O genérico final acaba. Acendem-se as luzes ao mesmo tempo que o velhinho projetor de 35mm se apaga. O público já abandonou a sala e cabe agora a dois trabalhadores deste cinema, situado algures numa pequena cidade do Massachusetts, varrer restos de pipocas, recolher copos e garrafas e dissimular vestígios de lixo indecifráveis. Este é o quotidiano laboral de Avery, o novo funcionário, negro e apaixonado por filmes (ao ponto de o definirem como um “cineasta snob”) e do “veterano” Sam, mais velho, derrotado, sem expetativas, e que, quando confrontado sobre o que gostaria de fazer na vida tanto hesita, respondendo, sem grande convicção, “ser chefe de cozinha”.

Acima, na cabine de projeção, está Rose. Também ela começou a varrer lixo, lá em baixo nas coxias, ao lado de Sam, mas depois foi promovida a projecionista. Goza da fama de ser lésbica, mas nem por isso parece deixar de surtir um enorme magnetismo sobre os homens (que o diga Sam, e também, apesar dos fantasmas, Avery). Gostaria de poder deixar este emprego mal pago, mas, há uma renda de casa para pagar. Aliás, para colmatar tão pouco vencimento, sustenta com Sam um esquema de revenda de bilhetes a que chamam “dinheiro para o jantar”. E no qual Avery terá de alinhar…

”Esta é uma peça que analisa as diferenças sociais a partir das possibilidades de futuro das pessoas.”

 

Escrito no apogeu do digital, numa altura em que os velhos projetores de película se transformaram em peças de ferro velho, O Cinema (The Flick, no original) estreia-se nos palcos portugueses depois de ter valido à dramaturga Annie Baker o Prémio Pullitzer, em 2014, e um Obie Award, um ano antes, e de se ter tornado um dos grandes sucessos recentes off-Broadway.

“É incrível como os autores norte-americanos atuais permanecem praticamente desconhecidos entre nós”, observa o encenador Pedro Carraca ao explicar-nos que o texto lhe chegou às mãos através de Francisco Frazão, programador de Teatro da Culturgest. É, precisamente, a Culturgest que lança aos Artistas Unidos o desafio de o encenar. E Pedro Carraca assumiu-o, ciente que é, “pelos ritmos e pelas tensões dissimuladas, um texto muito diferente de todos aqueles que fiz.”

“Acima de tudo, é uma peça que analisa as diferenças sociais a partir das possibilidades de futuro das pessoas”, refere. “Fá-lo de um modo subtil e melancólico através de três personagens que sobrevivem no inferno que é o seu local de trabalho. Sublinho isso, introduzindo uma outra personagem: o lixo que cai no chão a todo o instante”. Carraca lembra que, em tempos, passou por uma experiência semelhante quando trabalhou numa fábrica de vidro. “Vivia não só a rotina, mas também o medo de falhar e de isso implicar uma penalização no meu vencimento. Tanto o Sam como a Rose vivem esse inferno porque a sua própria sobrevivência depende do que ganham naquele cinema.”

Avery, o afro-americano cinéfilo de 20 anos “é o único dos três que tem reais perspetivas de futuro para lá daquele emprego”. Aliás, o pai de Avery é professor de Semiótica e o que move o mais jovem dos três é, precisamente, o amor pelos filmes e a crença quase romântica de que só existirá cinema se os velhos projetores de película sobreviverem ao digital. Isso justifica que ele ali esteja, removendo lixo enquanto ambiciona subir uns degraus e ocupar a sala de projeção.

Para lá do retrato de uma certa classe trabalhadora, a peça de Baker é também uma homenagem ao cinema, a grande arte popular do século XX. A autora pauta todo o texto com referências e citações a filmes, desde clássicos a sucessos de época, como se Jean-Paul Belmondo em Pierrot Le Fou pudesse dialogar com Samuel L. Jackson em Pulp Fiction, ou Jeanne Moreau em Jules et Jim o pudesse fazer com Kim Catrall em Manequim. Em pleno século XXI, no triunfo do digital, e num cinema que aguarda lentamente pela última sessão.

Quem tem acompanhado o trabalho de Mónica Calle desde os anos da Casa Conveniente, primeiro na Rua dos Remolares, depois na Nova do Carvalho e, mais recentemente, na Zona J de Chelas, notará, em Ensaio para uma cartografia, a falta da palavra dita que toca o corpo e a alma daquele modo muitas vezes dilacerante que fazia dos seus espetáculos experiências únicas, muitas vezes radicais. Neste espetáculo, há palavra mas em off, sendo o essencial o corpo, as suas fragilidades e limitações e, no limite, a sua capacidade de superação. É, aliás, e como refere a atriz e encenadora, um trabalho à sombra da figura de Luna Andermatt, nome maior da dança portuguesa, com quem trabalhou em Iluminações, quando dirigiu a Companhia Maior.

“Esta peça resulta de um tempo estendido marcado pela partilha e pela cumplicidade entre todas estas atrizes”, sublinha Mónica Calle, apontando Ensaio como mais uma etapa numa cartografia que começou a ser traçada após a reencenação, em 2012, de A Virgem Doida, ainda no Cais do Sodré, e com os itinerantes Sete Pecados Mortais, de Brecht, em 2014. São, aliás, essas peças que começam a cimentar um elenco, tornando a chegada à Zona J de Chelas, à atual Zona Não Vigiada/Casa Conveniente, um processo para “a construção de uma família, de uma casa”, à semelhança da odisseia das duas irmãs protagonistas da peça de Brecht.

Assim, “a casa” constrói-se caminhando, e o caminho que em palco Ana Água, Carolina Varela, Cleo Tavares, Inês Vaz, Joana de Verona, Marta Félix, Míu Lapin, Mónica Garnel, Silvia Barbeiro, Sofia Dinger, Sofia Vitória, a própria Mónica Calle, e ainda Carla Bolito e Ana Montereal, percorrem, é marcado pelo esforço extenuante da repetição e da exposição da fragilidade (mais do que a dos corpos) perante aquilo que as afasta de “zonas de conforto”, como a dança em pontas ou a execução de um andamento da Sétima Sinfonia de Beethoven.

Por tudo isto, Ensaio para uma cartografia é um work in progress, onde a falha e o erro penetram a pele, com dor e suor derramado, como parte de um caminho feroz, violento, muitas vezes esgotante, e onde apenas a dedicação e o compromisso à arte, que a dado momento do espetáculo a voz de Leonard Bernstein aponta, parecem poder levar a um sítio que possamos chamar “casa”.

Na sua segunda temporada, o projeto Boca Aberta tem vindo a levar o teatro aos jardins-de-infância da rede municipal de Lisboa, encantando com as suas histórias pejadas de imprevisibilidade e aventura esse público tão exigente que vai dos três aos cinco anos de idade. Integrado na programação infanto-juvenil Cresce e Aparece, do Teatro Nacional D. Maria II, o Boca Aberta convida agora as crianças a virem ao teatro. A 11 de março, estreia Isto Não é um Sonho?, um espetáculo onde “os sonhos são as brincadeiras do sono, e as aventuras de quem sonha acordado”.

“Neste espetáculo criamos um lugar entre o sonho e a realidade e cultivamos a dúvida, dai a interrogação: Isto não é um sonho?”, explica-nos a encenadora Catarina Requeijo que, depois de uma recolha de textos feita pelas escritoras Inês Fonseca Santos e Maria João Cruz, as transforma em aventuras de palco. E quem serão os simpáticos amiguinhos que nos levarão à aventura? Sem quebrar o mistério, Catarina Requeijo desvenda que, neste espetáculo, estará “o Escaravelho, uma deliciosa personagem criada pelo escritor Manuel António Pina, e três carteiros sonhadores que viajam através das cartas que levam a vários sítios do mundo, numa alusão ao filme Escola de Carteiros”, do cineasta francês Jacques Tati.

Posteriormente, a partir de 29 de abril, um novo espetáculo vai pôr os miúdos de Boca Aberta. Chama-se Isto é uma Viagem! e, tal como em Isto não é um Sonho?, as interpretações estão a cargo de Carla Galvão, Lucília Raimundo, Sandra Pereira e Vítor Yovani.

É “um público muito exigente”, afirma Catarina Requeijo, a encenadora do projeto Boca Aberta. Com quase duas décadas de trabalho em teatro infanto-juvenil, crê “que nunca podemos acreditar estar completamente preparados para este público: não faz fretes, quando não gosta desliga e é absolutamente sincero.”

Com Inês Fonseca Santos e Maria João Cruz, responsáveis pela seleção e colagem de textos que integram as histórias do Boca Aberta, a encenadora assume esta experiência em concreto como “um trabalho constante de tentativa e erro, onde não basta haver coisas muito bem escritas, que parecem ser perfeitas e que, depois, não funcionam”. Sublinha, a exemplo, o humor que se aplica nos espetáculos: “nós pensamos saber quando é que os miúdos se vão rir, mas, às vezes, eles acabam por rir onde nós jamais imaginariamos, e isso é um desafio para os atores que têm de ser capazes de se adaptar numa fração de segundo”.

Adaptação é, precisamente, algo a ter muito em conta num projeto como o Boca Aberta, concebido especialmente para se introduzir no ambiente escolar. “Nas escolas temos de ter espetáculos todo-o-terreno, como lhe costumo chamar, capazes de aguentar tudo, como os barulhos da cantina, o movimento nos corredores, as entradas na sala para dar um recado, etc. Ou seja, têm de ser espetáculos aptos a conviver com o dia-a-dia da escola.”

Mas, agora, o Boca Aberta instala-se no teatro e… o espetáculo muda! “Estes dois espetáculos são pensados para um certo aconchego, por isso diria que são mais misteriosos. Afinal, vamos tratar do sonho”, sublinha. E nada melhor do que o conforto de um espaço tão bonito como o do Salão Nobre do Teatro Nacional D. Maria II para esquecer os tablets ou a televisão e vir viver “um tempo suspenso”, o tempo do teatro “onde se pode parar e ouvir uma história”, e se consegue “um foco único”, algo que Catarina Requeijo acredita ser “fundamental para as crianças de hoje.”

Sempre foram, e gostam de ser, um coletivo à margem. Aliás, a marca de marginalidade está na génese do coletivo (hoje liderado por Miguel Moreira com os bailarinos Romeu Runa, Catarina Félix e Sandra Rosado) desde os primórdios, quando sediou a sua atividade no Espaço Ginjal, na margem sul do Tejo. Não será, portanto, surpreendente – apesar de, nos últimos anos, as criações do Útero terem saltado dos “armazéns sujos da cintura industrial e portuária para as grandes salas (não só de Portugal, como do mundo [The Old King marcou a estreia do coletivo no Festival de Avignon, em 2012]) – que, ao apresentar-se pela primeira vez no Teatro Nacional D. Maria II, e logo na Sala Garrett, o Útero aliasse às marcas próprias do seu teatro/dança um autor só aparentemente improvável: Bernardo Santareno.

Miguel Moreira reconhece essa suposta improbabilidade. Mas, na verdade, O Duelo andava na cabeça do encenador e coreógrafo desde há uma década. Porém, “foi preciso o Tiago Rodrigues [atual diretor do Nacional] convidar-nos a celebrar aqui os 20 anos do Útero para pegar no texto do Santareno, rompendo assim a tendência dos últimos anos, com peças mais coreográficas, totalmente, ou quase, despojadas de texto”.

”Considero Bernardo Santareno um autor ultra contemporâneo”, sublinha Miguel Moreira

 

Mas porque é que só na aparência o teatro de Santareno pode parecer improvável no percurso do Útero? Luiz Francisco Rebelo, na sua História do Teatro Português, ajuda-nos a responder à questão, ao caracterizar a obra do autor ribatejano como oscilante “entre polos (de sinal contrário, mas de força equivalente) de uma fascinação do mal e de uma obsessão de angelismo”, capaz de realizar “a inesperada fusão de temas de raiz popular com as preocupações existenciais mais fundamente sentidas na carne e no espírito do homem seu e nosso contemporâneo”. Com as devidas distâncias, o percurso criativo do Útero (do Ginjal às grandes salas) tem tudo para se sentir confortável no universo de Santareno, que Miguel Moreira considera mesmo “um autor ultra contemporâneo.”

À semelhança de tantos espetáculos criados pelo Útero, em O Duelo sente-se a presença do fetichismo, da ambiguidade sexual, da violência sadomasoquista, do prazer, de almas humanas que mergulham no lado mais negro e oculto de si mesmas. “São, todos eles, temas muito presentes na obra de Santareno”, sublinha Miguel Moreira, ressalvando a sua herança bauschiana: “o contacto que tivemos naquele ano de 1994 [Lisboa, Capital Europeia da Cultura] com as criações de Pina Bausch marcou-nos para sempre”.

O magnifico texto de Santareno, “entre o poético e filosófico e uma crueza quase animal”, penetra num “lugar de espanto, irreal”

 

Assim, o magnifico texto de Santareno, “entre o poético e filosófico e uma crueza quase animal”, penetra num “lugar de espanto, irreal”, como o considera o encenador. “Quisemos um ambiente pictórico, impressionista”, onde os sete intérpretes se movem, habitando uma lezíria imaginada, carregada de toda uma simbologia rural que parece pertencer a um Portugal esquecido, mas “ainda tão presente”. E é ali, entre trevas e nevoeiro, água que cai e terra que suja, que os poderosos oprimem os mais fracos, e os homens ganham uma dimensão animal, sombria. Mas, também, a intensa vontade de se libertarem, como que para fugir ao destino inconjurável enunciado nas palavras de Rosária, a mãe amarga e sofrida, para  o filho Ângelo, no primeiro ato da peça: “Eles são os senhores, filho, e a gente os servos, eles podem tudo e a gente nada.”

Como descobriu esta comunidade de mulheres e o que a levou a fazer um filme sobre este tema?

Em 2012, uma amiga minha, a Sónia Batista escreveu um livro de poesia e num dos poemas havia uma referência a estas mulheres, de uma forma poética e muito evasiva. No final do livro havia uma pequena nota que explicava quem elas eram. Lembro-me perfeitamente de estar a ler o livro, à noite, e pensar: Mas isto existe? Não, isto é uma coisa milenar que já desapareceu. Fui imediatamente procurar na internet. Descobri umas fotos dos anos 50, e nada mais. Pensei: Não há um filme? Se não há, vou eu fazer. Concorri, passados dois meses, a uma bolsa da Fundação Oriente. Em 2013 fui pela primeira vez ao Japão. Visitei uma série de vilas perto de Osaka e Tóquio. A última que visitei foi Wagu, uma vila piscatória, muito pequenina. Houve logo uma grande empatia entre mim e as mulheres. Regressei a Portugal, concorri ao ICA e voltei ao Japão, em 2014, para filmar.

Foi fácil obter autorização para filmar a vida destas mulheres?

Em todas as outras vilas era tudo muito tribal e ancestral, as mulheres eram muito fechadas. Nesta vila da Península de Ise, houve de facto uma grande empatia, principalmente com a Masumi. Ela ajudou muito a minha aproximação às Ama.

Como ultrapassou a barreira da língua?

Não falo japonês, mas isso funcionou a meu favor, e a favor da intimidade. A minha assistente é que fazia a ponte com as Ama, através da língua. Como as Ama não estavam habituadas a falar diretamente comigo, durante as cenas em que estava a filmar elas ignoravam-me, porque era uma presença com quem elas não estavam habituadas a comunicar diretamente. Havia de facto uma relação de proximidade, abraçávamo-nos, mas falar nunca. O que acaba por funcionar a favor do filme.

De facto as personagens raramente olham para a câmara, embora o filme seja um documentário há momentos em que parece tratar-se de uma ficção. Qual é para si a fronteira entre documentário e ficção?

O documentário é sempre uma ficção de alguém. A mim interessa-me esbater essas fronteiras. Ainda estou aprender a fazê-lo. Neste filme isso já acontece, mas gostava de ir ainda mais longe. Quero contar uma história, não estou preocupada se manipulo ou não a história, é o meu ponto de vista. Queria muito contar a história destas mulheres, dirigi-as algumas vezes, mas na maior parte do tempo é espontâneo. Houve algumas cenas que pedi para acontecerem, como a cena do fogo-de-artifício, embora seja algo que eles costumam fazer.

O trabalho das Ama-San é algo extraordinário, pela sua dureza e dificuldade. Mas estas mulheres são no fundo iguais a tantas outras que lutam todos os dias pela família. Esta é também uma história universal?

O extraordinário nas Ama-San é que elas conseguiram subverter a posição da mulher. Num país onde a figura feminina é a gueixa, subalterna, submissa, as Ama-San ganharam um poder, que levou inclusive a que os homens, nos anos 40, 50, 60, não tivessem que trabalhar porque elas sustentavam toda a família. Esta é uma tradição que está a desaparecer, mas as que continuam têm um orgulho e um poder quotidiano que lhes dá uma certa liberdade. Isso fascinou-me. Elas são tão frágeis como fortes. Algo que encontramos nas mulheres de uma forma geral. Esta é também uma história universal. Também procuro isso no cinema. O cinema quando é universal comove-nos.

A câmara filma vários objetos tecnológicos e de consumo que nos remetem para os dias de hoje, se não fossem esses elementos (tablet, telemóvel, comando da televisão, karaoke) esta podia ser uma história de há cem anos atrás. Pretende demonstrar que esta é uma comunidade dividida entre a tradição e a modernidade?

Acho que é um retrato extremamente contemporâneo. Embora, se retirássemos esses elementos tecnológicos, de facto, não havia referência temporal. Mas havendo, acho que retrata o momento histórico que todos estamos a viver: Agarramos a tradição ou evoluímos? Seguimos em frente e esquecemos o passado? As Ama-San vivem esta dualidade. Por exemplo, já não mergulham nuas, isso já não é permitido, usam fatos de borracha. Usam o telemóvel para saber como vai estar o tempo, embora as mais velhas ainda se guiem pelo vento ou pelas nuvens. O número de Ama-San está a descer radicalmente, porque é uma profissão sazonal, muito dura e perigosa, muitas morrem. As novas gerações não querem arriscar.

Ama-San ganhou o prémio de melhor filme da competição nacional no Doclisboa este ano, assim como outros prémios em festivais internacionais. O que representam para si estes prémios?

Representam sobretudo que estamos a trabalhar no caminho certo. Às vezes o trabalho no cinema é tão solitário, principalmente para os realizadores, por vezes não sabemos se estamos tolinhos ou a caminhar no sentido certo. Os prémios representam só isso, não à vaidade que se sobreponha a isso, que é: continua. Há um grupo de pessoas, um júri, um público que gostou também, portanto estamos juntos e isso é muito bom.

As Ama-San já viram o filme?

Já viram o filme e escreveram-me, com grande emoção, a dizer que gostaram e que consideram o filme uma celebração da vida. Achei muito bonito.

Sons icónicos das décadas de 80 e 90 do século XX, introduzidos em riffs bem musculados, começam a propagar-se pela sala do Teatro da Trindade ainda antes do abrir da cortina. Vanessa, uma menina de sete anos, com muita, mas mesmo muita personalidade, fã de Dragon Ball e sucedâneos, não se rende ao que a família e a sociedade lhe reservam. E, por isso, vai à luta.

“Mas afinal porque é que não posso ter uma metralhadora de brincar igual à do meu irmão?”, pergunta-se. Mandam as convenções que tal não seja o brinquedo mais indicado para meninas. Mais a mais, existem tantas bonecas, acessórios de moda e baldes com esfregona nas prateleiras das lojas de brinquedos que até parece mal andar a brincar com uma metralhadora, um brinquedo que, de tão viril, só pode mesmo ser destinado a rapazes.

Vanessa vai à luta parece, num primeiro impacto, estar datado (talvez porque, aqui, os bens ainda se transacionam em escudos e são, hoje, raras as mães que não trabalham fora de casa) mas, “no essencial, há muita coisa atual, sobretudo o tema do condicionamento das escolhas pelo género”, refere o encenador António Pires. “Concluímos que não nos interessava atualizar o texto, até porque o considero uma fabulosa peça de teatro de comédia que, nas suas múltiplas camadas promove a opinião, a reflexão e o debate entre as gerações sobre um problema que se mantém: porque é que cada um de nós, independentemente do género, não pode ser aquilo que quiser”.

Para António Pires “o teatro é o reino do faz de conta, e quem melhor do que os mais novos para o perceber”

 

Luísa Costa Gomes vai ainda mais longe. “Reescrevê-la, atualizá-la, significaria escrever uma peça nova porque, de facto, o mundo mudou muito nestes últimos 20 anos”. Porém, “a questão metafísica do género, do ser que somos, a ideia do acaso que no momento da conceção nos torna homens ou mulheres, essa, continua eternamente intrigante”.

E quando os jovens rapazes e raparigas de hoje tomarem contacto com este mundo de Vanessa, como vão reagir? António Pires assume que, sempre que encena um texto para crianças e jovens, não pensa muito nisso. Afinal, “o teatro é o reino do faz de conta e quem melhor do que eles para o perceber”. Por isso mesmo, Vanessa vai à luta não é, de todo, uma peça naturalista. E é, precisamente, por negar esse conceito de teatro com tanta veemência como o da protagonista estar presa ao rótulo da “maria-rapaz”, que, acredita, este é um espetáculo capaz de ser tão eficaz na promoção do “sentido crítico dos mais novos”.

Interpretado por Carolina Campanela, João Veloso, Cátia Nunes, Hugo Mestre Amaro e Julie Sergeant (que tem uma participação especial deliciosa no papel de uma Fada Madrinha chamada Marina), Vanessa vai à luta tem estreia marcada para 19 de janeiro. A partir de 11 de fevereiro, e até 1 de abril, a peça volta a estar em cena no Teatro da Trindade, sempre aos sábados, com sessão às 16 horas.

Como é que surgiu este súbito fascínio pelas peças de Tennessee Williams, autor que até há um par de anos nunca tinha encenado?

Não diria que tenha sido um fascínio súbito, mas, na verdade, nunca pensei em encenar Tennessee Williams. Só quando percebi que os meus atores, e aqueles de quem gosto, estavam aptos a fazê-lo é que tomei a decisão. No fundo, pus-me como que ao serviço desse elenco  – a Maria João [Luís], o Rúben [Gomes], a Catarina [Wallenstein], o Américo [Silva] ou a Isabel Muñoz Cardoso, que ambicionou durante anos fazer Tennessee Williams.

O que é que este autor tem de tão especial para os atores?

São papéis complexos com que muitos dos atores, legitimamente, sonham, e nem sempre é fácil surgir a oportunidade de os fazer.

E para o encenador? Que motivações acrescidas surgiram?

Pensei, desde a Gata, que era importante devolver Tennessee Williams ao teatro. A maior parte das pessoas conhece estes textos através das adaptações ao cinema que, apesar de muito interessantes, são muito, muito distanciadas das peças. Ao mesmo tempo, há esse lado desorganizadíssimo das suas peças, os seus ritmos e pulsares…

Gore Vidal chegou a confessar-se surpreendido pela forma como Williams escrevia e reescrevia constantemente as peças. É essa desorganização a que se refere?

Williams era um permanente indeciso, com muita vontade de agradar. Consta que vivia, antes da estreia de cada peça, um voraz nervosismo que o levava a escrever novas cenas e a impôr alterações momentos antes de os atores subirem ao palco. Margaret Leighton, que faz o papel de Hannah em A Noite da Iguana aquando da estreia na Broadway, conta isso mesmo. Essa desorganização, resultante do homem atormentado que era, acaba, no fundo, por surpreender quando estamos a trabalhar um texto seu.

Falando agora de A Noite da Iguana. Porquê escolher esta peça que, por sinal, nasceu de um conto que Williams escreveu na década de 1940?

De todas as peças que levámos à cena é a menos estudada. E é radicalmente diferente do conto que Williams escreveu numa pensãozinha boémia do México, mergulhado num estado de profunda depressão. Em 1961, ele desenvolve a peça, recuperando a atmosfera descrita e uma personagem, uma puritana que passa férias na pensão, tendo escrito, ao que se sabe, pelo menos quatro versões. A que usamos é a que faz parte do espólio da Library of America.

Em 1964, John Huston adapta a peça ao cinema, num belíssimo filme protagonizado por Richard Burton, Ava Gardner e Deborah Kerr. Apesar de críptico, o filme não revela propriamente essa “desorganização” que parece marcar a maior parte das obras de Williams…

Como já referi, os filmes são sempre muito diferentes das peças e A Noite da Iguana não é exceção. Aliás, esta peça é muito, muito desequilibrada, talvez porque quase todas as personagens estão em exaustão, a começar pelo protagonista, o Shannon, e acabando na galeria de personagens curtas. A ação passa-se em 1940, ao contrário do filme, que a remete para umas décadas depois e suprime o grupo de turistas alemães que Williams usa para fazer o contraponto entre os que vivem uma crise existencial e uma Europa que se destrói – a Noite do título é, precisamente, a do grande bombardeamento alemão a Londres, que aquele grupo de nazis comemora na pensão mexicana à beira-mar. Aliás, o que se torna crucial na peça é essa ideia de um mundo exangue que não consegue lutar contra o fascismo crescente.

Não deixa de ser surpreendente que Williams, tendo escrito a peça quase duas décadas depois da derrota do nazismo, tenha “criado” esse grupo de nazis num texto que parece ser, sobretudo, sobre pessoas em exaustão.

É uma característica do teatro de Williams. Ele adora colocar as suas personagens torturadas e amarguradas ao lado de personagens grotescas (repare-se nas criancinhas da Gata ou nos fascistas do Doce Pássaro). Ele chamava-lhe “caricaturas à Hieronymus Bosch”.

Pensa que essa presença do grotesco, ainda mais nestes dias que vivemos, dá, de certo modo, uma nova atualidade ao teatro de Williams. Ou, para ser mais preciso, Tenessee Williams é ainda um autor atual?

É datado. Mas, eu também acho que Bach não é rock, é datado, e eu continuo a necessitar dele. Mozart, que eu ouço quase todas as noites, também não vestiu jeans e ainda bem… Não sou doido pelo contemporâneo, até porque acredito que todo o teatro é contemporâneo desde que seja representado. Uma das coisas bonitas do teatro é, precisamente, sentarmo-nos numa sala e ouvirmos vozes de antes, de agora, de longe e de sempre.

Como em todo o teatro de Williams, os protagonistas são personagens sempre fascinantes e que, como o Jorge já referiu, fazem as delícias de qualquer ator ou atriz. Aqui, teremos Nuno Lopes, Maria João Luís e Joana Bárcia a interpretar o trio protagonista…

Os atores é que são decisivos para fazer esta peça e, diga-se, são a minha grande motivação para a encenar. O que é mais belo no Tennessee Williams é essa capacidade extraordinária de construção de personagens capazes de serem identificadas por qualquer um de nós fora das peças. Diria mesmo que Williams foi o maior criador de personagens do teatro do século XX.

É o próprio Rafael Spregelburd que apresenta A Estupidez, peça central (a quarta) da sua Heptalogia de Hieronymus Bosch, como sendo “a explosão sem sentido mas articulada de um motor em plena combustão.” Estruturada “num formato de road movie, mas inconfortavelmente teatral e esteticamente circular”, a peça, passada entre quartos de motel nos arrabaldes sujos e decadentes da luminosa Las Vegas, “é insaciável, grosseira, barroca.” E rápida, vertiginosa, caótica… Em suma, trata-se de um texto que, nas palavras do encenador João Pedro Mamede, “prevê algo de catastrófico”.

Efetivamente, e como sublinha Mamede, é “uma peça-catástrofe para um tempo estúpido”. Não se trata de um acaso o autor argentino ter colocado a ação nos arredores de Las Vegas. São 24 personagens que se movem em palco à velocidade da bola da sorte e do azar numa roleta de casino. Engenhosa maneira de fazer lembrar Tarantino (sobretudo Pulp Fiction) e, acreditamos, Raymond Carver, de onde parecem saídos toda esta panóplia de vigaristas, polícias, apostadores ou mafiosos.

Marius von Mayenburg, autor e encenador na Schaubühne, acentua essa velocidade de casino referindo que “Spregelburd faz virtuosos malabarismos com os géneros mais diversos”. A peça “leva as personagens a correr entre o melodrama clássico, passando pelo teatro de entretenimento e até ao road movie, e enquanto Tchekhov e Tarantino observam atónitos a graça e elegância estrambólica com que cinco atores alternam ente (…) personagens distintas com a rapidez de um raio”.

Mas, o que move estas personagens nesta vertigem oscilante entre caos e ordem a caminho da catástrofe? João Pedro Mamede refere ser “o dinheiro”. O vil metal, a que quase nenhum personagem em A Estupidez passa incólume (e é intelectualmente explorado até à estupidez), alimenta uma economia de casino personificada, também, nos cinco atores (Andreia Bento, António Simão, David Esteves, Guilherme Gomes e Rita Cabaço) durante a representação destas 24 criaturas. “Afinal, as necessidades da narrativa exploram os próprios atores até ao limite”, sublinha o encenador.

A Estupidez estreia a 11 de janeiro no Teatro da Politécnica, e permanece em cena até 25 de fevereiro.

Como soube da morte de Dario Fo?

Estava a ensaiar em Almada [Io terá uma participação especial no novo espetáculo da Companhia de Teatro de Almada, Noite da Liberdade, de Ödön von Horváth] e dão-me a notícia como se me estivessem a convidar para um café. Fiquei destroçada, porque convivi com ele e com a Franca [Rame], dormi em casa deles… Admirava muito a Franca, uma mulher fabulosa. Creio que ele foi esse grande autor porque tinha a seu lado uma mulher como ela.

Refiro Dario Fo porque, provavelmente, o que muitos desconhecem é que foi a Io que o deu a conhecer aos portugueses…

Em 1975, com O Funeral do Patrão. Pouco antes, tinha estado com o meu companheiro, o Eduardo Geada, em Roma e em Milão, e comprei grande parte da obra publicada do Dario. Quando voltámos, decidimos encenar esse texto e, imagina só, o sucesso que por esses dias a peça teve… também, com um título daqueles! [risos] O espetáculo foi filmado e transmitido pela RTP. Mais tarde, em Gubbio, na minha província natal que é Perugia, vou ao encontro dele e conto-lhe a nossa experiência em Portugal com O Funeral do Patrão. É assim que consigo Casal Aberto, peça que o Dario e a Franca ainda não haviam feito, e que eu vou estrear em Portugal em 1984. Foi tamanho o sucesso que corremos o país e ainda fizemos uma digressão por vários teatros de Lisboa.

Falemos agora do espetáculo Poemas na Minha Vida, que estreou em 2009, e que agora fará uma pequena digressão em Lisboa. Como é que o projeto nasceu?

A determinada altura da minha vida dediquei-me muito à poesia, aliás, a poesia acompanha-me desde os sete anos, altura em que comecei a decorar e a dizer poemas. A dado momento, descubro um poema de Jorge de Sena intitulado Carta a Meus Filhos Sobre Os Fuzilamentos de Goya e foi como se rebentasse uma bomba dentro de mim. Se eu me questionava como é que só aos 60 anos é que havia descoberto tal poema, venho a perceber que, de entre os meus amigos e colegas, ninguém o conhecia. Foi assim que surgiu a ideia deste espetáculo, e ao Jorge de Sena juntei o António Gedeão, o Eugénio de Andrade, o Pessoa…

E também os seus conterrâneos italianos…

Claro. E nos seus dialetos originais, com um carinho muito especial para o umbro que me derrete por dentro [risos]. Escolhi assim poemas em umbro do Ezio Velecchi, um poeta camponês que podemos estabelecer alguma comparação com o António Aleixo. Como vivi 12 anos em Roma, e aprendi o dialeto local, não podia deixar de ter um poeta romano…

Ou seja, a Io pretende esboçar uma espécie de autobiografia através das palavras dos poetas que escolheu?

Todos os poemas que estão no espetáculo têm a ver comigo. Ou não fosse eu, Io Appolloni, italiana e portuguesa. É que eu tenho duas pátrias, duas culturas dentro de mim. E sinto-me mais rica do que qualquer outra pessoa por isso mesmo. Os meus primeiros 18 anos de vida foram passados e vividos em Itália; mas estou em Portugal há 51 anos, tenho três filhos portugueses… e, oficialmente, sou portuguesa desde 1975.

Recuando no tempo, como é que uma jovem italiana formada em representação pelo Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma vem parar ao Portugal sombrio do Estado Novo?

Chego aqui em 1965, mas não vim por vir. Por isso é preciso voltar atrás, a 1963, quando acabo o curso e sou convidada a ir ao Festival de Cinema de Veneza, onde tenho a grata alegria de filmar com Pier Paolo Pasolini [Comizi d’Amore estreou em 1964]. Simultaneamente, um produtor espanhol contrata-me para fazer um filme em Espanha. Lembro que ainda fiz uma peça de teatro em Roma e depois sigo para Espanha. As filmagens eram para durar 20 dias e arrastam-se por três meses, o que foi fascinante para uma miúda de 18 anos que se fartou de ganhar dinheiro e viver uma vida de sonho em hotel de cinco estrelas, longe do pai, da mãe, do irmão [risos]… A minha passagem por Espanha ainda foi mais valorizada porque estudei canto e flamenco…

E trabalhou com Juan Antonio Bardem, um grande nome do cinema espanhol que, para situar as atuais gerações, é o tio do conhecido ator Javier Bardem…

É verdade. Mas, o momento determinante para vir parar a Portugal foi ter sido feita uma reportagem fotográfica comigo, em Madrid, que saiu na revista Plateia. À época, eu tinha um agente e o Eduardo Damas [autor e compositor do teatro de revista] contacta-o no sentido de se fazer uma revista em Lisboa. Como uma das minhas ambições era fazer teatro em Madrid, achei que poderia ser positivo para a minha carreira ganhar experiência em Lisboa. E, em 1965, cá estou eu, uma “brasa”, uma mulher linda a dar cor a essa cidade a preto e branco como era Lisboa nessa época [risos].

O que a fez ficar por cá?

A revista teve muito sucesso e eu arrasei, sobretudo devido a um número com o Camilo [de Oliveira] onde eu ficava em bikini com um brilhante no umbigo. A plateia vinha abaixo [risos]. Mas, o que me fez ficar foi, em primeiro, uma paixão arrebatadora pelo Camilo, mas também pelas pessoas, pela sua afabilidade e… pela gastronomia. Sem me ter apercebido disso, já cá tinha raízes, e a partir do momento em que fiquei grávida do meu primeiro filho, em 1968, decidi que estava em Portugal para ficar.

Mas chegou a regressar a Madrid…

Sim, sim. Eu conto isso na minha autobiografia. Depois do sucesso que tive em Lisboa, o meu agente propôs-me uma revista em Madrid. Na altura, já estava com o Camilo e decidi fugir, de comboio… E ele foi atrás de mim! Ainda estreei a revista mas, curiosamente, durante esse curto período emagreci cinco quilos.

Pensa que podia ter feito uma carreira completamente diferente se tem resistido a essa saudade de Portugal e, também, ao amor?

A minha vida sentimental teve sempre um enorme peso e atribuo isso à educação religiosa que recebi da minha mãe, muito ligada à família e aos afetos. A época também era muito diferente e, no fundo, a minha carreira nunca foi mais importante do que ser mãe.

A atriz com Camilo de Oliveira (direitos reservados)

No início da década de 1970 estreia O Vison Voador, um espetáculo que marca indelevelmente uma época, sobretudo, graças a si…

E à minha sensualidade muito natural. Não vou ser modesta, mas eu era, de facto, uma mulher muito sensual, e nessa peça despia-me em cena, mas de um modo muito bonito e subtil. Esse espetáculo fez mais de mil representações e marcou profundamente as pessoas, tanto que, ainda hoje, muita gente se lembra.

Não houve problemas com a censura?

Não, porque naquela época a censura em Portugal era mais política do que de costumes (em Espanha, por exemplo, era bastante diferente). Aliás, recordo um problema com a censura em 1972 quando, numa revista fizemos uma piada sobre o Sá Carneiro [à época, deputado da Assembleia Nacional]. Aí, eles não tiveram contemplações e cortaram.

Mas, apesar de tudo, a Io não aparecia integralmente nua em O Vison Voador.

Só faço nu integral, em 1978, na peça feminista Guilherme e Marinela [de Viveka Melander], estreada no Cinema Satélite [o estúdio do já desaparecido Cinema/Teatro Monumental]. Foi extraordinário o sucesso que a peça teve, sobretudo, devido à minha astúcia. Passo a explicar: eu decidi chamar a atenção por aparecer nua, mas depois apresentava um espetáculo feminista ou, mais do que feminista, um espetáculo anti-machista por excelência. No Porto, tínhamos programado três representações e acabámos por fazer 60. Chegámos a gravar para a televisão, mas não a deixaram ir para o ar.

Nesses tempos a Io era já uma mulher e uma atriz de causas…

Ainda antes do 25 de Abril, depois de me separar do Camilo tive um longo relacionamento com o Eduardo Geada, à época jornalista, um intelectual que me abriu horizontes, sobretudo para as questões políticas. Como sempre fui uma mulher extremamente curiosa, assimilei tudo com uma velocidade tremenda e, quando se dá a Revolução, lá estou eu a integrar as Campanhas de Dinamização Cultural e a fazer parte, pela mão do Rogério Paulo, do Partido Comunista Português.

É uma época em que corre o país fazendo um teatro muito politizado, não é?

Sim, sim. Foram centenas de espetáculos muito militantes, sobretudo sobre a causa da mulher. Foi um período tão, tão lindo, porque todos tínhamos a vontade de ser úteis para transformar a sociedade. E o dinheiro não nos interessava nada.

Nos anos de 1990, deixamos de a ver no teatro e passamos a associá-la a um doce típico italiano, o tiramisu. O que é que aconteceu?

A última peça de sucesso que fiz foi Socorro, sou uma mulher de sucesso, uma comédia musical onde cantava, dançava, enfim… fazia tudo! Depois, vieram os anos do fim dos subsídios pontuais e estive uns dois anos sem trabalhar. Mas, um artista não consegue parar e, se por um lado desenvolvi um sentimento de amor/ódio à profissão, a minha atitude criativa lança-me na doçaria. No início dos anos 90, decido dar a conhecer o meu tiramisu e, como tinha uma cozinha grande, começo a fazê-lo para uma série de restaurantes. A dada altura vou a um programa do Herman José, o Parabéns, e faço o tiramisu em direto. O impacto foi tal que nunca mais parei, e fartei-me de ganhar dinheiro. Costumo dizer que aquilo que tenho hoje devo ao tiramisu, não ao teatro.

A doçaria substituiu o teatro?

De certo modo, sim. Apesar de me fazer falta o teatro, percebi que, ao me dedicar à culinária e mais especificamente à doçaria, estava a servir o público e a transmitir emoções. Isso apaziguou-me… Depois, houve mais do que o tiramisu, e até um doce de manjericão eu criei… [risos]

Quanto tempo esteve sem pisar o palco?

Cerca de 20 anos. Só voltei em 2009, precisamente com os Poemas na Minha Vida.

Vê muito teatro?

Sim, vou muito ao teatro. E quando é mau, vou lá e insulto…

Como um dever?

Não é um dever. É uma necessidade física e psíquica. Ainda há uns dias vi uma peça com uma grande amiga e, no final, fui lá dizer-lhe: “como é que tu te meteste nesta merda?”

De uma penada, como é que poderia resumir o seu percurso?

Diria que a minha vida se resume em quatro etapas. Fui uma sex symbol do teatro comercial em Portugal numa primeira; pouco antes da Revolução de Abril, cresci, amadureci, tomei consciência política e dediquei-me a um teatro de intervenção, assumindo-me como uma voz de defesa da condição feminina e das mulheres; nos anos 90, dediquei-me à doçaria, essa outra paixão artística. Hoje, vivo a etapa da poesia, e o espetáculo que agora apresento em Lisboa demonstra isso mesmo.

Belém era conhecida pela unidade arquitetónica dos seus monumentos, primeiro os edifícios quinhentistas manuelinos, depois os da exposição do Mundo Português. Recentemente criaram-se três novos equipamentos: CCB, o Novo Museu dos Coches e o MAAT. Este projeto teve em consideração essa envolvência e a relação com esses novos edifícios?

Completamente. Este é um projeto altamente contextual, não só porque tira o melhor deste local através das vistas que vai proporcionar, tanto da cidade como do rio, mas é também um edifício se insere de forma subtil para atrair e a conquistar as pessoas, com rampas fluídas, tornando muito natural a relação entre o passeio pedonal e a entrada no edifício. Evidentemente que a linguagem arquitetónica é muito própria, é forte e tem muito a ver com o século XXI. Mas é isso que faz as cidades, essa sobreposição de várias épocas, vários momentos que têm a sua expressão. É por isso que au acho tão interessante o contraste entre a Central Tejo e este novo edifício. Um como património industrial do Século XX e outro que marca o princípio do século XXI. E se cada um tem a linguagem do seu tempo, cada um ganha o seu lugar na história exatamente por ter essa capacidade de usar as tecnologias disponíveis ou os materiais que acabaram de ser inventados. Neste projeto, Amanda Levete teve a preocupação de ter o lioz e a cerâmica a revestir o edifício, para que este se pudesse aproximar mais da história e do património portugueses.

 

Após quatro anos em Nova Iorque, regressa a Lisboa para abraçar este projeto. O que o levou a aceitar este convite?

Não é todos os dias que se abre um museu. E este é um projeto particularmente aliciante para mim, não só porque é em casa mas porque tem uma ambição internacional a partir de Portugal e combina disciplinas e áreas com as quais eu sempre estive envolvido e que acho que importam de sobremaneira nos dias de hoje. A arte contemporânea para mim foi sempre uma paixão, sempre cresci muito ligado à comunidade artística em Portugal. A minha formação é em arquitetura e sempre desenvolvi a minha carreira de curadoria relacionada com a arquitetura de cidade. E depois há as questões da tecnologia que, quanto a mim, estão a impactar as nossas vidas a uma velocidade vertiginosa. Portanto, acho que a combinação destas três áreas é particularmente única, e isso também torna o projeto muito interessante. Não há outro projeto no mundo que tenha esta combinação. Funciona, por isso, como um novo desafio a nível de programação e a nível do modo como se articulam essas áreas, de como os artistas têm refletido sobre essas questões. Sem limitar, obviamente, o campo de trabalho dos artistas, pretendemos entender essas duas áreas, a questão da cidade, da cultura urbana em transformação, a questão dos impactos da tecnologia no nosso quotidiano, como é que essas áreas podem funcionar como filtro para selecionar determinados artistas, determinados projetos e fazê-los funcionar de forma coerente.

“Inserir o MAAT no circuito internacional é um desafio claro, de modo a ser uma plataforma capaz de trazer a Portugal artistas estrangeiros relevantes”

 

Quais são os principais desafios e responsabilidades de dirigir um museu completamente novo, especialmente para quem vai dirigir um pela primeira vez?

Os desafios têm a ver com conseguir competir no meio internacional onde muitos museus já tiveram muito tempo para criar uma reputação e para criar um número de atrativos que os faz funcionar como referências a nível global. Uma Tate ou um MOMA que vêm há dezenas de anos a construir não só uma reputação ao nível da história de arte mas também a nível da construção de um público, do trazer a arte contemporânea a novos públicos. Aí, humilde e modestamente, o inserir o MAAT nessa competição internacional é um desafio claro, até porque há, de facto, uma ambição do museu não funcionar só como uma amostragem da produção local, mas também como uma plataforma para trazer artistas estrangeiros relevantes a mostrar em Portugal. Esta é mais uma oportunidade se criar em Lisboa mais uma instituição onde se mostrem artistas relevantes a produzir projetos novos, como é o caso da Dominique Gonzalez-Foerster com a primeira instalação no novo edifício e muitos outros que se seguirão. Ao nível das responsabilidades, há a relação com a audiência local, pensando que esta programação de exposições que servirá para firmar a identidade do museu será acompanhada de um programa educativo que pretende lançar o debate, que pretende, a partir das exposições e das sugestões que as exposições lançam, continuar um trabalho de criação de uma ligação mais profunda com o público residente e abordar questões que possam ser interessantes discutir. Desde as transformações que Lisboa está a sofrer, como a própria alteração da frente ribeirinha da cidade, que eu acho que são transformações muito positivas, até questões mais universais. Pretendemos trazer cá um importantíssimo antropólogo indiano que vive há muitos anos nos EUA, Arjun Appadurai, que aliás já esteve em Portugal, mas desta vez para falar exatamente sobre o impacto da tecnologia no nosso quotidiano, como é que ela altera os nossos comportamentos, como nos faz mudar a mentalidade e como muda os nosso cérebros. E aí o programa expande-se para outras áreas que tem que ver com uma responsabilidade de democratizar o acesso à arte, tornar a arte mais compreensível, mais abraçável por um público mais generalizado. A responsabilidade é, também, dar a entender que a arte nos pode trazer algo a todos e que não é só uma linguagem estranha e muito elitista, só para um grupo de conhecedores.

 

 

Sabemos que pretende que o MAAT venha a ser uma peça fundamental para pôr Lisboa no mapa da arte contemporânea. Na sua opinião, qual o papel que um museu deve desempenhar numa sociedade, nomeadamente na cidade de Lisboa?

Uma vez participei numa Ted Talk que falava do museu como ativista e ativador. Penso que um museu tem uma responsabilidade que vai para além das suas paredes no sentido de lançar o debate, mas também de ativar as áreas onde estão instalados, através de relações com a comunidade local, com relações com a transformação urbana que está a acontecer, neste caso, na zona de Belém, e esse é o sentido que queremos também dar o MAAT. Com um projeto que, aliás, dá continuidade à logica de trabalho da Fundação EDP, não só nesta área mas a nível nacional.

 

Existe aquela ideia de que os museus são feitos para os turistas. De que forma pretende atrair o público português?

Acreditamos que devemos valorizar a oferta cultural que vamos criar aqui e, portanto, cremos que deve haver um preço de entrada. Esse preço de entrada poderia ser impeditivo, poderia dificultar o acesso a alguns, mas pretendemos manter um valor de entrada que, no fundo, cobre o justo preço àqueles que vêm de fora, que estão habituados a pagar mais pela entrada noutros museus. Assim, criámos um membership, não para ser uma forma de retorno económico, mas sim uma forma de integrar as pessoas e de fazê-las sentir que o museu é delas. Desta forma, através de um preço simbólico anual, as pessoas poderão trazer alguém consigo, os jovens e as crianças já são gratuitos, por isso toda uma família pode vir com cartão de membership, que permite regressar a este espaço tantas vezes quanto desejarem. E exatamente porque o espaço não tem só a ver com exposições e com arte, tem a ver também com o circuito tradicional de visita à Central Tejo e da história que aqui se conta sobre a energia e a tecnologia, e com o usufruir deste espaço com espaço de lazer. Ou seja, todas estas áreas, a própria cobertura do novo edifício que vai oferecer uma nova vista da cidade, é toda uma experiência que se torna acessível a partir da pertença ao MAAT através do membership.

Sendo a arquitetura a sua área de formação, que peso terá ela na programação do MAAT?

No fundo, a arquitetura aqui está enquadrada em dois aspetos. Um é o facto de termos dois edifícios de referência, um para o século XX e um para o século XXI, e que vai trazer as pessoas aqui para os visitar, principalmente o novo edifício que tem uma arquitetura excecional. Depois, o facto de a arquitetura ser um desse filtros com os quais olhamos para o campo da arte contemporânea, para os temas que a arte contemporânea reflete e trabalha. Nesse sentido, vamos ter várias exposições que focam exatamente o modo como os artistas têm visto a arquitetura ou a cidade e vamos continuar colaborações com, por exemplo, a Trienal de Arquitetura, vamos aproveitar o serviço educativo para, sempre que possível, trazer o debate sobre a cidade. Não vamos criar um espaço para monografias de arquitetos, que já existe aqui ao lado na Garagem Sul do CCB que é dedicada a esse tipo de programa, mas vamos ter a presença da arquitetura através desses olhares e através do debate.

 

Como é dirigir uma equipa que tem pela frente o desafio de programar para uma área expositiva de mais de 3000m2?

Tem sido muito excitante e uma das componentes mais gratificantes do projeto. O facto de já haver aqui pessoas com muito valor, juntar-lhes alguns membros novos que trazem outras dinâmicas e outros olhares… no fundo ter conseguido, logo com a primeira inauguração a 29 de julho, galvanizar a equipa para um projeto comum é extraordinário. E acho que a própria equipa tem sido fundamental para assegurar que o trabalho que se aproxima, que é muito grande – vamos fazer 18 exposições por ano – tenha um ritmo constante, mas que mostre o entusiasmo e o empenho de uma equipa que é relativamente pequena para o tamanho do museu, mas que eu acho que está a mostrar as suas capacidades.

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