O que se faz num karaoke? “Repetem-se as palavras dos outros, e isso não é mais do que aquilo que fazemos a toda a hora, hoje”. Quem o diz é Raimundo Cosme, poucos minutos depois de ter feito mais um ensaio integral de You need heart to play this game, a sétima criação da Plataforma285, coletivo multidisciplinar que dirige com Cecília Henriques e Marta Passadeiras.
“Quisemos fazer um espetáculo assumidamente político, que acentuasse essa tirania da repetição de linguagens, discursos, códigos e símbolos a que vamos sendo impelidos”, sublinha. Para isso, o performer poderia deixar-se ficar em frente de um ecrã de computador a “brincar“ numa qualquer rede social. Mas, a opção para frisar “a desumanização” recaiu no karaoke, essa máquina que projeta imagens normalmente inócuas e nos põe a cantar, ou a soletrar, palavras que outros combinaram.
“A ideia para fazer este projeto surgiu quando vi um documentário sobre os autodenominados herbívoros, japoneses entre os 20 e os 35 anos que abdicaram de sexo e que, têm como ponto alto das suas ‘vidas sociais’ ir a uma cabine de karaoke, privada, onde cantam”, explica Cosme. Agarrando na ideia de isolamento proposta por tão insólita forma de vida, em palco é recriado “um recetáculo fechado prestes a ruir”, onde, quase sempre de costas para o público, o performer interage com “a máquina” que o torna estrela solitária do seu mundo.
De microfone na mão, perante “uma imagem medíocre” onde desfilam palavras ou interjeições, Cosme (e, consequentemente, a plateia) viaja ora pela tragédia dos migrantes, ora pelas vidas fantasiosas nas redes sociais; ora por símbolos pop, ora por modas do momento; ora por guerras declaradas, ora por discursos políticos inflamados. Em suma, um mundo filtrado pela imagem do karaoke, ao som de músicos como Jezek & Kurepa, Filipe Sambado, Vaiapraia e As Rainhas do Baile, Nívea-San, DJ Pastilhado, Tiago Nunes e Van Ayres.
Porque gosta de “começar sem saber como acaba”, Mónica Garnel quis trazer para o palco um policial inspirado em Agatha Christie. Por isso mesmo, anunciou um assassinato, testemunhado ao vivo e em direto pelo público, tal qual como numa das aventuras de Miss Marple. Desafiou então Ricardo Neves-Neves a escrever uma peça onde ecoassem aquelas ambiências tão marcadamente british dos romances da célebre autora inglesa. Mas, o dramaturgo, confessa, não se sentiu suficientemente inspirado pela pena de Christie, até que, através do célebre The Cocktail Party de T.S. Elliot, encontrou a pista que o levou a montar o “crime”.
Para dar vida a oito personagens tão decadentemente festivas que se tornam sombrias, e que Neves-Neves criou como sendo gente de uma “classe elevada, mas insensível e ignorante”, Mónica Garnel fez-se rodear por um elenco rico em afinidades. Da Casa Conveniente/Zona Não Vigiada, trouxe Mónica Calle, Inês Vaz, Rute Cardoso, José Miguel Vitorino e Ana Água, e a estes juntou “amigos que muito admiro como o Álvaro Correia, da Comuna, e o Tiago Vieira, da Latoaria”. Sem esquecer, no desenho de luz, vindo do Teatro Meridional, Miguel Seabra, e, na música ao vivo, a também atriz Sofia Vitória. No fundo, como conclui a encenadora e atriz, “trouxe a minha casa atrás.”
Reunidos tão nobres ingredientes, Garnel empregou ao espetáculo “uma ideia de festa, enérgica e ruidosa, à medida do homicídio que está prestes a acontecer”. Num ambiente de artifício, povoado por figuras “excessivas e grotescas, que me lembram obras do pintor flamengo Jacob Jordaens (1593-1678)”, a encenadora pinta uma tela feérica à volta da piscina que teima em não encher. Até ao momento em que a água transborda e se desvenda o mistério.
A aguçar o apetite para a “festa”, minutos antes do início do espetáculo, é exibido na Sala Bernardo Sassetti (antigo Jardim de Inverno), um trecho de Espelho Quebrado, filme dirigido pelo bondiano Guy Hamilton, com Angela Lansbury a interpretar Miss Marple. Talvez valha a pena levar mais do que à letra a pontualidade britânica e chegar a tempo de dar uma espreitadela… Quem sabe se não lhe irá ser útil para desvendar o crime anunciado.
Arrabalde da cidade até ao século XVI, época em que foi elevada a freguesia pelo Cardeal D. Henrique, a Colina de Santana, era conhecida como Campo do Curral por ser um local onde se abatia gado e se vendia carne fresca. Foi zona de palácios e conventos, alguns dos quais reconvertidos no século XIX, para funções hospitalares. Como nada acontece por acaso, esta vocação alargou-se à investigação e conferiu a esta zona da cidade o epíteto de “colina da Ciência”. Num circuito longo, com vários desvios e muitas histórias, vamos perceber porquê.
Campo Mártires da Pátria – Estátua Dr. Sousa Martins
O percurso começa no Campo Mártires da Pátria, junto à estátua do Dr. Sousa Martins, ao som pouco urbano do canto dos galos e do grasnar dos patos que coabitam no jardim Braancamp Freire. Também chamado Campo Santana, por causa da ermida aqui construída dedicada a Santa Ana, este planalto teve diversos usos e ocupações. Foi curral e açougue, teve uma praça de touros (inaugurada em 1831 e demolida em 1889) e recebeu a Feira da Ladra até 1882. O topónimo Campo Mártires da Pátria data de 1880 e pretendeu homenagear o general Gomes Freire de Andrade e os seus companheiros que tentaram derrubar o governo do Marechal Beresford, acabando alguns por ser enforcados no local.
Em 1907 foi aqui colocada a estátua do Dr. Sousa Martins (1843-1897), da autoria de António Augusto da Costa Motta (tio). Situada em frente à Faculdade de Ciências Médicas, antiga Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, onde Sousa Martins foi professor, é objeto de devoção por parte de crentes que aqui deixam oferendas por benesses recebidas. Conhecido como “Pai dos Pobres”, este médico dedicou-se a ajudar os mais carenciados a quem recusava honorários. Trabalhou sobretudo no combate contra a tuberculose, doença que acabou por atingi-lo.
R. do Instituto Bacteriológico – Antigo Instituto Bacteriológico Câmara Pestana
O passeio prossegue pela Rua do Instituto Bacteriológico, assim chamada devido ao antigo Instituto Bacteriológico Câmara Pestana. O médico que lhe deu o nome e que o fundou (1892) e dirigiu foi o bacteriologista Luís da Câmara Pestana. Sumidade no campo das doenças infecto-contagiosas, implementou a vacina contra a raiva, estudou e combateu as várias pestes que assombravam o país, acabando por sucumbir num surto pestífero em 1899 no Porto. O edifício do instituto, hoje sob alçada da Reitoria da Universidade de Lisboa, aproveitou as ruínas do antigo Convento de Santana, do qual resta apenas uma esquina que alberga atualmente uma creche.
Ao observarmos as instalações, impulsionadas pela Rainha D. Amélia (1865-1911) com o objetivo de evitar a ida de doentes a Paris para receberem tratamento contra a raiva, percebemos que o desenho geral é de influência francesa, com mansardas e grandes janelas. Na fachada, deparamo-nos com uma placa evocativa a Luís de Camões que viveu na zona e morreu em 1580, vítima da peste. Os seus restos mortais encontravam-se no exterior do Convento de Santana e foram transladados, sem segura identificação, para o Mosteiro dos Jerónimos em 1880.
Calçada de Santana – Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Pena
Descendo a Calçada de Santana chegamos à Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Pena. Em 1689, na qualidade de irmão da Confraria de Nossa Senhora das Virtudes, João Antunes projetou uma capela e respetiva obra de pedraria, tendo a atual igreja sido construída em 1705. Ao entrar pela porta lateral deparamos com o magnífico altar-mor em talha barroca que inclui a figura de dois Atlantes, da autoria de Claude Laprade. A igreja sobreviveu com alguns danos ao sismo de 1755. O piso superior foi o mais afetado, nomeadamente o teto que desabou. O pintor Luís Baptista, ajudado por José Tomás Gomes e Jerónimo de Andrade assumiu o restauro do teto e o templo reabriu em 1763, tendo os trabalhos de reedificação e decoração continuado até 1793.
Rua de Júlio Andrade – Jardim do Torel
Infletimos a marcha e subimos até ao Jardim do Torel, zona apelidada de Riviera de Lisboa, em resultado dos belíssimos palacetes aí construídos. Com origem numa quinta do início do século XVIII, o Jardim do Torel, deve o seu nome ao desembargador Cunha Thorel, o mais rico proprietário da zona. Em 1928 o terreno do palácio foi cedido à Câmara Municipal de Lisboa que aí construiu o jardim e o miradouro que oferece uma vista magnífica da cidade. Da antiga casa mantém-se apenas o lago, hoje uma piscina que, nos dias quentes, se transforma em praia urbana.
Saídos do jardim, continuamos o périplo pelas moradias nobres dos séculos XVIII e XIX, entre as quais se destacam aquela que alberga a Xuventude da Galicia, associação cultural dos galegos residentes na cidade; o Palacete Virtvs, um espaço requintado destinado a eventos particulares ou de empresas; e por fim o Palácio Sommer, adquirido recentemente pela Fundação de Macau e que irá acolher a Delegação Económica e Comercial.
Alameda Santo António dos Capuchos – Hospital de Santo António dos Capuchos
A caminho do Hospital dos Capuchos, regressamos ao Campo dos Mártires da Pátria, e aí a atenção desvia-se para o antigo Palácio do Patriarcado, datado de 1730, da autoria do arquiteto João Frederico Ludovice, mais conhecido pelo projeto do Convento Nacional de Mafra em parceria com o arquiteto Mateus Vicente de Oliveira. Contornando este edifício, entra-se na Alameda Santo António dos Capuchos, onde se localiza o Palácio Centeno mandado construir para as damas de companhia de D. Catarina de Bragança, Rainha de Inglaterra e mulher de Carlos II. Do lado oposto da alameda ergue-se o Palácio da Bemposta, antiga residência real que é hoje a Academia Militar. Reza a tradição que existia um túnel a ligar os dois palácios, acreditando-se que mais do que uma lenda romântica, é uma realidade muito provável.
Chegados ao Hospital de Santo António dos Capuchos, ficamos a saber que se tratava de um antigo Convento inaugurado em 1579 e entregue aos Padres Recoletos da Custódia de Santo António. O edifício principal do hospital resulta de várias transformações que o convento sofreu. Em 1836, na sequência da expulsão das ordens religiosas, a rainha D. Maria II fundou nas suas instalações o Asilo de Mendicidade de Lisboa. O hospital foi oficialmente criado em 1928 e, no seu interior, encontra-se um riquíssimo património azulejar e um dos mais antigos relógios de sol existentes em Portugal. Nos dias que correm detém valências únicas em áreas como a dermatologia, gastrenterologia, hematologia, neurologia e oncologia.
Rua do Passadiço – Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto
Da Rua Santo António dos Capuchos entramos na Rua do Passadiço. É uma zona antiga, conforme atestam os vestígios arqueológicos da época romana descobertos no nº 26 no decurso de obra. O ponto de paragem é, aqui, o Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto, único instituto oftalmológico público do país. O médico que lhe dá o nome e que foi também o seu fundador em 1889, Caetano António da Gama Pinto, nasceu em Goa. Formou-se na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1878, e estagiou em Paris, Alemanha e Viena de Áustria. O Instituto é ainda hoje um símbolo de serviço público exemplar, destacando-se pela investigação científica e inovação.
Rua de Santa Marta – Hospital de Santa Marta
Descendo pela Travessa de Santa Marta deparamos com um muro alto que pertencia ao Convento de Santa Marta. O asilo de Santa Marta foi criado em 1569, no reinado de D. Sebastião, para acolher e tratar as órfãs dos serviçais reais vitimados pela peste, a mesma que matou Luís de Camões. Em 1583, o arcebispo de Lisboa autorizou a instituição de um convento de religiosas clarissas de 2ª regra (urbanistas), sob a invocação de Santa Marta. Em 1890, foi destinado ao serviço da saúde, sob o nome de Hospício dos Clérigos, especializando-se mais tarde em doenças venéreas. Na primeira década do século XX, foi-lhe atribuída a função de Escola Médico Cirúrgica de Lisboa, assumindo um importante papel no ensino da Medicina. Manteve esta função até 1953, data em que a clínica universitária foi transferida para o recém-criado Hospital de Santa Maria. O médico Machado Macedo deu ao hospital a inovação que o diferenciou na área cardiovascular, sendo atualmente um dos principais centros de diagnóstico e tratamento das doenças cardiovasculares a nível nacional.
Rua de Santa Marta – Universidade Autónoma de Lisboa
Na Rua de Santa Marta, passamos pelo Instituto Cervantes, local onde em tempos esteve a Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Descobrimos também que a Igreja pertencente ao Hospital de Santa Marta esteve ligada ao antigo Palácio dos Condes de Redondo (século XVII), atualmente a Universidade Autónoma de Lisboa. Este pormenor foi do agrado da Rainha D. Catarina de Inglaterra – a que introduziu o chá das cinco naquele país – que no seu regresso a Portugal depois de enviuvar, aqui se instalou antes de se mudar para o Paço da Rainha (Palácio da Bemposta). A ligação entre os edifícios permitia à Rainha uma entrada para a tribuna de onde podia assistir à missa. Em meados do século XX o palácio pertencia à condessa de Arnoso, e chegou a albergar instituições de assistência social, duas escolas primárias e vários estabelecimentos comerciais. Nos anos de 1980, instala-se no local a Universidade Autónoma de Lisboa.
Mudou-se para uma cidade estranha (fria e “tão ao norte do mundo”) por amor a uma mulher. Deixou-se ficar porque chegou um filho, e “um medo” que não consegue explicar. Agora, na meia-idade, canta e toca na rua e em subterrâneos “para ganhar umas coroas”. Em traços largos, está feita a apresentação do personagem que devolveu Manuel Wiborg ao teatro do norueguês Jon Fosse, de quem encenou, com Diogo Dória, o magnifico Sou o Vento, já lá vão quase cinco anos.
“O que mais gosto no Jon Fosse é uma escrita muito musical e minimal, como se os textos fossem canções. Isso dá-me uma imensa liberdade enquanto encenador e, ao mesmo tempo, concilia-me com a minha distante vontade de um dia ter sido músico”, confessa-nos Wiborg. Neste caso preciso, O Homem da Guitarra é “um monólogo de grande atualidade porque aborda o drama das pessoas com 40 e muitos, 50 anos, que, se confrontadas com o desemprego, por exemplo, sentem deixar de ter lugar neste mundo. É um belo texto sobre alguém para quem os sonhos ruíram, para quem julga que toda a vida falhou…”
Acompanhado de uma guitarra, que pontualmente o ator toca para interpretar os lamentos do personagem, Wiborg usufruiu da liberdade do texto para convidar um velho amigo, o músico e artesão Adriano Sérgio, a acompanhá-lo em cena. Replicando no palco a sua oficina de construção de guitarras, este músico, que é, atualmente, um dos mais requisitados construtores de guitarras do mundo, reproduz o seu ofício em contracena. “Porque o som que se produz a fazer guitarras é também música”, sublinha.
Como curiosidade, questionámos Adriano Sérgio sobre o que o levou a aceitar o convite de Wiborg para este O Homem da Guitarra: “identifico-me muito com o texto. Eu que deixei de ser músico de palco porque não podia fazer a música de que realmente gostava; eu que me tornei técnico de guitarras de alguns nomes sonantes do heavy metal, como o Ozzy Osbourne ou os Anthrax, e me cansei… A diferença que assumo perante o personagem do Manuel é nunca ter desistido”. Por isso mesmo, Adriano e a marca que criou, a Ergon, são hoje referências no meio musical.
O espetáculo está em cena na Sala Mário Viegas do Teatro São Luiz até 4 de fevereiro.
Remonta aos tempos da estada dos Artistas Unidos n’ A Capital a vontade de Jorge Silva Melo de encenar o influente clássico Albergue Noturno de Maximo Gorki (1868-1936). Nesse já longínquo ano de 2001, o encenador trabalhava a montagem da peça, interrompida devido ao trágico desaparecimento do ator Paulo Claro. “Nesse ano preparávamos um ciclo russo que levaria à cena o Na Estrada de Tchekhov e o Albergue Noturno, do Gorki”, recorda. “Eram peças que pensávamos adaptarem-se muito bem às características do edifício d’ A Capital, sobretudo este último, que me recordo de ter visto encenado por Monteiro Meireles, em 1970, no Trindade, com uma companhia amadora, o Grupo Mérito Dramático Avintense”.
Durante um seminário que conduziu no D. Maria II, e que haveria de resultar no espetáculo Na margem de lá: um lamento, Silva Melo confessa ter recorrido à companhia desse “texto maior” de Gorki sempre que voltava a casa. Entretanto, a convite de Tiago Rodrigues [diretor do TNDM II], o encenador é desafiado “para trabalhar clássicos e mitos”. Nem a propósito, Silva Melo pensa em Dido e Eneias, “coisa que se presta mais à música e ao lamento que ao teatro”, e consequentemente “na tragédia dos que morrem no Mediterrânio em busca de refúgio, nos desempregados, nos desgraçados atirado para o lixo de Schengen e de todas as outras globalizações”. E que outro senão Gorki, com “a canalha” do seu Albergue Noturno, se poderia tão bem prestar a dar “voz aos pobres, vis e oprimidos que ninguém quer.”
Embalado pela “peça que abriu a hipótese de um realismo coral”, Silva Melo foi revendo “os filmes de Jean Renoir e de Kurosawa” que magistralmente transportaram o texto de Gorki para os seus tempos – o de Renoir, imbuído da vitória eleitoral em França da Frente Popular, que se quis crer poder travar fascismos e nazismo; o de Kurosawa, procurando vias para a esperança no arrasado Japão do pós-guerra. Simultaneamente, “e não porque o de Gorki fosse insuficiente, apercebi-me como este texto foi dos que mais textos gerou a outros, de Eugene O’Neill a Lars Noren, passando por Tennessee Williams e William Saroyan”, sem esquecer a intriga amorosa entre o ladrão honesto e a mulher mal casada “que terá inspirado O Carteiro Toca sempre Duas Vezes”. Aliás, sublinha, “a peça é dupla porque, num plano, contém essa narrativa de amantes, e noutro, “concentricamente”, estão esses personagens “sem história, sem drama e sem destino que por ali pairam.”
Acreditando que “todos somos necessários para fazer o mundo”, como se diz a dada altura na peça, o novo espetáculo de Jorge Silva Melo junta a Gorki múltiplas referências, desde a poesia de Gomes Leal – de onde provém o título – a canções e panfletos revolucionários, plasmados, sobretudo, na presença de “uma espécie de coro” que, à boca de cena, confronta diretamente o público. Estes homens que saem da turba surgem como o coletivo que amplifica o sentido trágico do mundo que os rejeita. Até porque, em O Grande Dia da Batalha de Gorki e Silva Melo, o palco a estes párias pertence.
Nem tudo será um drama, nem tão pouco uma comédia, na vida destes atores que o encenador e realizador de cinema Marco Martins juntou em palco para exporem muito mais de si do que aquilo que imaginamos. Apesar da popularidade, da aclamação e da consagração de que gozam, é uma vida difícil e sempre à beira do limite, com riscos profissionais e tantas vezes pessoais. Senão, repare-se precisamente no caso de Luísa Cruz, uma das escolhidas de Martins para Actores, e que, nos últimos momentos, entrou em “exaustão”, o que obrigou à sua substituição por Carolina Amaral.
“Aquilo que tenho verificado ao longo dos anos é que os atores são obrigado a desdobrar-se em papéis, ora no cinema ou na televisão, ora no teatro ou na publicidade, e isso leva-nos a encontrá-los muitas vezes num estado de exaustão completa”, refere o encenador, lembrando que foi essa constatação que fez germinar este espetáculo. “Durante meses, a partir de um leque de intérpretes com quem tenho trabalhado, conduzi várias entrevistas onde lhes pedia que me falassem não só dos projetos artísticos em que trabalhavam, como das suas frustrações, receios, custos da exposição pública, objetivos pessoais, etc.”
O resultado dessas entrevistas serviu de base aos vários capítulos que durante quase três horas se apresentam em palco, e que, sendo teatro, “funcionam quase como um documentário para cinema onde a memória se torna o lugar da ficção”. E por falar em cinema, Marco Martins é perentório em afirmar que Actores é “o espetáculo mais cinematográfico” que fez até hoje, independentemente da experiência em cinema destes “tão requisitados intérpretes” estar “praticamente ausente se comparada aos seus desempenhos na televisão e, sobretudo, no teatro.”
“Foi tempo de voltar à terra, à lezíria dos telhais, onde até há poucas décadas, os meninos eram despojados de infância”, confessa Maria João Luís, evocando o Ribatejo, onde foi “nascida e criada”. 150 Milhões de Escravos nasceu desse regresso às origens e da vontade íntima de pegar num romance que faz parte da vida da encenadora (“um livro lá de casa, que por volta dos 10 anos já tinha lido e ouvido ler”): Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes.
Com Mikael de Oliveira (com quem já tinha trabalhado noutra obra do neorrealismo – Finisterra de Carlos de Oliveira), Maria João Luís encontrou um caminho para trazer Esteiros para o palco. Socorrendo-se de A Gaivota, de Tchékhov, encontramos a família burguesa a trocar Treplev por Soeiro, e a percebermos que, no conforto do pequeno mundo das aparências de hoje, continuam a existir “os filhos dos homens que nunca foram meninos” (da dedicatória de Esteiros). E, tragicamente, replicam-se, e replicam-se.
Assim, em palco, encontramos uma família de proprietários rurais, onde pontuam, entre outros, o ambicioso político, a sua irmã, uma atriz em final de carreira, e o filho dela, um dramaturgo que propõe encenar, em homenagem aos trabalhadores da herdade que fazem a vindima, os Esteiros de Soeiro Pereira Gomes. Aos poucos descortinamos, entre o discurso politicamente correto e cínico destes burgueses, que na herdade, em anexos no campo, estão trabalhadores ilegais, de várias nacionalidades, e até crianças. E a maior monstruosidade prepara-se para acontecer quando chega a notícia da morte de um menor em plena jorna de trabalho…
E assim acontece o soco no estômago que 150 Milhões de Escravos reserva para o espectador. “Quis abalar o nosso conforto burguês, por mais que recusemos identificar-nos com estes que vemos em palco. Podemos não ser dos que exploram e matam, mas não nos podemos ilibar de culpas quando sabemos que há crianças a trabalhar em campos de cacau para que tenhamos o chocolate de que tanto gostamos ou em fábricas da Ásia a produzir as roupas com que nos vestimos” refere a encenadora, não deixando de lembrar também que, aqui em Portugal, se exploram crianças e somos confrontados com situações tão inauditas, “como o recente caso das adoções ilegais pela IURD”.
E o título do espetáculo? “Uma denúncia clara”, explica Maria João Luís, apoiando-se nos números da Amnistia Internacional, “que apontam para mais de 152 milhões de menores no mundo vítimas de trabalho infantil”.
Com interpretações de Beatriz Godinho, Catarina Rôlo Salgueiro, Emanuel Arada, Ivo Alexandre, João Saboga, José Leite, Hélder Agapito, Lígia Soares e Teresa Sobral, 150 Milhões de Escravos é uma coprodução do Teatro da Terra com o Teatro da Trindade/INATEL, estando em cena até 28 de janeiro. A partir de 1 de fevereiro, a peça estreia em Ponte de Sôr, no Alto Alentejo.
Comissariada pelo especialista mundial na obra de Miró, Robert Lubar Messeri, Joan Miró: Materialidade e Metamorfose reúne 85 obras (na Casa de Serralves foram expostas menos sete) de pintura, desenho, escultura, colagem e tapeçaria da coleção de obras do mestre catalão (1893-1983).
As peças, propriedade do Estado Português, compreendem um período de seis décadas da carreira de Miró, de 1924 a 1981, e centram-se na natureza física dos suportes utilizados pelo artista e na elaboração dos materiais como fundamento para a sua prática artística. A perceção da variedade de técnicas em que Miró trabalhava é, porventura, um dos maiores aliciantes deste conjunto de obras.
Na Galeria D. Luís I, no Palácio Nacional da Ajuda, podem contemplar-se obras como seis pinturas da conhecida série sobre masonite de 1936, seis tapeçarias de 1972 e 1973, e uma das telas queimadas, de uma série de cinco, criada para a grande retrospetiva do artista catalão no Grand Palais de Paris, em 1974.
A exposição chegou ao Palácio Nacional da Ajuda vinda diretamente de Serralves, no Porto, onde recebeu mais de 240 mil visitantes. Recorde-se que esta coleção tornou-se propriedade do Estado Português quando, em 2008, o Banco Português de Negócios foi nacionalizado.
Ao longo de décadas, o transformismo tem travado uma dura batalha pelo reconhecimento como arte, buscando dissociar-se de estigmas e preconceitos. Sintomático, o fenómeno drag está, mais do que nunca, na moda, como se vai percebendo pelo sucesso planetário de artistas como o norte-americano RuPaul ou, mais recentemente, o brasileiro Pabllo Vittar. Em Lisboa, uma nova geração convive com nomes históricos do transformismo ainda em atividade. O epicentro criativo são as discotecas Finalmente e Trumps, onde noite após noite acontecem espetáculos repletos de música, brilho, glamour e, também, bastante humor. Com rigor e preceito, eles transformaram-se em elas, e eis-nos perante oito divas da noite lisboeta que aceitaram posar para a Agenda Cultural e lançar o repto aos nossos leitores: saia de casa e venha assistir àqueles que são, com toda a certeza, os shows com mais glam da cidade.
[saiba mais sobre as Divas da Noite na edição de janeiro da Agenda Cultural de Lisboa]
Os melhores locais da noite drag
FINALMENTE CLUB
Rua da Palmeira, 38 (ao Príncipe Real)
Aberto desde 1976, tornou-se referência da noite lisboeta por ser a meca dos shows de transformismo. Fernando Santos, diretor artístico e intérprete da diva Deborah Krystall, garante-nos ser “um caso único em Portugal, e mesmo raro a nível internacional, por apresentar espetáculos diários, 365 dias por ano”. Para além dos shows profissionais, o palco do Finalmente reserva as noites de segunda-feira para dar Lugar às Novas, iniciativa responsável por descobrir os novos talentos na arte do transformismo. Atribui anualmente o Troféu Internacional de Artes Cénicas, que já distinguiu Herman José e Rossy de Palma, reconhecida atriz espanhola pela sua participação nos filmes de Pedro Almodovar. Assume-se como um espaço GLS – acrónimo de “gay, lésbico e simpatizantes” – onde todos são especialmente bem-vindos.
TRUMPS CLUB
Rua da Imprensa Nacional, 104 B (ao Príncipe Real)
Garante ser “o melhor clube gay de Lisboa” mas, atenção: o Trumps prima por afirmar-se hetero friendly. Aberto ao público às sextas, sábados e vésperas de feriados, tem duas salas, uma dedicada à música house, outra à pop. Fundada em 1981, esteve para se chamar Frog, mas acabou por resgatar o nome ao famoso clube londrino Tramp. Reza a história que António Variações era uma presença assídua, e ali se terá estreado em palco. As festas temáticas, como a POP University (apelidada já de “melhor festa de Lisboa”, e onde brilham “as meninas da fraternidade Kappa Kappa”, como as nossas convidada Lexa e Becca, e a dj Filha da Mãe) são pontos altos da programação. Regularmente, passam pelo Trumps renomados dj’s convidados que fazem deste espaço de diversão noturna um dos mais badalados da capital.
Não terá sido mera coincidência, mas foi certamente uma escolha feliz surgir em cena, no período de comemoração do 150.º aniversário do Teatro da Trindade, uma peça que tem como protagonista essa figura maior do teatro português de seu nome Francisco Ribeiro (1911-1984), e imortalizada na memória dos portugueses como Ribeirinho. Em 1959, o ator que o cinema imortalizou em O Pai Tirano, dirigiu, no Trindade, e pela primeira vez em Portugal, a peça de Samuel Beckett À Espera de Godot. Alguns anos depois, Ribeirinho voltaria ao controverso e influente texto do autor irlandês: no final dos anos de 1960, novamente no Trindade, e pouco antes da Revolução de Abril, com uma companhia itinerante, em Angola.
Estes três momentos da história serviram Jorge Louraço na construção de uma comédia que traça um paralelo subtil com o texto de Beckett. Ao invés de Godot, encontramos Francisco Ribeiro, outros dois atores e um ponto, à espera de Beckett que, supostamente, deveria assistir a uma récita do espetáculo. Ora, o autor, tal como Godot, nunca aparece e entre os ensaios vai-se gerando um misto de tensão e de desânimo.
Perante situações a roçar o absurdo, que Louraço assume serem como que uma “entrada na cabeça de Ribeirinho”, o espetáculo vai cruzando Godot com alguns momentos dos famosos filmes portugueses dos anos de 1940, nomeadamente O Pai Tirano e O Pátio das Cantigas, estabelecendo uma reflexão sobre as divisões criadas entre o popular e o erudito. O autor e encenador de À espera de Beckettpretende “enfrentar de frente” esta “frágil divisão”, onde a pateada do público convive lado a lado com o aplauso de uma certa elite bem-pensante. E, socorre-se daquela ideia de que À espera de Godot é composto das memórias de Beckett do music hall irlandês, tal como as históricas encenações de Godot por Ribeirinho são imbuídas da sua passagem pelo cinema popular ou pelo teatro de revista.
Por isso, Jorge Louraço vê neste seu espetáculo uma tomada de posição contra a elitização da cultura, particularmente do teatro, usando uma figura tão importante no teatro português como foi Ribeirinho para o expor. Até porque se Beckett revolucionou a linguagem do teatro, Francisco Ribeiro mudou o teatro em Portugal (e não foi apenas por ter encenado Beckett quando ninguém o fazia).
À espera de Godot ou Quaquaquaqua conta com interpretações de Estêvão Antunes, Mário Moutinho, Óscar Silva e Pedro Diogo, no papel de Ribeirinho. O espetáculo está em cena, na sala estúdio do Teatro da Trindade, até 17 de dezembro.
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