos dos pais. Depois, os meus pais tiveram um restaurante, por isso esta parte também me marcou e alterou completamente a minha visão sobre a alimentação, acima de tudo, porque sempre gostei de comer e sempre tive uma relação excelente com a comida. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que comi um ultraprocessado. Não gosto de refrigerantes, não bebo. Gosto de doçaria tradicional portuguesa, gosto de coisas afogadas em gemas, açúcar e frutos secos. Quando viajo gosto de provar iguarias locais. Lembro-me de ser miúda e de poupar dinheiro para ir comer a um restaurante especial. Também tenho muito presente coisas como hortas, conhecer fornecedores, ir apanhar fruta, ir ao mercado… conhecer o senhor Malagueira, o talhante que tratava do fornecimento da carne para o restaurante dos meus pais…

Essa experiência foi fundamental?

O senhor Malagueira ensinava-me a maior parte das coisas e tenho essas memórias muito próximas. De repente havia um adulto que tinha paciência para aturar uma miúda com 11 ou 12 anos, e de explicar como é que se fazia o corte da carne. Isso foram tudo coisas muito importantes, porque acabaram por me ajudar mais tarde. O conhecimento que se vai adquirindo à medida que vamos crescendo tem uma serventia. Portanto, ajuda-nos a escolher melhor, a ser mais conscientes. É conhecimento, no fundo.

No A La Barrios, no canal 24kitchen, todos os pratos que fazes parecem fáceis e divertidos, mas a correria do dia-a-dia nem sempre permite olhar para a cozinha dessa forma. Qual é o truque para enfrentar os tachos nos dias mais cansativos?

Chama-se organização. É fazer produção, mas com comida e em casa. Normalmente organizo as semanas de acordo com as coisas que já sei que vou ter para fazer. E, como não trabalho num escritório, consigo perceber o que é que vai acontecer na minha semana e trabalhar com antecedência. Faço uma grande panelada de sopa, que depois vou desdobrando, e vou alterando as coisas que estão lá dentro a boiar. Faço uma grande comida de tacho, que sei que vai dar para duas ou três refeições na sua forma original, e que depois se pode desmultiplicar noutras tantas. Assim, quando encomendo do talho ou da peixaria, já tenho um plano. Nos dias mais intensos de trabalho, temos tendência a alimentar-nos pior e isso tem implicações muito claras. Ficamos mais cansados e rabugentos. Com fome, ninguém é simpático. O truque é ter um processo otimizado, é uma questão de organização. Nos programas de culinária as coisas já vêm em tacinhas, tudo cortado e descascado. Isso chama-se mise en place na gíria técnica dos restaurantes. Se fizermos mise en place em casa, primeiro sujamos tudo, deixamos tudo desorganizado. Deixa-se tudo em tacinhas, limpa-se a tábua, a faca, as cascas e depois, quando vamos para o fogão, já está tudo ali, já não há aquele caos. Quanto mais organizada for a operação na cozinha, melhor. Isto são tudo coisas que aprendi no restaurante.

“Devíamos manter a capacidade para rir, para descobrir, para nos contentarmos com coisas simples”

Há algum prato ou ingrediente difícil que tenhas levado os teus filhos a gostar?

Temos uma espécie de regra: só se pode não gostar de uma coisa. São coisas muito parvas. A minha filha, por exemplo, não gosta de amêndoas sem pele. O meu filho não gosta de queijo flamengo. Se lhe deres um queijo de ovelha, cheio de cardo, daquele tipo Nisa, que pica, perfeito. Gostam acima de tudo de experimentar. Gostam do ritual, da experiência, e nós temos uma brincadeira: o clube dos pequenos críticos gastronómicos. Se formos a um sítio diferente estimulamos sempre os miúdos a comentar o prato, a tentar perceber o que é que tem, perceber a que é que sabe, se sabe bem ou mal. Desmontamos um bocado o processo, eles fazem parte da crítica e da conversa.

Moda, alimentação e teatro são algumas das tuas grandes paixões. Conseguirias escolher alguma?

Tendo consciência daquilo que é possível fazer e de que a alimentação é um palco que permite explorar todas as outras áreas, acho que escolheria a alimentação porque, na verdade, é possível estar a cozinhar e vestirmo-nos de acordo ou em desacordo com o que vamos cozinhar. Quando estou a organizar uma receita vou à lista de ingredientes e penso numa série de temas para abordar. O alho, a cebola, os brócolos, a folha de louro, tudo tem uma origem, um significado, não sei quantas linhas discursivas, portanto, acho que a comida tem esse sentido. Consegues reunir todos esses mundos com a comida.

Pergunta dos 50 mil euros: qual é o prato preferido de Joana Barrios?

Isso é muito fácil. É doce e é uma coisa obscena que se chama Fidalgo e que precisa de 64 ovos para confecionar. É genial, é perfeito, é muito bom. E o que eu mais aprecio no Fidalgo é que requer três ou quatro formas de trabalhar os ovos e o açúcar. A receita é muito pobre em ingredientes, são dois, três ingredientes, mas transformados através de várias técnicas, portanto isso tem muito interesse. É maximal, minimal, uma coisa forte. Poucos ingredientes, resultados máximos. Falando de pratos salgados, o borrego assado no forno ou ensopado de borrego. Borrego realmente é uma coisa extraordinária. É maravilhoso e é muito complexo no sabor, é delicado, é nutritivo e tem essa quantidade de linhas discursivas que eu também aprecio imenso, e faz-me lembrar um monte de coisas boas. Lembra-me casa, convívio, a mesa em frente à lareira no restaurante dos meus pais, onde se almoçava, mas também se conheciam pessoas, onde conheci o Teatro Praga, por exemplo, e onde conheci pessoas que, de alguma forma, marcaram muito as minhas escolhas e percursos.

O que tens planeado para 2025?

Temos os 30 anos do Teatro Praga, que regressa ao [antigo hospital] Miguel Bombarda. Para mim é muito bonito, não só porque faço parte da companhia, mas também porque, obviamente, é um espaço que me diz muito, tem esse lado também afetivo muito bonito até porque a primeira vez que trabalhei com o Teatro Praga foi ainda no Miguel Bombarda. Não sei como é que vai ser voltar àquele sítio, que, entretanto, reabriu [como Jardins do Bombarda]. E, depois, tenho imensas coisas para fazer, mas não sei se posso já dizer…

Mais livros de receitas?

Será? Não sei [risos]…

Viet Thanh Nguyen

Um Homem de Duas Caras

Viet Thanh Nguyen entrou nos Estados Unidos da América aos quatro anos levado pelos pais, refugiados da guerra do Vietname. O escritor, vencedor do Prémio Pulitzer com O Simpatizante (2016), narra no brilhante Um Homem De Duas Caras a sua experiência e a da sua família enquanto refugiados na “maior democracia do mundo”. “Partido ao meio”, condenado a “uma existência intersticial” de línguas, culturas, modos de pensar e convicções políticas, examina, sem concessões e com um humor caustico, o racismo latente nos Estados Unidos, nas suas instituições e cultura. Ironia e aguçado sentido crítico que reserva igualmente para se autoanalisar (um dos capítulos do livro intitula-se Retrato do Escritor Enquanto Jovem Imbecil). Nguyen não professa qualquer vestígio de gratidão relativamente ao país de acolhimento, pois considera a sua condição de refugiado como consequência direta da política imperialista americana e da agressão armada ao seu país de origem. Ao invés, procura que a sua escrita, seja um ato de justiça “contra a força desumanizadora de Hollywood e os seus crimes de representação do povo vietnamita”, determinada a humanizá-los e a dar-lhes voz. Mais ainda: que contribua para “erradicar as condições que permitem que alguns não tenham voz”.Elsinore

Alexandre Vidal Porto

Sodomita

Em 1669, Luiz Delgado, violeiro português natural de Évora, é encarcerado como ladrão na cadeia pública de Lisboa. Aí se envolve em práticas sexuais com um “jovem franzino muito juvenil e solícito”. Descoberto, é levado à sala do Santo Ofício e condenado a dez anos de degredo “nas selvagens terras do Brasil”, acusado de praticar “o mais torpe, sujo e desonesto pecado: a sodomia”. Em território baiano avança no caminho da prosperidade como negociante de tabaco e assume um casamento cordial de fachada. Marido e mulher têm ambos algo a esconder: Luiz, a sua orientação sexual; Florência, o facto de se dedicar à escrita produzindo crónicas num diário (“aquelas letras no papel eram ela, tudo ela, papel, carne e tinta”). “Compartilhavam temor e desconfiança (…) perante um Deus que não os admitia no comando de nada. (…) Por instinto, protegiam-se desse Deus, que diminuía as mulheres e tinha ódio aos fanchonos.” Tendo por base uma investigação histórica e personagens reais, este belo romance, o primeiro do autor editado em Portugal, produz uma profunda reflexão sobre os costumes da pretensa civilização face às sociedades ditas primitivas, a temível opressão da Igreja, o preconceito, a liberdade e o direito ao prazer do corpo e o de todo o ser humano se assumir como é. Tinta-da-China

Eugénio Lisboa

Manuel Prático de Gatos

O poeta e ensaísta Eugénio Lisboa deixou-nos no passado mês de abril. Neste livro, o autor dá conta das suas intenções no texto de abertura – demonstrar publicamente a veneração pelo felino que se fez doméstico – onde refere que “a majestade divina do gato exige (…) o formato mais nobre da poesia – o SONETO.” E assim fez, partilhando a poesia aqui reunida, em louvor dos felinos, com amigos de várias partes do mundo, que lhe retribuíam com fotos dos seus bichanos que fazem nesta edição companhia às imagens de Ísis e Artemisa, as últimas gatas a entrarem na vida de Eugénio Lisboa e da sua mulher. Para cada soneto, a respetiva imagem do(s) gato(s), num equilíbrio que se mantém até final, onde se encontram o posfácio de Onésimo Teotónio Almeida e um texto de Otília Pires Martins que fornece o enquadramento sobre a origem das fotografias. Manual Prático de Gatos Para Uso Diário e Intenso é um livro edificado entre amigos e, mais importante ainda, todos pertencentes a uma máfia de “gatófilos”, para a qual uma vez entrados é impossível sair. RG Guerra & Paz

David Grossman

O Coração Pensante

O Coração Pensante é o título do discurso de agradecimento que o romancista israelita David Grossman proferiu na cerimónia de entrega do Prémio Erasmo, em 2022. O poder transformador da arte é o seu tema: “A literatura, e escrita, ensinaram-me o prazer de fazer uma coisa subtil e exata num mundo grosseiro e turvo”. É também o pretexto para o escritor, “uma pessoa que passou a vida inteira em e entre guerras”, que perdeu o filho Uri no confronto entre Israel e o Hezbollah, em 2006, e que há mais de 40 anos luta contra a ocupação pelo seu país da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, reunir 12 ensaios que refletem sobre a questão israelo-palestiniana. Neles analisa o fanatismo da política de Netanyahu que está a causar a destruição do sistema legal, da polícia e da educação, e a pôr em risco a independência do poder judicial e a separação entre a religião e o Estado na “democracia mais frágil do Médio Oriente”. E continua a defender o processo de paz entre as duas nações, apesar de estarem a “tornar-se cada vez mais religiosas, fanáticas e nacionalistas”. Não uma “paz dos ricos”, mas um acordo que aborde “a nação palestina, a sua tragédia e as suas feridas; a ferida de serem refugiados, e a ferida da ocupação”. Na esperança de construir uma vida estável e segura. Uma vida que seja “uma casa” para Israel e “os seus vizinhos”. Dom Quixote

José Eduardo Agualusa

Mestre dos Batuques

Mestre dos Batuques é o mais recente romance de José Eduardo Agualusa, que regressa ao Bailundo, terra que o “viu nascer e crescer”. Uma obra que nos transporta até aos finais do século XX, a uma altura em que, numa savana angolana, soldados europeus surgem mortos de forma misteriosa: “Encontraram vinte e cinco cadáveres. A maioria não apresentava nenhum corte de lâmina, buraco de bala, hematomas ou contusões.” O tempo dos reinos independentes estava a chegar ao fim e era preciso investigar estes estranhos acontecimentos. Foi assim que, em 1902, o tenente Jan Pinto se viu a caminho da ombala real do Bailundo, na companhia de um soldado que queria ser fotógrafo, onde veio a encontrar o melhor amigo de infância, Henjengo. É durante esta viagem que conhece Lucrécia Van-Dunem, sua futura mulher. A história é narrada por Leila Pinto, neta de Jan e Lucrécia, que retrata os dias de guerra em Angola e nos dá a conhecer a história da sociedade secreta de guerreiros batucadores e do poder que se esconde por detrás de cada tambor. Neste “falso romance histórico”, ao mesmo tempo que expõe crimes e contradições da colonização portuguesa em Angola, Agualusa deixa no ar a questão: “pode o amor triunfar sobre a guerra e o caos?” SS Quetzal

Os Imbecis

e Outros Textos Clássicos de Escritoras Russas

Os nomes de Puskin, Tolstoi, Dostoievski, Turguenev, Gogol ou Tchekov são familiares a qualquer leitor português que se preze. Mas quantos leram e conhecem Maria Shkapskaia, Nadejda Teffi, Zinaida Guippius, Sofia Kovalevskaia ou Marina Tsvetaeva? 30 textos de géneros diversos – maioritariamente contos, mas também poemas e uma novela – de 13 autoras vêm provar que nem só de vozes masculinas se fez a grande literatura russa. Representando diferentes escolas e movimentos, esta antologia da literatura russa no feminino confirma uma vocação literária que permaneceu escondida na sombra dos grandes nomes masculinos. Na introdução à presente edição, declara Larissa Shotropa: “Nem sempre compreendidas no seu tempo, escreveram sobre o destino das mulheres russas e discorreram sobre a dificuldade de ser escritora num mundo de homens. Mas não se preocupavam apenas com questões desse tipo: na maior parte dos casos os temas abordados na literatura feminina pouco diferiam dos assuntos tratados nessa época por escritores de outos países”. De facto, o que aqui se restitui é um novo olhar, através de uma lente feminina, sobre as grandes transformações sociais, políticas e culturais do mundo, desde o século XIX até aos inícios do século XX. E-Primatur

Judith Butler

Quem Tem Medo do Género?

“Em várias zonas do mundo, imagina-se que o género é ameaça às crianças, à segurança nacional ou ao casamento heterossexual e a família normativa, mas também conspiração das elites para imporem os seus valores culturais às ‘pessoas reais’, num plano concebido para os centros urbanos do Norte global colonizarem o Sul global. O género é retratado como conjunto de ideias que se opõe à ciência, à religião ou a ambas, ou como ameaça à civilização, negação da Natureza, ataque à masculinidade, ou eliminação das diferenças entre os sexos”. Judith Butler, uma das principais figuras teóricas contemporâneas do feminismo e da teoria queer, examina a forma como o género se tornou um “fantasma” para regimes autoritários, grupos fascistas, feministas transexcludentes ou o Vaticano que o declarou “ameaça à civilização e ao próprio homem”. A autora procura produzir uma visão contrária convincente, que afirme os direitos e as liberdades da vida corporal que urge proteger e defender. “Pois, no fim, derrotar o fantasma é afirmar como amamos, como vivemos no nosso corpo, afirmar o direito de existirmos no mundo sem receio de violência ou discriminação, de circularmos, de respirarmos de vivermos”. Orfeu Negro

João Fazenda

Arena

São quase 250 páginas de desenhos, que reúnem os cartoons do ilustrador João Fazenda, entre 2004 e 2024, feitos durante 17 anos para a revista Visão e, nos últimos três, para o jornal Expresso. Semana após semana, as ilustrações foram acompanhando as crónicas de Ricardo Araújo Pereira – ou, como diz o humorista, estes são os desenhos que os seus textos acompanharam. Vendo o conjunto, tem-se um retrato desenhado deste país à beira-mar plantado e alguns vislumbres do mundo à sua volta. Está ali tudo: dos temas mais ou menos triviais, como a loucura dos saldos ou as fantasias do Salão Erótico, aos temas sociais e políticos, como as cunhas e os subornos, a crise na habitação e na educação, e tantos outros. Os seus protagonistas também não faltam: José Sócrates e Cavaco Silva, Passos Coelho e Angela Merkel, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, Trump e Macron, e até Madonna, Camões e Taylor Swift… Tudo convive nesta arena desenhada por Fazenda, com um traço “dissimuladamente simples, falsamente infantil”, como descreve Araújo Pereira. GL Tinta da China

Ao longo da sua carreira, Catarina Dias tem desenvolvido um trabalho centrado na prática do desenho e da pintura, bem como nas suas derivações plásticas e conceptuais. Nascida em Londres, a artista tem atualmente obra exposta na Sala do Cinzeiro, no MAAT, numa mostra onde explora encontros e desencontros entre imagens e palavras. Inverted on Us, patente até março de 2025, reúne peças trabalhadas digitalmente, impressas em papel e posteriormente pintadas à mão. Ali, Catarina Dias propõe um confronto entre o aparente e o imperceptível, o legível e o indecifrável, num apelo à atenção do olhar do espectador, revelando campos e dimensões sobre os quais este não está treinado a reparar.

©Vera Marmelo

Alexandre Estrela – A Natureza Aborrece o Monstro

Até 2 de fevereiro de 2025
Culturgest

José Loureiro – Beco das Flores, Canedo do Mato

Até 11 de janeiro de 2025
Galeria Cristina Guerra

Jumana Mann – Broken, Taken, Erased, Tallied

Até 24 de janeiro de 2025
Rialto6

Stefan Vogel – Cenas

Até 18 de janeiro de 2025
Galeria Jahn und Jahn

António Neves Nobre – Laboratório de Próteses

De 17 de janeiro a 8 de março de 2025
3+1 Arte Contemporânea

Como artista, Catarina Dias não poderia deixar de sugerir a visita a exposições. As escolhas recaem sobre as mostras de Alexandre Estrela, na Culturgest; José Loureiro, na Galeria Cristina Guerra; Jumana Mann, na Rialto6, e Stefan Vogel, na Galeria Jahn und Jahn, porque “todos os artistas destas exposições possuem uma elegância rara no contexto atual”. A artista sugere ainda Laboratório de Próteses, exposição de António Neves Nobre que tem inauguração marcada para dia 17 de janeiro, na galeria 3+1 Arte Contemporânea.

O Crepúsculo do Mundo

de Werner Herzog
Editora: Zigurate (junho, 2023)

O Fogo e o Relato

de Giorgio Agamben
Editora: Boitempo (Brasil)

A saga de Hiroo Onoda, o soldado japonês que, durante décadas, se manteve no seu posto sem acreditar que a segunda guerra mundial tinha acabado, é uma das sugestões de leitura de Catarina Dias, até porque a artista considera que “ler um livro de Herzog é sempre uma experiência profunda e intensa”. Outra das escolhas é O Fogo e o Relato, de Agamben, um livro de ensaios sobre a criação, a escrita, a arte e os livros. “O ato de ler, toda a sua potência transformadora, a relação vida/obra fazem parte de um mistério que nos anima”, diz Catarina.

Passeio de bicicleta junto ao Tejo

Catarina Dias é uma entusiasta dos passeios de bicicleta, por isso, esta sugestão era incontornável. “Embora haja vários obstáculos desagradáveis, como o excesso de turismo e zonas francamente difíceis de circular tanto a pé como de bicicleta, não deixa de haver uma relação muito direta com o rio que é bastante revigorante”.

©François Guenet

Waed Bouhassoun – O Canto da Montanha

18 de janeiro de 2025, às 21h
Fundação Calouste Gulbenkian

Apesar deste concerto não acontecer esta semana, Catarina Dias não podia deixar de o sugerir. “Waed Bouhassoun tem-nos trazido uma profunda investigação das raízes da música síria, da poesia mística e profana, árabe e pré-islâmica, sempre acompanhada pelo seu oud. Profundo e encantador”. O espetáculo que Waed leva à Gulbenkian resulta dessa investigação em torno dos cantos presentes nos rituais funerários da montanha Jabal al-Druze, onde a intérprete síria cresceu.

Catherine Deneuve em “Les Parapluies de Cherbourg”

Ciclo Jacques Demy

Cinema Medeia Nimas

Até 26 de fevereiro

Quem já viveu um grande amor não poderá negar a comoção despertada na cena da despedida de Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo debaixo de um nevão, ao som da música de Michel Legrand, no final de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo. Por ocasião dos 60 anos do filme que o realizador Damien Chazelle considerou “o melhor de todos os tempos” (e tanto que ele o citou em La La Land), meticulosamente restaurado numa versão 4K estreada no festival Il Cinema Ritrovato, em Bolonha, a Leopardo Filmes apresenta um exaustivo ciclo dedicado a Jacques Demy. Durante os próximos dois meses, pela sala do Nimas, são exibidas obras-primas, como Lola e As Donzelas de Rochefort, pérolas incontornáveis, como A  Baía dos Anjos e A Princesa com Pele de Burro, títulos menos conhecidos, alguns deles até inéditos no circuito de exibição português, como as curtas-metragens O Belo Indiferente (escrita por Jean Cocteau) e A Lúxuria, os musicais Um Quarto na Cidade e Parking, e até a única aventura americana do cineasta francês, Model Shop, filme em que Anouk Aimée volta a vestir o papel de Lola. Demy é considerado um dos cineastas que melhor combinou o musical e o melodrama, o escapismo e artificialismo da tradição do musical de Hollywood com um estilo próprio, simultaneamente fantasista e realista, estilisticamente muito marcado pela cor e pelas formas. Por tudo isso, parte considerável da sua obra permanece intemporal, continuando a conquistar gerações e a influenciar não apenas a sétima arte, mas também outras áreas artísticas, a moda e o design. FB

Banzo

de Margarida Cardoso

Estreia nos cinema a 23 de janeiro

Margarida Cardoso, realizadora que aborda frequentemente nos seus filmes questões pós-coloniais da história recente de Portugal, está de regresso ao continente africano para contar uma história ambientada no início do século passado. A narrativa, filmada em São Tomé e Príncipe e Portugal, relata a luta de Afonso, um médico português que parte do Congo para uma plantação de cacau numa ilha tropical africana, com o propósito de curar um grupo de serviçais “infetados” pelo Banzo, a nostalgia dos escravos, que os leva à morte por inanição ou suicídio. Consciente do horror e das condições de vida a que são submetidos, Afonso, tenta uma solução para a dor que os mata, mas com o tempo percebe que esta é impossível de concretizar. Nestas circunstâncias de desesperança e violência é revelado o lado cruel daqueles que mandam e a impotência daqueles que, embora não concordem com a realidade, pouco podem fazer. O elenco conta com Carloto Cotta, Hoji Fortuna, João Pedro Bénard, Gonçalo Waddington e Sara Carinhas. AF

Fausto e Mephistopheles, Eugène Delacroix, 1827–28, The Wallace Collection

Cenas do Fausto de Goethe

de Robert Schumann

Teatro Camões, a 25 de janeiro

Robert Schumann, grande compositor romântico alemão, viveu entra a genialidade e a loucura, assombrado por um longo historial de desequilíbrio emocional que culminaria numa doença mental incurável. Depois de uma tentativa de suicídio por afogamento no rio Reno, morre num asilo psiquiátrico em 1856, onde passa os dois derradeiros anos de vida. É compreensível o fascínio que Schumann sentia pelos debates internos de Fausto, pela luta entre o bem e o mal e pela redenção final. Em 1844, inicia a composição das suas Szenen aus Goethes Faust que combinam, com mestria inigualável, o intimismo do Lied, a solenidade da música sacra, a coloquialidade da conversa entre Fausto e Margarida, a grandiosidade e o dramatismo da ópera e o sublime da escrita coral ao serviço de um dos textos maiores da língua alemã, iluminando-o mesmo nas suas passagens mais sombrias. Ana Quintans, André Baleiro e Tristan Hambleton interpretam o trio de protagonistas. A Orquestra Sinfónica Portuguesa é dirigida pelo maestro titular Giampaolo Vessella. LAE

No Yogurt for the Dead

de Tiago Rodrigues

Culturgest, de 19 a 23 fevereiro

Tiago Rodrigues, que desde 2021 dirige o Festival de Avignon, vem este ano a Lisboa apresentar dois espetáculos. Já em janeiro, de 10 a 12, estará no Centro Cultural de Belém com Hécuba, Não Hécuba, a sua primeira colaboração com a Comédie-Française, em que entrelaça a história da viúva de Príamo com a de uma atriz que, nos dias de hoje, interpreta essa personagem. Mas é em fevereiro que, logo depois da estreia em Ghent, na Bélgica, traz à Culturgest a sua nova criação, No Yogurt for the Dead. A ideia para este espetáculo surgiu quando Tiago se demorou a olhar para o caderno que o pai, o jornalista Rogério Rodrigues, preencheu nas últimas semanas de vida, já hospitalizado. Era suposto ter deixado ali registadas as experiências no hospital e memórias de vida, mas havia apenas rabiscos. “Suponho que tenha tentado escrever, mas a sua mão estava demasiado frágil. Talvez pensasse que estava a escrever, numa espécie de estado de sono, mas nada saiu para o papel”, diz o encenador, “os gatafunhos eram o retrato da impotência, desenhos do fim”. Apenas o título desse último artigo estava anunciado pelo pai: No Yogurt for the Dead. Tiago decidiu criar uma peça sobre uma voluntária que ouve as histórias de um homem prestes a morrer e sobre o livro que ele nunca chegou a escrever. Chamou a esse homem “Longbeard, o correspondente no Hospital Amadora-Sintra”. Em palco, junta as atrizes Lisah Adeaga e Beatriz Brás, Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves. GL

Parthenope

de Paolo Sorrentino

Estreia nos cinemas a 27 de fevereiro

Sorrentino filmou Parthenope para responder à questão do que seria para si o sagrado. O cineasta, onde a cada nova realização se procura sempre “a grande beleza” (título da sua obra mais celebrada, La grande bellezza de 2013), recorre a duas atrizes (a jovem Celeste Dalla Porta e a histórica Stefania Sandrelli) para filmar as memórias de uma mulher de 73 anos, cujas ressonâncias míticas do seu nome são como um passe de sedução para a tomarmos pela personificação de uma cidade: Nápoles, a cidade de Paolo Sorrentino. Uma mulher faz o balanço da sua vida, dos seus amores, das suas ilusões e desilusões, tal como o havia feito Jep Gambardella no outro filme citado de 2013. Sorrentino diz que, para ele, o sagrado é o que permanece na memória de cada um, mas os seguidores do seu cinema podem muito bem confundir sagrado e beleza, que estarão na mesma linha de raciocínio do autor napolitano. RG

António Dacosta, “Diálogo”, 1939

Museu de Arte Contemporânea Armando Martins

Rua da Junqueira, 66

Inaugura a 22 de março

Sob o mote The House of Private Collections (A Casa das Coleções Privadas), o MACAM não mostrará apenas a coleção pessoal de arte do seu fundador, o empresário português Armando Martins, que inclui mais de 600 obras, desde o final do século XIX até aos dias de hoje, mas convidará também outros colecionadores privados a mostrar as suas coleções, reforçando a missão de as tornar visíveis ao público. Instalado no edifício histórico do Palácio Condes da Ribeira Grande, que remonta ao início do século XVIII, o projeto reunirá um museu e um hotel. A reabilitação do espaço, a cargo do estúdio de arquitetura português MetroUrbe, procurou uma relação harmoniosa entre o palácio e a extensão contemporânea que alberga o programa de exposições temporárias do museu. A fachada desta nova ala – premiada na edição deste ano dos Surface Design Awards, em Londres – é revestida por uma série de azulejos tridimensionais da autoria da artista e ceramista Maria Ana Vasco Costa. LAE

Tattoos and Shadows, 2000 ©Jeff Wall. Courtesy White Cube

Jeff Wall

Curadoria de Sérgio Mah

No MAAT, a partir de abril

A primeira exposição individual em solo lisboeta do artista canadiano Jeff Wall (Vancouver, Canadá, 1946) chega ao MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em abril. São 60 fotografias, produzidas ao longo de mais de quarenta anos, que ocuparão todo o espaço expositivo do MAAT Gallery, naquela que será uma das mostras mais vastas realizadas até hoje sobre o trabalho do consagrado fotógrafo e artista visual. A obra de Wall articula o essencial da fotografia com elementos de outras formas de arte – incluindo pintura, cinema, teatro e literatura – numa forma complexa que ele chama de “cinematografia”. As suas imagens vão desde reportagens clássicas até construções e montagens elaboradas, geralmente produzidas numa escala maior, tradicionalmente identificada com a pintura. Em 2002, o artista foi galardoado com o Prémio Hasselblad e várias revistas especializadas têm-no colocado na lista dos dez artistas mais importantes da atualidade. ARV

©Ciries Gallery

O Salvado

de Olga Roriz

São Luiz Teatro Municipal, de 9 a 12 julho

Em 2013, Olga Roriz estreou A Sagração da Primavera – foi o seu último solo, que dançou nesse ano e no seguinte, antes de uma doença a ter impedido de continuar a dançar. Quase 11 anos depois, voltará a pisar o palco sozinha. Há muito que o queria fazer e, durante esta década, nunca deixou de pensar no que poderia fazer como intérprete, enquanto foi criando cenografias para os seus bailarinos. Imaginou um solo que fosse uma “autópsia de uma bailarina após a morte” ou um “espetáculo sobre a impossibilidade de uma bailarina se mexer”. “É inesgotável, o olharmos para nós próprios”, acredita. Será em julho de 2025, no Teatro São Luiz, que dará finalmente (o seu) corpo a esta ideia de se pôr, de novo, no centro da criação. Chamou-lhe O Salvado, prometendo “um novo impacto consigo mesma” e predispondo-se a procurar respostas para uma imensidão de perguntas: “Agarrando na vida como um naufrágio, o que se consegue salvar desta catástrofe? Que objetos, que coisas se livraram do perigo? O que consegue uma vida de sete décadas, ainda preservar? O que traz agarrado que se consiga ainda desprender e tornar matéria? O que não morreu ainda nela? Do que se conseguiu libertar? A sua coleção de sapatos… Os seus vestidos… O seu humor… Que corpo é agora o seu? Que histórias terá ainda para contar? Tudo suspenso tudo no ar…. Tudo suspenso tudo na memória… Na nuvem… in the cloud. Ouve-se a abertura das suas músicas preferidas. Será que se ouve a sua voz?” Uma pesquisa interior, que é sempre uma luta partilhada, como diz. GL

Audição

Teatro Praga

Sala Estúdio Valentim de Barros/ Jardins do Bombarda, de 11 a 20 julho

Pedro Penim, diretor do Teatro Nacional D. Maria II e fundador e ex-diretor do Teatro Praga, fez a piada na apresentação da programação: sim, estava a programar a sua antiga companhia de teatro; e, sim, não tinha como não o fazer nestes redondos e importantes 30 anos da Praga. A estreia do novo espetáculo faz-se na também novíssima (a inaugurar em março) Sala Estúdio Valentim de Barros, nos Jardins do Bombarda, que o Nacional se prepara para ocupar durante 2025 – um armazém que serviu de sala de ensaios aos Praga durante anos, até terem sido obrigados a sair. Audição apresenta-se como aquilo que o nome indica: “um casting onde só pode haver engano, porque o que se procura não existe”. O coletivo, dirigido hoje por Cláudia Jardim, André e. Teodósio, Diogo Bento e José Maria Vieira Mendes, sabe que o espaço que encontrará não é o mesmo que deixou há quase duas décadas, sabe que nem tempos nem contextos são também os mesmos, que tudo hoje já não é como era – nem mesmo o Teatro Praga. “Este regresso sem retorno é o mote”, escrevem, garantindo que entrarão sempre no espetáculo errado. “Nesta criação, o Teatro Praga faz-se ouvir pelo que foi e pelo que é: um coletivo simultaneamente dentro e fora de uma ideia de teatro, procurando uma relação de resistência específica com os lugares, os corpos e as disciplinas”, sublinha-se na apresentação da peça, “sem limite de idade, exigências físicas ou profissão, esta audição tem tudo para correr mal, uma vez que é isso mesmo que se quer. É no desencontro entre a expectativa e o presente, entre passado e futuro que se constrói esta Audição. E porque audição é também fazer-se ouvir, nesta criação encontra-se o eco das vozes como fantasmas. É que em 30 anos também se esculpem os tímpanos.” GL

©José Frade/ EGEAC

Percorrer Lisboa

Museu de Lisboa (Palácio Pimenta, Casa dos Bicos, Santo António, Teatro Romano, Torreão Poente)

De janeiro a dezembro

Ao longo de todo o ano, o Museu de Lisboa promove um conjunto de percursos orientados e temáticos que dão a conhecer a cidade. Memórias, histórias, épocas, arquitetura, arte e urbanismo são os temas que ajudam a compreender e a descobrir diferentes locais e vivências da capital. Em 2025, o programa começa, a 12 de janeiro, com o percurso A Cidade Romana, e prolonga-se até 13 de dezembro. No primeiro mês do ano realizam-se ainda os percursos Lisboa Africana (25 de janeiro), que revela um território marcado pela invisibilidade da presença africana, e A Cidade de São Vicente (26 de janeiro), onde se descobrem as vicissitudes por que passaram as sepulturas e as relíquias do Santo. AF

Quando, há mais de uma década, os dramaturgos Robert Icke (autor de A Médica, em cena no Teatro da Trindade) e Duncan Macmillan (conhecido do público português pela peça de sucesso Pulmões) tomaram a decisão de adaptar ao palco Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, procuraram puxar o tapete a leitores cujo clássico de George Orwell não fosse propriamente desconhecido. A premissa passou por tornar o futuro que o escritor escreveu em 1948 sobre factos ocorridos em 1984, um passado longínquo num vindouro ano para lá de 2050. Será por essa altura que um grupo de pessoas se junta para ler o diário de um tal de Winston Smith.

Surpreendentemente ou não, sobretudo para os mais familiarizados, Icke e Macmillan não subverteram nada do que seriam as intenções de Orwell ao escrever o livro. A dupla decidiu, isso sim, colocar o ponto de partida da sua adaptação do romance no “apêndice” do livro (note-se que algumas edições nem sequer o trazem), denominado Os Princípios da Novilíngua. Aí, de um modo mais académico do que romanesco, são operacionalizadas as regras impostas pelo governo totalitário da Oceânia (onde se desenrolam os factos narrados) para substituir a “velha língua” (no caso, o inglês padrão) pela dita Novilíngua, meio de expressão compatível com a mundivisão do partido único no poder, capaz de impossibilitar qualquer forma de pensamento divergente, e que passaria pela supressão de um conjunto de vocábulos, palavras, significados e termos considerados “indesejáveis”. Curiosamente, a referência ao ano de 2050 não é de todo inocente, já que é aquele em que se estimava ter a Novilíngua substituído por completo a Velhilíngua.

A partir desta perspetiva, nota Pedro Carraca que agora encena 1984 de George Orwell, Icke e Macmillan transferem o protagonismo do personagem de Winston Smith para “o romance em si mesmo”. Ou seja, segundo o encenador, “quando pensamos que estamos a ver esta peça no futuro, futuro esse que é moldado também pela existência do próprio livro em 1984, tiramos o personagem do centro e o protagonista passa a ser o livro em si”. Portanto, “aquilo a que assistimos é à história, que não sabemos se verdadeira, de Winston Smith”. Mas, simultaneamente, também é “a história do próprio romance ao longo do tempo decorrido desde que foi escrito, e de como é que esse livro contribuiu ou não para alterar o futuro”.

“O Grande Irmão está sempre a ver-te”

No imaginário de muitos leitores, o romance de Orwell projeta invariavelmente a imagem do “Big Brother/Grande Irmão” nos chamados “tele-ecrãs” presentes em todas as dimensões da vida pública e privada de cada cidadão. Na Oceânia, um dos três super-Estados beligerantes em que o mundo se organizou, é essa entidade não necessariamente humana (o livro é bastante ambíguo nesse aspeto, embora refira a figura de um homem de meia-idade com um farto bigode) que simboliza a liderança omnipresente e omnisciente do partido único num Estado totalitário que tudo vê e tudo escuta.

Ao pensarmos em nós, neste século XXI, “parece que George Orwell previu bem o que iria suceder”, observa Carraca ao constatar ser praticamente impossível estar hoje numa sala sem que estejam presentes “uma câmara de gravação e um microfone, algo que qualquer dos nossos telemóveis tem”. No fundo, “conseguimos ir mais além,  e até de uma forma muito mais subtil”, já que cada um de nós, passivamente, se encarrega de ser hipoteticamente vigiado, escutado e localizado.

Na realidade imposta pelo Estado totalitário, se a vigilância é a arma mais imediata, o domínio do pensamento é absolutamente estratégico para o exercício do poder absoluto. Logo na primeira cena da peça de Icke e Macmillan encontramos Winston Smith a iniciar o diário, e uma voz vaticinando: “se o descobrissem, condenavam-no à morte”. Este comum funcionário do Ministério da Verdade, onde tem como tarefa primária manter a coerência entre os “factos” e o discurso oficial, sabe que está prestes a cometer um “crimepensar” a partir do momento em que fizer correr a caneta no papel. Atenta, estará a Polícia do Pensamento e, quando o apanhar, como anuncia a voz, “os registos de tudo o que tinhas feito eram apagados, a tua existência passada era interditada e depois votada ao esquecimento. Eras eliminado, aniquilado: ‘despessoalizado’ era o termo utilizado.”

Provavelmente, nada disto aconteceu

Embora o futuro para lá de 2050 pareça muito pouco radioso, ao avançar pelas páginas do diário de Winston Smith, os membros do clube de leitura deparam-se com um passado absolutamente tenebroso e uma violência inaudita. Em 1984, ano a que remonta a narrativa, a Oceânia é governada por um partido único que professa o SOCING (abreviatura de “socialismo inglês”). O partido encontra-se dividido no “partido interno”, uma elite que se assume como o cérebro do Estado; e o “partido externo”, a grande mole que faz funcionar o regime, e no qual milita Winston Smith. O resto da população, esmagadora maioria, é definida como a “prole”, sendo encarada pelo partido como uma classe sub-humana.

O Estado está estruturado em quatro grandes ministérios: o da Verdade, onde trabalha Winston, cuida dos assuntos relacionados com a informação, a história e o ensino; o da Paz trata os assuntos da guerra (que é permanente); o do Amor impõe a lei e a ordem moral e social; e o da Riqueza dedica-se às questões da economia. Do ponto de vista ideológico, o partido patrocina três slogans essenciais, baseados no princípio fundamental do “duplopensar”: “Guerra é paz”, “Liberdade é escravidão”; “Ignorância é força”. Ou seja, até à implementação integral da Novilíngua, é necessário dar às palavras um sentido duplo, ou até inverter o seu significado original (a exemplo, o Ministério do Amor é responsável pela tortura, o da Paz faz a guerra ininterruptamente, etc.).

Como é comum numa ditadura (ou em regimes que, nunca se sabe, podem caminhar para o ser), o “inimigo externo” nunca é suficiente, por isso, é essencial um “interno”: em Oceânia, o merecedor de uns obrigatórios “dois minutos de ódio” diários dá pelo nome de Goldstein, personalidade que outrora esteve quase ao nível do “Grande Irmão” na hierarquia do partido, mas que por ligações a atividades ditas “contra-revolucionárias” acabou condenado à morte. Supostamente em fuga, Goldstein lidera uma frente de resistência e é o provável autor de um livro onde expõe todas as mentiras do regime e aponta as suas fraquezas, sendo considerado a “bíblia” da fraternidade oposicionista ao partido.

Ora, tudo isto chegará aos membros do clube de leitura como parte do diário de Winston Smith, tal como a história da sua tórrida e proibida relação amorosa com Júlia e da cumplicidade conspirativa com O’Brien, um enigmático e dúplice membro do “partido interno”, que lhe fornecerá o secretíssimo livro de Goldstein. Para infelicidade de Winston Smith, a leitura do livro nunca será concluída, pois a traição reserva-lhe um tortuoso e vil caminho para aprender a amar o “Grande Irmão”.

Quando concluem a leitura do diário de Winston Smith, a generalidade dos membros do clube de leitura é dominado pelo sobressalto causado por tantas respostas estarem ainda por revelar. Certo que, ao contrário do que previa o partido (derrubado ainda antes de 2050, segundo reza a história), não se expressam na Novilíngua. Por isso, será que, em 1984, tudo era mesmo assim? E porque se diz que Winston Smith nunca existiu quando pode ter sido “despessoalizado”, termo usado pelo partido para apagar alguém da história? O que é então este livro que estiveram a ler? Será ele o verdadeiro livro de Goldstein? Ou uma obra colaborativa escrita a várias mãos?

“E se o livro não for mais do que uma manipulação do partido”, pergunta, no final de um ensaio, Pedro Carraca, acompanhando o sobressalto das personagens. Talvez o melhor seja cada um de nós procurar respostas após ver 1984 de George Orwell. Depois de Aveiro e Seixal, esta criação dos Artistas Unidos passa por Guarda (25 de janeiro), Póvoa do Varzim (1 de fevereiro), Penafiel (7 e 8 de fevereiro) e Estarreja (15 de fevereiro), antes de chegar a Lisboa, mais precisamente pelo Centro Cultural de Belém, de 21 a 23 de fevereiro de 2025. Os bilhetes estão já à venda.

[data extra no CCB a 24 de fevereiro às 20 horas]

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