Em 1991, o jovem coreógrafo e bailarino Francisco Camacho partiu à procura de um “lugar para ser intérprete”, ainda no rescaldo da sua passagem por Nova Iorque, onde até equacionou trocar a dança pelo teatro. Foi na figura do último rei de Portugal, D. Manuel II, que se inspirou para criar a peça que seria determinante para a sua carreira, e onde introduzia o questionamento da forma artística como marca que haveria de perseguir em todos os seus trabalhos.
Ao lado de Fernanda Lapa, que acompanhou todo o trabalho de voz e de composição do personagem (apesar do coreógrafo o considerar “apenas uma figura apontada”), e de Carlota Lagido, que criou o figurino e foi “ajuda indispensável em todo o processo criativo”, Camacho concebeu um solo onde o intérprete (à época, também numa espécie de exílio, porque a situação da dança em Portugal era muito periclitante) se apõe à figura do último monarca português, explorando conceitos de Poder, de masculinidade e de solidão, enquanto testa os limites da dança e do teatro.
O sucesso internacional de O Rei no Exílio – “foi a peça que me abriu as portas” – deveu-se, nas palavras de Camacho, à “natureza coreográfica ser diferente daquilo que se fazia na época. Apesar de haver muita dança-teatro, sobretudo em França, a peça colocava a dança dentro de uma moldura teatral, ao mesmo tempo que promovia a justaposição entre mim, enquanto intérprete, e o personagem.”
Em 2013, com a crise no auge, Camacho regressaria a esta criação. Mas a opção foi fazer dela um Remake, com outros tempos e com menos de si mesmo. “Estou mais velho e mais pesado, e já não me interessa olhar tanto para mim como naquela altura, em que procurava descobrir-me”, confessa. Por isso, O Rei no Exílio – Remake é uma peça mais política, “com menos razão privada e mais razão de Estado, comparativamente à criação original, que até está imortalizada num filme dirigido para a RTP por Bruno de Almeida, filmado num estúdio de Nova Iorque.
Depois de várias récitas em Portugal e no estrangeiro ao longo dos últimos anos, o Remake desta que é considerada uma das obras mais marcantes da dança contemporânea portuguesa, sobe ao palco da Sala Garrett para uma apresentação única, que marca também os 25 anos da EIRA, estrutura dirigida pelo coreógrafo.
Depois de um longo processo de audições, workshops e entrevistas, Joana Craveiro e a equipa do Teatro do Vestido selecionaram cinco atores (Cláudia Andrade, Daniel Moutinho, Lavínia Moreira, Marina Albuquerque e Rafael Rodrigues) que, não tendo vivido a experiência efetiva do Portugal colonial, cresceram com a memória de um tempo em que este “não era um país pequeno”, e se estendia da “metrópole” a África e à India. As marcas dessas raízes vão sendo ilustradas em fotografias de família, em objetos e artefactos, naquilo que se contou sobre o passado, ou nos sabores do óleo de palma africano ou da bebinca goesa, que os atores utilizam como celebração de uma memória indireta, herdada, repleta de afetos e, por vezes, de uma doce nostalgia.
São estas memórias familiares idílicas, produzidas nessas terras distantes outrora portuguesas que, na peça, vão embater contra a realidade da História. Inevitavelmente, vão desfazer-se no mito do “colonialismo brando” que o fascismo sustentou, a reboque de uma historiografia oficial que, só após o 25 de Abril, e muito paulatinamente, vai sendo desmontada e, muitas vezes a medo, revelada (nesse sentido, a par de alguma literatura, é incontornável o papel desempenhado, no teatro, por Joana Craveiro e pelo seu Teatro do Vestido).
Em Filhos do Retorno – um “espelho invertido” do espetáculo Retornos, exílios e alguns que ficaram, acerca dos traumas de quem regressou, ou chegou, à dita “metrópole”, em sequência do processo de descolonização –, o conflito surge, como refere Joana Craveiro, “quando estes atores se confrontam com cadáveres no armário da história das suas famílias”. Como se um fantasma assombrasse as suas vidas para comprometer as boas memórias.
Assim, e se o espetáculo proporciona uma comemoração afetiva feita com tanto do que tão intimo aqueles atores transportam dentro de si, o que se torna particularmente avassalador é vermos como o passado lhes vai pesando, independentemente de qualquer julgamento moral sobre o comportamento dos indivíduos num determinado período histórico. Afinal, com ou sem memórias dum tempo obscuro, com ou sem raízes coloniais, uma questão vai trespassar-nos a todos: de que modo aquilo que somos é condicionado pelo legado familiar inscrito pelas gerações passadas.
Apresentado em 2017, no âmbito do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, Filhos do Retorno estreia agora, em Lisboa, a 21 de junho, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II.
Como começou a tua relação com a música?
A minha relação com a música não foi académica, mas sim afetiva. O meu pai toca violão de forma recreativa desde que eu era criança. Na primeira infância eu olhava para o violão com curiosidade, aí comecei a tocar com dez anos. Ouvia músicas no rádio e tentava tocá-las. Essa foi a minha escola. Mais tarde comecei a estudar, de forma autodidata, com a internet. Comecei a me interessar por teoria musical, harmonia, leitura, etc.
Canções de Apartamento (2011), Sábado (2013) e A Praia (2015) são discos com canções intemporais com a raiz brasileira sempre presente. Como descreverias a tua música?
Ainda me sinto bem com a designação Música Popular Brasileira (MPB). Ainda me sinto bem porque a relação que tenho com a MPB não é uma relação estética, é mais ideológica porque tudo se permite na composição, todos os elementos agregam a música brasileira porque ela é inclusiva, não excluente. Dentro dessa ótica, a minha música é MPB: é música, não é erudita, e é brasileira. Mas, num sentido mais comum, já não seria. Seria, talvez, world music.
Quais são as tuas referências musicais?
Há os discos que me formaram na infância e na adolescência e que ficam no subconsciente: do Caetano Veloso, Tom Jobim, Chico Buarque, João Gilberto, Nirvana, Radiohead, Pixies…
Neste disco juntas-te aos Albatroz, grupo formado por elementos de outras bandas da cena carioca. Porque decidiste chamar este grupo de músicos para este disco?
Essa banda foi-se formando ao longo dos últimos oito anos. Tinha um amigo que me ajudava a produzir um disco, aí um outro amigo indicava um outro amigo, saía um e entrava outro na banda. Eram músicos que iam para estrada comigo tocar as músicas que eu tocava em casa. Ao longo dos anos fomos criando uma identidade musical por causa da estrada, e as músicas foram ganhando uma personalidade própria em palco. Ficavam diferentes do que eu tinha feito no disco, só que soava bem, soava a uma coisa mais orgânica. Teve um dado momento em que eu vi que tinha uma sonoridade específica e eu queria gravar um disco com aquela sonoridade. Então peguei aquele grupo de amigos e botei no estúdio, e a gente interagiu e gravou o disco. Eu queria personalizar esse grupo de pessoas para não ser “Cícero e músicos amigos”.
Porquê Albatroz?
Porque é o maior pássaro do mundo e a banda é grande, são sete pessoas. É um dos únicos pássaros que consegue atravessar o oceano, faria Brasil-Portugal, é intercontinental. A ideia da banda era essa, vir a Portugal.
Como funciona o processo de criação?
O primeiro disco que gravei com banda tinha 15 anos, foi há 17 anos atrás. Depende muito. Há fases em que estou lendo alguma coisa, então eu começo escrevendo muito. Tem fases em que estou ouvindo muita música instrumental, então faço um disco inteiro sem letra e depois vou escrevendo. Às vezes faço colagens, pego um poema e boto em cima de uma música pronta e vejo se funciona. Canção de Apartamento, o meu primeiro disco a solo, foi todo feito mais ou menos de forma parecida: sempre sentado com o violão e um caderno, um processo mais à moda antiga.
Como é a tua relação com a música portuguesa? O que gostas de ouvir?
Gosto de muita coisa. Tive uma namorada portuguesa que me apresentou coisas que estavam fora do meu radar. Comecei a ouvir mais depois da primeira vez que vim a Portugal, já tem um tempo, foi em 2013. Ouço muito Manel Cruz, Capitão Fausto, Carminho, B Fachada… Estou até querendo tocar uma música do Manel Cruz nos shows aqui em Portugal.
Se pudesses escolher um artista português para fazer uma parceria musical, quem seria?
Manel Cruz. Vou tocar no Festival Rock Nordeste no mesmo palco e no mesmo horário que o Manel Cruz, só que no dia seguinte…
A relação entre a música brasileira e a portuguesa tem criado laços cada vez mais fortes. Como vês essa ligação?
Vejo a nação brasileira como se fosse uma continuação das linhas de raciocínio de Portugal, a forma de viver em sociedade, os sentimentos… Ontem estava no apartamento com a banda e com dois músicos portugueses que vão tocar com a gente, e aí começamos a ouvir Luiz Gonzaga, que é um músico brasileiro dos anos 30/40. Aí o trombonista começou a falar que o som era igual a fulano (que era um músico português da mesma época). Aí começaram a mostrar (esqueci o nome agora), mas era a mesma sonoridade, era a mesma poesia, o mesmo jeito de cantar, só que com o ritmo um pouquinho diferente. O processo civilizacional brasileiro é mais um modelo americano, mas eu acho muito parecidas nossas culturas. Nos últimos anos aconteceu uma abertura dos media, a internet começou a botar em contacto o brasileiro com a cultura portuguesa, mais do que através da televisão.
No dia 20 de junho, apresentas o disco no Capitólio. Quais as expectativas para este concerto?
Tento sempre controlar minha expectativa para que seja uma noite agradável, mas eu sempre penso no show de Portugal como se fosse a primeira vez que estou tocando para aquelas pessoas. Já toquei bastante em Lisboa, mas quero muito ter esse sentimento de primeira vez. Sempre tenho impressão de que são pessoas que estou vendo pela primeira vez, um sentimento de descoberta.
As tuas viagens inspiram-te de alguma forma?
Totalmente. Esse disco novo tem uma música que comecei a fazer aqui em Portugal. Chama-se Velho Sitio (sem o acento da língua portuguesa, sitio como lugar). O meio onde estou influencia as músicas que vou fazer naquele período. Todos os meus discos foram assim. São muito ligados ao bairro em que eu moro, ao som do dia-a-dia: se acordo com som de carro ou som de passarinho, se as pessoas são gentis ou não. Isso influencia seu estado emocional, seu interior. Suas questões mais profundamente internas têm a ver com seu vizinho, com o céu que você ’tá olhando.
Li numa entrevista que gostarias de viver em Lisboa. Para quando a mudança?
A minha ideia é vir no começo do ano que vem, logo depois do Carnaval. Março, talvez. Não é uma mudança definitiva, mas sim uma temporada. Meus pais estão com 65 anos, então eu pretendo ficar um, dois anos, mas voltar pra cuidar dos meus pais, em vez de me estabelecer definitivamente aqui. Já fiz a viagem para Lisboa cinco vezes e sinto que está cada vez mais curta a viagem. Eu chego à meia-noite no voo, durmo, e acordo em Lisboa.
Planos para um futuro breve?
Estou sempre pensando na próxima música. Não toco em casa as músicas que eu já gravei, tenho esse problema não sei porquê [risos]. É como se eu tivesse educado filho e ele, de repente, casou. Em casa estou sempre pensando na próxima ideia. Já estou com um monte de música nova, só que essas coisas ao longo dos meses vão melhorando ou piorando. Você grava e acha muito bonito, daí a um mês você ouve e acha horrível. Tem músicas que eu começo a achar horríveis, aí boas de novo, elas ficam mudando todo o ano. Tem algumas músicas que eu acho boas para sempre e algumas que eu acho eternamente chatas.
Partem de lados opostos do palco. Tomam os seus lugares numa espécie de namoradeira suspensa, como um balancé circular. Assumem “uma pose extremamente romântica que se estende a toda a duração do espetáculo”. Ele é o Princípe; ela, Cinderela. Amam-se, odeiam-se, louvam-se, insultam-se, concordam, discordam… Mostram o quanto é difícil amar no quotidiano. Mas, no final, confessam que só pretendem ser felizes. A dois.
Do imaginário de felicidade do amor romântico presente nos contos infantis, Lígia Soares oferece em Cinderela um olhar sobre os dias de hoje, onde as preocupações sociais que estão presentes no quotidiano irrompem na relação entre um casal. “Com este texto procurei perceber o deslaçar dos vínculos e o estado de isolamento de cada indivíduo na sociedade e na família, que resulta muitas vezes na incapacidade de cada um de nós se colocar no lugar do outro”, explica a autora e encenadora.
Ao mesmo tempo, Lígia Soares centra a relação do Príncipe com a sua Cinderela num quadro de conflito de classes, mesmo dentro do casamento. “Atualmente, não há, por norma, tanta oposição como havia no passado contra a união de um casal proveniente de estratos sociais diferentes. Porém, há uma consciência implícita, mesmo entre os cônjuges, da impossibilidade de resolução da assimetria resultante da origem social.”
Perante um espetáculo onde a palavra é torrencial, contrastando com a imobilidade dos atores, a autora deixa antever algum pessimismo, apesar de, no final, derrotada a “relação idílica”, acabar por “vencer o amor maduro”. E assim se vive com “a realidade, como contraponto ao conto de fadas.”
Entre os dias 4 e 18 de julho, o Festival de Almada marca o panorama cultural de Lisboa e da sua cidade vizinha a sul do Tejo, com alguns dos maiores criadores nacionais e internacionais. Como almadense de gema, Rodrigo Francisco, diretor do Festival e da Companhia de Teatro de Almada, convida os lisboetas a atravessar o rio, seja por via da Ponte 25 de Abril ou, “porque é bem mais agradável, e a travessia demora uns meros 11 minutos, por cacilheiro. Depois é só apanhar o metro de superfície e descer na Praça São João Baptista, a 50 metros do palco da Escola D. António da Costa e do Teatro Municipal Joaquim Benite”, bem no coração de Almada. E a razão desta sugestão é simples: será por estes palcos que vão passar as escolhas de Rodrigo Francisco.
Logo no dia 6, o coreógrafo oriundo do Burquina Faso, Serge Aimé Coulibaly apresenta o extraordinário Kalakuta Republik, inspirado no compositor Fela Kuti (criador do afrobeat); dias depois, a 9 e 10 de julho, Jean Bellorini, “um dos novos grandes encenadores do teatro europeu” traz a Almada Liliom ou a vida e a morte de um vagabundo, de Ferenc Molnár, peça que inspirou Fritz Lang e que, nesta magnifica produção, lembra mesmo o ambiente simultaneamente festivo e catastrófico de Casimiro e Carolina de Horváth. Por fim, quase a fechar a grande festa, o premiado encenador de origem húngara David Marton revisita genialmente a ópera La Sonnambula (dias 17 e 18) de Bellini, naquele que “será, com toda a certeza, um dos momentos mais surpreendentes de todo o Festival.”
Um teatro municipal exclusivamente dedicado aos mais jovens é algo inédito em Portugal…
A abertura deste teatro resulta de um investimento da Câmara Municipal de Lisboa na formação de públicos para as artes. Naturalmente, pelas relações com a natureza do próprio edifício, vai ter um foco central na programação performativa, mas haverá um espaço alargado para o seu cruzamento com outras formas e expressões artísticas, como as artes plásticas, a música, o design, a arquitetura, a ilustração, etc. No fundo, a possibilidade de existir um lugar para as crianças, para os jovens e para as artes permite que estes cruzamentos sejam facilitados.
É um desafio acrescido, mesmo para alguém com a sua experiência, programar para este espaço?
Desde 2001, quando me iniciei como programadora no Teatro do Campo Alegre, o meu caminho foi sempre de aprendizagem, , de procura, de tentativa e de erro, tendo a noção de que hoje falho menos. Isto sem ter deixado de arriscar. Aliás, creio que o risco deve sempre fazer parte da natureza da programação artística. Portanto, ao fim destes anos e, sobretudo, após esta longa experiência no Maria Matos, sinto-me preparada para continuar a crescer, a aprender e a fazer boas descobertas. E, claro, estou muito feliz pelo reconhecimento e por acreditarem no meu trabalho.
É muito importante falarmos, precisamente, destes últimos dez anos, ainda mais porque o Teatro Luís de Camões é o próximo passo de crescimento de um projeto que nasce no Maria Matos…
Foram dez anos ao lado de uma equipa incrível, e que deu frutos. Muitas vezes parecemos estar pouco atentos à programação para os mais jovens – de facto, as crianças não votam e não têm voz na opinião pública –, mas a nossa equipa do Maria Matos conseguiu inscrevê-la. Tanto que o nascimento deste novo teatro se deve muito ao Mark Deputter. Por um lado, pela profunda confiança que sempre depositou em mim, por outro, pelo esforço que eu e ele fizemos para encontrar um espaço para que o programa Crianças e Jovens do Maria Matos pudesse crescer. Importa lembrar que, no Teatro Maria Matos, não só coabitávamos num espaço muito partilhado, como era na sala de ensaios, com meros 30 lugares, que nos instalávamos. Parecia quase uma espécie de laboratório onde os espetáculos nasciam para depois crescerem em circulação por outros palcos…
No Maria Matos, a programação infantojuvenil dialogava muitas vezes com as criações para os outros públicos. Agora, não haverá essa âncora…
Esse é o desafio maior, e as equipas são fundamentais, até porque o nosso trabalho se afirma como um coletivo. Tanto que, agora, serei eu e quem me acompanha a quem caberá pensar em tudo. Como já referi, há o foco principal nas artes performativas, do qual surgirá um outro, paralelo, que terá uma relação permanente com o que acontece no palco. Isso poderá ser já testemunhado nos dias de inauguração do Teatro Luís De Camões, a 1, 2 e 3 de junho. A partir das fábulas de Esopo, construímos um programa com um concerto, uma performance, uma exposição, visitas, etc. Teremos também o arranque da Biblioteca do Público – Livros Espetaculares Mesmo!, um projeto com curadoria de Sara Amado que consiste em propor, regularmente, uma pequena biblioteca com livros que existem na órbita do espetáculo em cena e que pretende desafiar o público a procurar novas leituras, e outros entendimentos, sobre aquilo que estamos a ver.
Depois desses dias de inauguração, inicia-se um ciclo muito especial e que recupera, de certo modo, a memória dos últimos anos do Maria Matos…
É verdade. É um ciclo que se vai estender ao longo dos próximos meses e que intitulámos Dez Espetáculos de Dez Anos de Programação para Crianças e Jovens do Teatro Maria Matos, constituído por criações que importa repor por várias razões. Uma delas, para realçar a sua importância naquilo que foi o projeto do Maria Matos; por outro, sentimos que estes espetáculos mereceriam voltar a ser vistos com condições melhoradas, as quais este novo teatro irá permitir. E será muito interessante ver como esses espetáculos, que integravam uma área de programação, se passam a comportar como o foco central e da qual vão derivar outras relações, cumplicidades, encontros e cruzamentos.
E esse ciclo abre com um Shakespeare…
Nem mais. Até porque, diz-se, um teatro deve abrir as suas portas com um Shakespeare. Neste caso será o espetáculo do Teatro Praga Hamlet sou eu, que subirá ao palco a 17, 23 e 24 de junho. E, atenção, até julho, toda a programação é de entrada livre.
Falemos do espaço. Estamos perante um edifício setecentista, recuperado e renovado através de um projeto dos arquitetos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira [que projetaram, por exemplo, o Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada]…
Este teatro tem tudo aquilo que um outro teatro tem, mas em pequenino, como que a dizer para quem se destina. Dito de outro modo, é um teatro à italiana, com uma escala toda ela muito confortável: a sala tem 131 lugares, tem pequenos camarotes que parecem casinhas… é o sítio perfeito para pais e filhos partilharem experiências únicas e criarem memórias afetivas, e efetivas. Que seja, em suma, um local para as boas memórias!
Junho anuncia o verão; cheira a manjerico e sardinha assada. Há arraiais em cada praça e marchas populares a descer a Avenida; os bailaricos entregam sons e cores às ruas e vielas dos bairros típicos. A partir de 1 de junho, começam as Festas de Lisboa. Num ano em que se completam 20 anos da abertura ao público da Expo’98, 120 anos sobre o nascimento do ator Vasco Santana e 40 anos da edição do álbum Refavela, do músico brasileiro Gilberto Gil, as Festas integram estas datas “redondas” num conjunto de eventos que tem como foco primordial a tradição alfacinha e esse património universal que é a lusofonia. Para ficar a conhecer na integra os 30 dias mais festivos de Lisboa, consulte aqui toda a programação.
Até 13 de junho, há livros no Parque Eduardo VII. A 88.ª Feira do Livro de Lisboa conta com 294 pavilhões e com a presença de 626 marcas editoriais/editoras. Os horários de funcionamento do certame sofreram, este ano, algumas alterações: de segunda a quinta, das 12h30 às 22h; sextas, das 12h30 às 00h; sábados, das 11h às 00h; e domingos e feriados, das 11h às 22h. Ponto alto da Feira do Livro continua a ser a iniciativa Hora H (de segunda a quinta, exceto feriados, entre as 21h e as 22h), que coloca alguns títulos a menos 50% do custo normal. Destaque ainda para uma extensa programação infantil, que inclui o programa de sucesso Acampar com Histórias, e para o reforço dos espaços de lazer com um completo e diversificado food court (este ano há mais de 40 espaço de restauração e bebidas). Para saber tudo sobre o dia-a-dia da Feira (eventos, lançamentos, livros do dia e outras informações úteis) clique aqui.
A Naifa terminou em 2014. Passados dois anos, nasceram as Señoritas. Era algo em que já tinham pensado?
Mitó: A ideia nunca surgiu, foi algo que aconteceu. A Naifa acabou, mas nós continuámos a ser amigas e a encontrar-nos em almoçaradas. Primeiro nem pegámos nos instrumentos, não estávamos numa de fazer música, mas depois veio o bom tempo e os dias ensolarados, e a piscina da Sandra fica perto do estúdio [risos]. Um dia, ela mostrou-me umA letra que tinha feito (eu nem sabia que ela escrevia) e eu disse: “Sandra, isto é uma música!”. Fomos então para o estúdio, e a coisa fluiu.
Sandra Baptista: Foi aí que surgiu o vício de, as duas, começarmos a criar. Começámos a sentir a adrenalina, porque isto nos surpreendeu, mas sempre sem intenção de nada. Depois, por culpa de amigos, que nos foram empurrando e encorajando, começámos a pensar em gravar as músicas que andávamos a fazer. Posteriormente veio a necessidade de as partilhar com o público. Quando A Naifa acabou, sentimos necessidade de fazer uma paragem, e nesse momento não imaginava que um dia voltaria à música. Tinha-me divorciado da música, como já tinha acontecido quando Os Sitiados acabaram. Entretanto o João (Aguardela) convidou-me para integrar Megafone, e depois aconteceu o mesmo processo até ir parar à Naifa… A minha relação com a música é de casamento/divórcio constante.
Mitó: Também aconteceu o mesmo comigo. Só voltei a fazer música porque isto que estou a fazer com a Sandra encaixou muito bem comigo. Usando um chavão, “é a minha cara”. Se de hoje para amanhã alguém me convidasse para integrar outro projeto, tenho a certeza que diria não. Não tenho tempo emocional para me dedicar a mais nada. Estou dedicada a isto porque é o que faz sentido para mim.
O processo de composição aqui é muito diferente d’A Naifa, com letras da autoria da Sandra. Como surgiu esta vontade de compor?
SB: Sempre fui instrumentista. Em Sitiados e Megafone compunha as ‘malhas’ de acordeão. N’A Naifa simplesmente traduzia o que o João criava com o baixo. Nunca tinha escrito, isto é um papel completamente novo para mim, daí ser o meu projeto mais íntimo. Mostra a nossa intimidade toda, estamos completamente despidas… As letras são apenas palavras que estão no papel. Depois há um passo importantíssimo, que é a vida que a Mitó lhes dá com a voz, dando corpo a essas palavras.
Não têm medo de estar a expor demasiado a vossa intimidade?
M: Não, porque as letras não são autobiográficas. Quem presta atenção às letras percebe que estamos a dizer coisas de grande profundidade, e com certeza que muitas pessoas encaixam uma série de problemáticas a que damos corpo e voz, mas não são necessariamente coisas pelas quais tenhamos passado. Nalguns casos passámos, mas como assistentes de pessoas próximas.
O facto de ser um projeto de duas mulheres dá-vos mais liberdade para fazer o que quiserem? Se houvesse um homem neste projeto, seria diferente?
SB: Acho que não, desde que sejamos nós a comandar o barco. Temos a liberdade de fazer o que nos der na real gana, e também de convidar quem quer que seja. Não é por ser uma banda chamada Señoritas que não pode haver um Señorito [risos].
M: O projeto parece feminino porque a Sandra é mulher e escreve no feminino, e porque é uma voz feminina a cantar as letras, mas, se atentarmos bem, as letras falam de problemáticas da humanidade. Não é nada muito específico do universo feminino. Talvez dê essa ideia pelo nome que escolhemos, Señoritas, roubado a uma música d’A Naifa.
Ao vivo estão as duas em palco, sem mais instrumentistas. Isso é um desafio?
SB: A ideia aqui é provocar ao público algum desconforto. A partir do momento em que tens apenas duas pessoas em cima do palco, as coisas são altamente intimistas, e não estamos a tocar para uma multidão, mas sim para aquela pessoa em específico, e tentamos chegar a cada uma. Há aqui uma voltinha desconfortável entre nós e o público que se traduz numa união muito específica. Naquela hora estamos todos ali, naquele ambiente. Há pessoas que conseguem entrar neste universo e outras que nem por isso. É para essas pessoas, as 3, 4 ou 5 que entram nesse universo tão imperfeitamente perfeito, que estamos a tocar.
Lançaram agora o segundo disco, As saudades que eu não tenho. Falem-me sobre este novo projeto. Vem na mesma linha do primeiro?
M: A inspiração é sempre a mesma: as pessoas e a vida.
SB: O método de criação foi o mesmo, mas a elaboração foi ligeiramente diferente. Enquanto que o outro disco funcionava como um todo, ou seja, as músicas faziam ligação direta umas com as outras, neste cada música é quase uma família, é uma casa diferente. O Enlouqueci é uma casa de loucos, há uma outra casa que fala do que a religião pode provocar nas pessoas, Bomba-Relógio, há ainda outra casa que fala da mulher só, ou seja, todas elas são muito distintas. Cada música funciona por ela própria. Mesmo a nível sonoro isso acontece. Por exemplo o Rato não tem nada a ver com nenhuma das outras músicas do disco.
Isso foi intencional?
SB: Sim foi, na medida em que nos quisemos dedicar inteiramente a cada uma das músicas.
M: Sem querer parecer pretensiosa, acho que as obras de arte são um bocadinho o espelho do artista naquele momento. Passaram dois anos desde o primeiro disco, por isso é natural que aquilo que mudámos enquanto ‘criadoras’ e mulheres se tenha espelhado no que criámos agora. Se estivermos estagnadas nos próximos dois anos e na altura lançarmos um álbum, então, se calhar, esse álbum será muito parecido com este.
Compõem, tocam produzem, realizam… Não sentem necessidade de incluir mais elementos no vosso projeto?
M: Quando houver essa necessidade então assim faremos. Por exemplo, este disco contou com a colaboração do Samuel [Palitos]… Ou seja, somos altamente flexíveis. No dia em que quisermos ter mais alguém, chamamos.
SB: Temos que nos surpreender. Acho que essa é a essência deste projeto. No momento em que isso deixar de acontecer, então podemos chamar mais alguém, podemos fazer essa experiência de explorar outros caminhos.
Este projeto teria sido possível há 10 anos ou, pelo contrário, requer uma certa maturidade e experiência de vida?
SB: Nem pensar nisso! Este projeto tem de ser com duas velhas [risos], duas mulheres nos quarentas, tem que existir essa maturidade, porque isto requer essa maturidade a nível de letra e de intenção. E tem de ter lata, também…
M: E despojo. Estamos aqui completamente despojadas de tudo. Não tenho nenhum problema em demonstrar, perante toda a gente, que não sou um génio na guitarra. Toco o suficiente para fazer isto, não ando a tentar disfarçar nada. A Sandra, desde que a conheço já lá vão muitos anos, nem sequer o Parabéns a você cantava. Aqui canta, faz vozes. Ou seja, nós despojamo-nos completamente de determinadas coisas. Se tivéssemos 20 ou 30 anos não seríamos capazes de o fazer. Estaríamos a tentar mostrar ao mundo que sabíamos muito.
SB: E não temos nada a perder, nem nada a provar. Temos isto para mostrar, para partilhar. Não é um projeto muito ambicioso, não queremos propriamente ir tocar ao Altice Arena. Temos noção do espaço que isto ocupa e que é fundamental, até para dar novas referências, novos modelos. A sociedade está tão formatada, as bandas tem que ser de determinada maneira… Se eu viver até aos 70 anos e me apetecer tocar flauta no metro, é isso que vou fazer. E fazer acontecer é muito importante, temos que fazer acontecer coisas, seja em que área for.
No dia 24 de maio dão um concerto no Lux. Qual a vossa expectativa em relação à reação do público a este novo trabalho?
M: Tento viver sem expectativas. Não crio expectativas em relação a concertos, mas posso falar em relação ao passado. Com o primeiro disco fiquei surpreendida com a receção aqui em Lisboa. Todos os concertos que fizemos cá correram muito bem, tocámos no Vodafone Mexefest, num arraial ao pé da Casa da Achada, que se chama Sardinhas Achadas, e tocámos no dia de natal no Sabotage, que foi um concerto épico, maravilhoso. Acho que não podia ter corrido melhor.
SB: Podemos avançar que vamos ter um artista connosco, um amigo convidado, que nos vai ajudar na logística do concerto.
Do contacto que têm tido com o público, conseguem perceber se quem vos segue era já fã da Naifa?
SB: É uma pergunta muito curiosa. Pelo que me vou apercebendo nas redes sociais, há uma fatia que já nos acompanha desde A Naifa, mas fomos buscar uma grande fatia de público a pessoas que não seguiam A Naifa, nem sequer conheciam.
M: E essa é a fatia maior, é muito curioso. É um público novo. Temos muitos seguidores na casa dos 20, mas claro que a nossa música toca de forma diferente a um quarentão.
[Fotografias de Nuno Carvalho]
“A commedia dell’arte está na génese da criação do Teatro Meridional”, refere o encenador Miguel Seabra, relembrando que o primeiro espetáculo da companhia que dirige com Natália Luiza foi, precisamente, uma incursão neste género secular, reconhecido pelo “seu humor estonteante e a sua corrosiva acutilância política.”
Feira Dell´Arte, na sua versão Pantalone, remonta a 2001 e foi uma das primeiras colaborações de Mário Botequilha, autor do retumbante sucesso Al Pantalone (2014), com o Teatro Meridional. A ideia original surgiu a Miguel Seabra há uns bons anos, quando tinha como “vizinha”, a cada setembro, a Feira da Luz, em Carnide. “Naquele ambiente festivo, imaginei como seria se dois bonecreiros anunciassem um espetáculo de commedia dell’arte”…
Por entre o burburinho de uma feira de arrabalde, encontramos dois atores prestes a irem “direitos ao estomago do público com a comédia”. Vestindo ora as peles de Columbina e Zanni, os eternos servos de Pantalone, ora as de Isabela e Otávio, os atores passam em revista o estado a que chegámos, não esquecendo os políticos que roubam à descarada ou os senhores para quem tudo vale para amealhar mais uma moedinha.
À sombra de um mundo em que “até Trump pode vir a ser agraciado com o Nobel da Paz”, Miguel Seabra revisita o texto de Botequilha, atualiza-o, e recria o espetáculo de 2001, mantendo o espírito sempre são e até subversivo de “falar sobre coisas sérias através de um género teatral que tão bem sabe brincar com a realidade”.
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