Em 1959, no The New York Times, lia-se que Tennessee Williams continuava “possuído por demónios”. Em causa, a peça estreada em março desse ano, Doce Pássaro da Juventude (Sweet Bird of Youth), considerada pelo crítico e dramaturgo Robert Brustein “uma fantasia neurótica privada” sobre o tempo e a castração.
Envelhecida e decadente, a atriz Alexandra Del Lago, a ‘Princesa’, acompanha Chance Wayne, um jovem prostituto com aspirações a ator, à cidade natal deste, no sul dos Estados Unidos. Num domingo de Páscoa, aquele que deveria ser para Wayne o regresso a “um passado feliz que um dia teve lugar” vai ser ensombrado pela violência e pela destruição.
Depois de Gata em Telhado em Zinco Quente, Jorge Silva Melo e os Artistas Unidos continuam a explorar a dramaturgia de um dos mais importantes autores de teatro do século XX. Nesta produção, o encenador escolheu Maria João Luís e Rúben Gomes para representarem as “monstruosas”, e tragicamente vulneráveis, personagens centrais da peça as quais, na encenação original de Elia Kazan, eram interpretadas por Geraldine Page e Paul Newman.
A atriz Maria João Luís regressa assim aos Artistas Unidos, num ano em que assinala 30 anos de carreira profissional no teatro. Motivo para uma conversa em torno da ‘Princesa’ Alexandra Del Lago, de Silva Melo e Tennessee Williams e de um percurso no teatro e na televisão que a consagraram como uma das maiores atrizes da sua geração.
A última vez que trabalhaste com os Artistas Unidos foi em Hedda, uma leitura do José Maria Vieira Mendes de Hedda Gabler…
Pois foi… fazia ‘uma’ Hedda…
E agora, desafias-te a encarnar a Princesa Alexandra Del Lago em Doce Pássaro da Juventude…
É acima de tudo um desafio do Tennessee Williams proposto pelo encenador com quem mais gosto de trabalhar e com quem melhor me entendo, o Jorge Silva Melo. A peça era para ter sido feita há um ano ou dois e agora vai ser, por fim, apresentada.
Têm de ser mulheres de grande estirpe para o Jorge te convencer a atuar sob a sua direção?
Não [risos]. Desde o Stabat Mater, do Antonio Tarantino, que o Jorge me fascina enquanto encenador. Gosto muito de sentir aquela energia que ele emprega a trabalhar. Lembro-me que no São Luiz, quando fizemos precisamente a Hedda, como a sala é muito grande, havia algum distanciamento. Ele estava lá em baixo na plateia, mas mesmo assim conseguia sentir essa energia. Por vezes, não é preciso sequer ouvi-lo falar, basta perceber o ritmo da sua respiração ao longo do ensaio para o entender. É, de facto, muito prazeroso trabalhar com um encenador como o Jorge.
E a tua relação com o texto e a personagem…
Esta peça assustava-me imenso. Até há pouco tempo, achava não ser atriz para fazer este tipo de papéis porque entendo que o teatro tem a ver com a mensagem, com aquilo que tens para dizer e transmitir, para, no fundo, teres uma voz ativa no mundo. Ora, os dramas das mulheres dos anos 50 e 60 ou a história de uma vedeta que fica velha interessavam-me muito pouco numa altura em que tudo está a ruir à nossa volta.
Mas, há um par de anos estavas a interpretar a Martha de Quem tem medo de Virginia Woolf, uma mulher burguesa dos anos 60…
Pois… e sabes que mais: o Albee não me convenceu! Mas, aqui as coisas são diferentes…
Como assim?
Confesso ter, por vezes, uma visão muito primária e primitiva que julgo vir dos meus tempos de punk rock [risos]. Tanto que, quando comecei a ler o Tennessee Williams fui surpreendida por um texto maravilhoso e um dos que vai mais longe na abordagem à degradação humana…
Não sentiste isso no Albee?
Reconheço-o também, mas foi diferente. O Tenessee Williams descreve, vive e interpreta as personagens tal qual um ator. Ele era um grande ator, logo é também a Alexandra Del Lago, e isso é absolutamente maravilhoso para uma atriz que vai interpretar o papel.
Isso quer dizer que nunca te relacionaste com a ‘Martha’ da peça do Edward Albee?
É claro que me relacionei com a personagem, mas a dada altura desinteressei-me. Digamos que aquilo que se passa com a Martha e com o Quem Tem Medo de Virginia Woolf é algo que entra no âmbito da psicanálise. A determinada altura da minha vida isso deixou de interessar. Prefiro ter a sensação de viver a vida, de retirar tudo aquilo que conseguir a cada momento e parar de tentar dissecar cada reação, cada questão que se nos coloca. Com o Tennessee Williams estou nesse campo. Estou sempre a descobrir algo mais a cada leitura e a cada ensaio, num processo de apropriação que se torna orgânico. E quando o texto passa a fazer parte de mim é um sinal de que posso passar para o púbico em toda a plenitude a minha capacidade artística, aquilo que sou enquanto atriz.
Alexandra Del Lago é muitas vezes apontada como um “monstro”. Apesar disso, reconheces algum fascínio nesta personagem?
Não sinto que seja um “monstro”. A minha Alexandra Del Lago é até bastante simpática. No fundo, todos nós podemos ser a Alexandra, todos nós temos a Alexandra dentro de nós. É uma personagem fascinante, e eu adoro-a.
Lembro-me de há uns anos me dizeres o mesmo sobre a Claire Zachanassian, de A Visita da Velha Senhora…
[risos] Mas essa era mesmo mázinha…
Sentes-te uma atriz melhor quando estabeleces essa empatia com as personagens?
Não sinto que seja preciso criar empatia pelas personagens. Interessa-me sim ter algo a dizer através delas e, quando isso sucede, sou provavelmente uma melhor atriz. O modo como me aproximo das personagens regula-se mais por aquilo que quero ou não fazer. Ainda há uns meses, interpretei uma personagem que não era homem nem mulher em Na Solidão dos Campos de Algodão… e, apesar dos risco que corri ao fazer uma peça do Koltès, penso ter transmitido ao público aquilo que queria porque estava profundamente envolvida no projeto.
A nível profissional assinalas, neste ano, três décadas de carreira profissional nos palcos. Este aniversário redondo faz-te olhar para trás, pensar no que poderias ter feito e não fizeste?
Sabes que quando olho para trás percebo que passei ao lado de uma grande carreira na… jardinagem! [risos]
Mas se assim fosse não teríamos uma grande atriz…
Dizes tu, e agradeço. Gostava mesmo de ter sido jardineira. Queria ter tempo para só fazer jardinagem, meter as mãos na terra, ver o que brota dela. Imagino uma vida pacífica e apaixonada, um bocadinho solitária em contraposição ao meu lado mais comunicativo. Precisamente este que acabou por fazer de mim atriz…
Então, apesar da paixão pela jardinagem, és feliz sendo atriz…
Claro que sim.
Como lidas com o reconhecimento e a consagração que te dedicam?
Não sinto essa coisa da ”consagração”. Nunca sinto que cheguei a sítio algum, porque não reconheço um sítio para se chegar.
Por isso mesmo arriscas, desafias-te constantemente…
Sempre, nem entendo ser atriz de outra forma. Por isso, não olho para trás. Reconheço ter chegado a um ponto na minha vida onde posso correr riscos, falhar, fazer merda. Hoje, sinto que me posso estender ao comprido, abraçar projetos que me provoquem e onde corro o risco de errar. Foi por isso mesmo que fiz o Na Solidão dos Campos de Algodão do Koltès, ao lado da Rita Blanco, e agora vou fazer este Tennesse Williams…
Mas o risco aqui é bastante mais controlado, ou não?
Sim, mas há sempre um risco, independentemente do trabalho com o Jorge ser sempre uma aprendizagem, uma grande lição de encenação, onde os riscos não parecem estar tão presentes pela sua capacidade de direção.
Como geres o teu tempo entre a televisão, os palcos de Lisboa e o Teatro da Terra, a tua companhia em Ponte de Sôr?
No Teatro da Terra faço muitas coisas ao mesmo tempo porque, como deves calcular, os apoios são escassos e o dinheiro que fazemos acaba por ser destinado aos pagamentos de atores e técnicos. Paralelamente, apesar de algum prazer que retiro, vou fazendo televisão porque, essencialmente, me paga as contas. Por questões de calendário, vou estar a fazer esta peça e a filmar uma telenovela ao mesmo tempo. Não é fácil, mas vai-se gerindo o tempo…
Lamentas não poder estar a tempo inteiro no teatro?
Tenho muita pena. Pensava que quando chegasse a esta idade já estaria a fazer qualquer outra coisa, que já não me apetecia estar no teatro. Sucedeu precisamente o contrário. A vontade de estar em palco é cada vez maior, é o sítio onde me encontro absolutamente. Lembro-me de ter 17 anos, estar n´A Barraca a fazer um casting e perceber que o palco era a minha casa. Hoje, isso voltou a acontecer. É a partir do palco que entro na zona de transporte, tal qual uma pastilha de LSD, com o aliciante de transportar quem me vê…
Sentes a adrenalina de transportar?
Como nunca, porque as pessoas são hoje mais transportáveis quando estão numa plateia. Há um público que se habituou a ver teatro, que chega generosamente para ser levado. Isso aumenta muito o valor de ser ator e a energia do momento.
Voltando à tua personagem em Doce Pássaro da Juventude, e com as devidas distâncias, temes o esquecimento como aquele a que é votada a Alexandra Del Lago?
Não sei… Nunca esperei que me chamassem, portanto não sei se alguém me vai esquecer. Cair no esquecimento no sentido de fazeres coisas que ninguém quer ver já é diferente. Não sei como reagiria a isso, mas antevejo que deve ser triste. No fundo, é envelhecer, e lembro-me sempre de um tio com 90 anos a confessar já não entender nada do que os mais novos diziam. O envelhecimento traz muitas coisas, até o esquecimento. É uma inevitabilidade, mas não penso muito nisso.
As primeiras impressões de Ingrid Bergman sobre dois filmes de Roberto Rossellini (8 de junho de 1906 – 3 de junho de 1977), Roma Cidade Aberta e Paisà, que viu em salas de arte e ensaio nos Estados Unidos em finais dos anos 40, fazem uma sumula da marca do realizador italiano na história do cinema. “Ninguém parecia um ator e ninguém falava como um ator. Havia escuridão e sombras e às vezes não se ouvia nem mesmo se via. Mas a vida é assim: nem sempre vemos e ouvimos, mas sabemos, quase para lá do que é inteligível, que algo está a acontecer”, confessava a popular atriz nas suas memórias.
O fundador dos Cahiers, André Bazin, colocava Rossellini, “o neorrealista de inspiração cristã”, na restrita moldura dos cineastas que “inventaram o cinema moderno”, ao lado de Orson Welles e Jean Renoir. O realizador norte-americano Martin Scorsese, acérrimo divulgador dos grandes mestres do cinema italiano, aponta-o como o cineasta que captou “a verdade do que é ser-se humano” e os seus filmes como “o ‘lugar’ onde sempre volto para me inspirar”. A importância da obra de Rossellini acaba por estar descrita nas suas próprias palavras: “o cinema é para mim o empenho de um homem que vive em sociedade”.
Nascido no seio de uma família burguesa de Roma, Roberto Rossellini assina os seus primeiros filmes entre 1941 e 1943, em pleno fascismo. Com o fim da guerra, surge o filme que consagra definitivamente o neorrealismo e coloca em causa a dramaturgia clássica no cinema: Roma Cidade Aberta. Escrito em parceria com Sergio Amidei e Federico Fellini, o filme é praticamente rodado em cima dos acontecimentos, numa estética muito próxima do documentário, recusando efeitos e filmado em cenários naturais, quase como um filme de atualidades. Apesar de parte do elenco ser constituído por não-profissionais (uma das características do cinema neorrealista), Rossellini contou no elenco com dois atores muito populares à época: Anna Magnani e Aldo Fabrizi.
O segundo filme da consagração de Rossellini é Paisà – Libertação. Composto por seis episódios que narram a luta pela sobrevivência de pessoas simples durante a guerra, esta nova obra-prima retrata “os homens e as coisas tais como elas são”. De certo modo, algum do pendor narrativo do melodrama que percorria Roma Cidade Aberta perde-se, e o filme leva o conceito de “autenticidade”, conforme refere Scorsese, a um patamar ainda mais elevado. Sem que o espetador dê conta, muitos dos planos de transição ao longo do filme são excertos dos jornais de atualidades da época que vão sendo intercalados com as sequências encenadas.
A “trilogia da guerra” de Rossellini fecha-se em 1948 com Alemanha Ano Zero. Alvo da incompreensão por parte do público e da crítica, o filme retrata o quotidiano de um rapaz em Berlim que, incitado por um antigo professor, assassina o pai doente. Numa espécie de purgação sobre as sementes do nazismo, o filme é um retrato tremendo da capital alemã do pós-guerra. Marlene Dietrich, com quem Rossellini conviveu numa estada em Paris, terá sido conselheira do realizador, partilhando muitas das experiências vividas quando entrou em Berlim, ao lado dos Aliados, em 1945.
Bergman e a trilogia do sentimento
Uma das características mais reconhecidas a Rossellini era a coerência em relação à sua arte. Depois da má receção a Alemanha Ano Zero e O Amor, tudo parecia apontar numa ida do realizador para a “meca do cinema”, Hollywood. Apesar das portas que se abriam, Rossellini não transigiu e manteve-se fiel a si mesmo e à Itália natal que parecia não o compreender. Entretanto, um dos símbolos maiores do cinema americano, a atriz sueca Ingrid Bergman, preparava-se para ir ao seu encontro, iniciando-se assim uma das mais famosas relações do mundo da sétima arte.
Em 1948, Bergman revelava, em carta endereçada a Rossellini, a sua vontade em ser dirigida pelo já muito aclamado cineasta. Rossellini deixou-se tentar e, um ano depois, partia para Hollywood a fim de acertar um acordo com a estrela e arranjar financiamento para um novo filme. Consta que o produtor Samuel Goldwin recebeu o realizador e terá estado perto de financiar o projeto. Porém, percebeu que se tratava de “uma loucura” quando Rossellini lhe explicou que dirigia sem argumento, que um mapa de trabalho iria depender das condições para rodagem na pequena ilha siciliana de Stromboli e que, à excepção de Ingrid Bergman, não tencionava ter qualquer outro ator profissional.
Stromboli, filme admirável de 1950, acabaria financiado pela RKO e daria a Bergman um dos papéis da sua vida. A história de uma prisioneira de guerra do norte da Europa que aceita casar com um pescador siciliano para fugir a um campo de refugiados, inaugura aquela que ficou conhecida como a “trilogia do sentimento”, juntamente com Europa 51 e Viagem em Itália. Estas três obras maiores têm em comum o olhar “autêntico” de Rossellini sobre um mundo pacificado, mas apenas na aparência. Ao mesmo tempo são os três filmes mais emblemáticos do realizador com Bergman, com quem está casado de 1950 a 1955.
Para além destas seis obras essenciais, esta programação compreende ainda O Amor (1948), outro dos grandes filmes de Rossellini, constituído por duas histórias – A Voz Humana, a partir de Jean Cocteau, e O Milagre, escrito por Federico Fellini –, ambas protagonizadas por uma enorme Anna Magnani; A Máquina de Matar Pessoas Más (1952); O Medo (1954), adaptação do romance de Stefan Zweig e o último filme de Rossellini com Ingrid Bergman; e India (1958), uma viagem ao fascinante mundo daquele país asiático, entre o documentário e a ficção.
Fora desta programação estão algumas obras marcadamente “espirituais” dos anos 50; as que assinou sobre a história de Itália, e que marcam o período pós-Bergman e a experiência indiana; bem como as chamadas “obras didáticas”, e bastante controversas, que dirigiu para a televisão.
Para contar a história do São Luiz é preciso recuar a finais do século XIX, quando um certo Guilherme da Silveira, ator e empresário que fez fortuna no Brasil regressa a Lisboa, e elege o Chiado para edificar um teatro à medida das suas aspirações artísticas. Rodeando-se de um grupo de financiadores, Silveira acaba por encomendar a obra ao arquiteto Ernest-Louis Reynaud que, na Rua do Tesouro Velho, dá escala a um teatro de inspiração parisiense, elegante e cosmopolita que, em homenagem à coroa e à Casa de Bragança (que cedera os terrenos para a edificação), recebe o nome de Theatro D. Amélia.
Inaugurado a 22 de maio de 1894 com a récita da ópera A Filha do Tambor-Mor, de Offenbach, o D. Amélia havia de tornar-se uma das mais distintas salas da época, acolhendo no seu palco os grandes artistas mundiais, como Sarah Bernhardt, Eleonora Duse, Novelli, Maria Guerrero ou Antoine. No foyer do atual teatro, podem ser vistas placas evocativas da passagem destas, e de outras figuras do teatro e das artes mundiais, pela sala da hoje denominada Rua António Maria Cardoso.
À semelhança do infortúnio que quase sempre teima em marcar a história dos grandes teatros do mundo, um incêndio destrói o edifício na noite de 12 para 13 de setembro de 1914, menos de quatro anos depois do Theatro D. Amélia ter dado lugar ao Teatro da República. À época, a companhia residente pertencia ao dramaturgo Lino Ferreira que se muda para o vizinho Teatro Nacional de São Carlos, por sinal, o único dos grandes teatros lisboetas que o fogo não consumiu. Como memória da tragédia, sobre o palco da sala principal, está exposta a imagem de “Santo Amianto”, adereço da peça em cena aquando do incêndio que, diz-se, foi o único salvado da terrífica noite.
Não nos cabendo aqui contar aqui toda a história – até porque à história se juntam muitas outras histórias que os visitantes poderão descobrir in loco –, convém desvendar que, em 1917, pouco depois da reconstrução, o República é adquirido pela família Ortigão Ramos, herdeira de um dos fundadores, António Ramos, passando a denominar-se Teatro São Luiz, em homenagem ao Visconde de São Luiz, por altura da sua morte.
Depois de décadas a passar filmes, a Câmara Municipal de Lisboa adquire o teatro (então denominado São Luiz Cine) em maio de 1971, e em 1999, dá-se uma grande intervenção que passa pelo restauro exaustivo da Sala Principal e pela reconstrução do Jardim de Inverno. Devolvido à cidade em novembro de 2002, o São Luiz Teatro Municipal conta hoje com três salas de espetáculos – incluindo o Teatro-Estúdio Mário Viegas, com entrada pelo Largo do Picadeiro –, e mantém uma programação constante e diversificada nas áreas das artes cénicas e performativas, na música, na literatura e no pensamento. Em suma, um teatro para todos ou, como alguns o definem, “o teatro da cidade”.
O público à descoberta do São Luiz
Juntamente com a aposta numa programação para públicos infantojuvenis (com o programa Mais Novos), o São Luiz iniciou recentemente as visitas guiadas aos bastidores do teatro.
Na opinião de Aida Tavares, atual diretora artística do teatro municipal, “estas visitas permitem uma aproximação dos mais variados tipos de público com este Teatro”. Para além da abordagem histórica e patrimonial, “que é mais vincada nas visitas que fazemos nos primeiros sábados de cada mês, destinadas ao público em geral, aproveitamos as visitas para escolas para explicar aos miúdos como se faz um espetáculo”.
Pelos bastidores, pisando o palco ou explorando as entranhas do teatro, os mais novos podem descobrir o que é um ciclorama, que responsabilidades são acatadas pelo diretor de cena durante um espetáculo ou o que funções desempenha um maquinista teatral. “Sinto que as visitas que conduzimos com as crianças criam um laço de familiaridade com o espaço que as estimula a quererem vir cá. Diria mesmo que este é um contributo essencial para a criação de novos públicos”, sublinha Aida Tavares.
As vistas guiadas ao São Luiz para o público em geral têm o custo de dois euros (grátis para crianças até aos 10 anos) e requerem marcação prévia através do telefone 213 257 662 ou endereço de e-mail visitas@teatrosaoluiz.pt. As visitas para grupos escolares estão disponíveis às segundas e quartas-feiras, e são gratuitas. Mediante contacto prévio, há ainda a hipótese de visitas para grupos organizados.
Aos 45 anos, David Greig é já o mais aclamado dramaturgo escocês da atualidade e dos mais aplaudidos na cena britânica. O seu teatro está ligado à vida quotidiana, aos anseios e frustrações de uma certa geração que perdeu gradualmente as ilusões e, se por um lado é vincadamente universal, por outro são reconheciveis os destroços da sociedade britânica após o thatcherismo.
Cantigas de uma noite de verão, a comédia musical sobre dois trintões às voltas com muitos assuntos sérios, foi a primeira incursão dos Artistas Unidos na dramaturgia de Greig. Agora, em registo mais negro, o coletivo liderado por Jorge Silva Melo propõe duas peças que espelham a necessidade de uma ideia de comunidade que nos proteja do mundo de violência em que vivemos: Os acontecimentos (estreia a 11 de fevereiro) e Frágil (estreia a 20 de fevereiro).
Os acontecimentos, peça musical encenada por António Simão, inspira-se na personagem de Anders Breivik, o militante de extrema-direita que, em 2011, assassinou a sangue frio 68 pessoas. Greig parte do acontecimento terrível para fazer ecoar outros, como os massacres ‘escolares’ de Columbine ou Dunblane. A protagonista é uma mulher que escapou ao massacre e, perante os traumas, decide encetar uma busca para entender o que se passou naquele dia. O coro em cena é a representação da comunidade onde nos podemos encontrar, “onde nos juntamos e cantamos” e onde, provavelmente, podemos encetar o caminho para levantar as questões para as quais parece impossível descobrir respostas.
Em Frágil, Greig reflete sobre a violência que as decisões políticas exercem sobre o individuo. Apesar de escrita para dois atores, o autor reconheceu estarmos a viver em ‘austeridade’, e propôs que a personagem Carolina, psicóloga a recibos verdes, seja sempre interpretada pelo público, seguindo as suas falas através de um power point projetado em palco. Jack, o jovem que necessita de cuidados de saúde mental e, por saber que os perdeu devido a cortes estabelecidos pelo Governo, decide tomar uma atitude radical, é o seu interlocutor.
A intenção de Greig em recorrer a este dispositivo de colocar o público na pele de Carolina é tudo menos inocente. Trata-se de um desafio e de uma provocação para nos fazer pensar enquanto comunidade perante pessoas como Jack, gente que sente nada mais ter a perder, que percebeu que “como está não pode continuar”. E nós? Estaremos nós à altura do papel?
As duas peças de David Greig mantêm-se em cena até 14 de março.
Do centro para a margem. Ou do Cais do Sodré para a Zona J de Chelas. Como foi esta migração?
O objetivo de ir para a Zona J remonta a 2009 ou 2010, consequência do impacto a nível artístico, profissional, e até pessoal, de um trabalho que desenvolvi com reclusos do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus. Simultaneamente, o Cais do Sodré mudou, transformou-se, e começou a deixar de fazer sentido continuar por lá. Quando me apercebi disso, por mais doloroso que tenha sido, procurei a Câmara Municipal de Lisboa no sentido de conseguir um espaço num bairro social da Zona J. Enquanto o processo se ia desenvolvendo, senti a necessidade de parar e de repensar o meu caminho. Foi um par de anos muito duro e difícil, mas absolutamente necessário. Em dezembro do ano passado, fiz um ciclo de espetáculos em vários locais da cidade a partir de Os Sete Pecados Mortais de Brecht. Esses espetáculos traçaram uma cartografia – que me foi necessária para me libertar do Caís do Sodré – e conduziram à Boa Alma que agora inaugura o espaço na Zona J.
Trazer um projeto cultural para uma zona limítrofe, e tão estigmatizada como um bairro social em Chelas, é mais um risco que assume no seu percurso?
O encontro com uma série de pessoas, com quem trabalhei em Vale de Judeus, ligou-me ao bairro. Ali, estabeleci relações de família e amizade. Aos poucos percebi, à semelhança do sucedido no Cais do Sodré há 20 anos, que estava num sítio onde poderia desenvolver um trabalho com consequências. Para mim e para as pessoas em redor. Sinto isso desde que a Casa Conveniente ali chegou; sinto isso no modo como me penso ao nível pessoal e artístico. Se a Casa Conveniente sempre se deixou influenciar pelo Cais do Sodré, esta Casa Conveniente/Zona Não Vigiada está a ser influenciada pela Zona J. É claro que tenho a noção do risco. Sei que nos espera um longo e moroso caminho até conseguirmos inscrever este novo espaço na cidade. Mas quero muito contribuir para dar centralidade à margem, perceber como é que se consegue colocar um ‘bairro-ilha’ nessa centralidade através de um projeto artístico. Vai levar tempo, há que quebrar estigmas, superar medos, e sei que vai ser necessário muita insistência. Mas, vamos conseguir.
A Casa Conveniente/Zona Não Vigiada será, necessariamente, um projeto diferente da Casa Conveniente?
É a Casa Conveniente, é o nosso projeto, mas com novas pessoas e num novo sítio. É recomeçar tudo de novo. A memória e o lastro da Casa Conveniente foram, no fundo, trazidos nesta viagem que fizemos em dezembro passado, e que quebrou um tempo de inatividade. Na Zona J estou a trabalhar em circunstâncias completamente diferentes, logo, sei que o meu trabalho também se vai alterar, se vai transformar, mas olho para esse desafio – e risco – como algo bom.
Entre o Cais do Sodré de 1991, ano em que surgiu a Casa Conveniente, e a Zona J de Chelas, hoje, que diferenças e semelhanças encontra?
Há semelhanças, apesar das muitas diferenças. O Cais do Sodré naquele início dos anos 90 era completamente diferente daquilo que é hoje. Era, também, uma zona marginal. Houve desconfianças ao início, mas depressa se esbateram quando as pessoas da zona se aperceberam que a natureza do meu trabalho era desenvolver um projeto artístico. Sei que valorizei e dignifiquei a vida de muitas pessoas. O trabalho que vou desenvolver na Zona J vai, por um lado, destruir um rol de preconceitos e estigmas que existem no bairro. É curioso, mas às vezes sinto-me como se estivesse numa aldeia, numa comunidade que cultiva os afetos e a entreajuda. As pessoas estão felizes por estarmos ali, por estarmos a erguer um projeto que pode transformar a ideia que a cidade tem do bairro, e o inverso. Quero, e desejo, criar movimentos que vão de fora para dentro e de dentro para fora, por isso, esta Casa Conveniente/Zona Não Vigiada é, acima de tudo, um espaço de comunhão entre pessoas.
Qual a importância do programa municipal BIP / ZIP no nascer do projeto?
A Câmara apoia-nos de duas formas. Pelo arrendamento por valor simbólico do espaço e através do programa BIP/ZIP, tendo em consideração o envolvimento em diversas atividades desenvolvidas da comunidade local em todas as suas diferentes valências. A reconstrução do espaço, que é uma loja, tem sido feita por pessoas que vivem no bairro, por exemplo. O objetivo é que essas pessoas sejam parte do projeto.
Este novo espaço estreia-se com A Boa Alma que, citando-a, vem na sequência de um percurso inverso de Heiner Müller, a quem dedicou um ciclo, para Bertold Brecht…
Durante o tempo em que tive que fazer esta migração do Cais do Sodré para Chelas, Brecht foi o autor que me acompanhou. Ele é o autor do teatro absolutamente total. Através dele, e com ele, estou a conseguir recomeçar. O Müller conduziu-me ao Brecht, porque foi o dramaturgo a quem dediquei um ciclo, que me acompanhou durante o trabalho em Vale de Judeus e, consequentemente, me conduziu até Chelas. Simultaneamente, foi o Müller que me fez descobrir, Brecht. Müller continuou-o, transformando-o.
Porquê fazer esta peça a solo?
Como é um recomeço, preciso de me recolocar enquanto intérprete. A Boa Alma permite-me falar do passado, do futuro, do sítio onde estou. Estreei-me no Cais do Sodré com A Virgem Doida, um solo, e quero estrear-me na Zona J também com um solo.
Optou por uma versão reescrita (por Luís Mário Lopes) e por novos temas musicais (de JP Simões)…
Mas, seja como for, é um Brecht. Com “a boa alma” da Mónica, do JP Simões e do Luís.
Este é um mundo em que tudo se tornou mais veloz, mais imediato, mais efémero. Ecrãs tácteis ampliam-nos a realidade, comandos de televisão viciam-nos em zapping e quem não está on, está offline, ou seja, é como se não existisse. A troca de informação comanda a nossa vida, provém de todos os lados e de um cem número de fontes. Jorra tão brutalmente que a própria realidade já não é o que era. Nem mesmo a maneira como nos relacionamos com aqueles que amamos e queremos.
Todas estas constatações estão presentes na peça Love and Information, escrita em 2012 por uma das grandes dramaturgas britânicas contemporâneas, Caryl Churchill (n. 1938). Num ilustrativo mosaico composto por mais de cinquenta micropeças e dezenas de intermezzos, a autora coloca para lá de uma centena de personagens às voltas com o amor e os afetos, com as superficialidades e tragédias da sociedade de consumo, com a política e os terrorismos, com a ciência e a tecnologia e com a memória humana que os smart phones que temos nos bolsos parecem fazer substituir.
Fazer caber todo este nosso mundo num palco foi o desafio abraçado por João Lourenço, o encenador que confessa ter apostado nesta peça de Churchill porque gosta de se desafiar com aquilo que julga não conseguir fazer. “A autora não fornece qualquer indicação sobre cada uma das cenas”, sublinha, “e isso permite-nos uma ampla liberdade”. Sabe-se que tudo tem de se passar a um ritmo vertiginoso, ou não fosse esta uma “peça em zapping” onde o espetador parece experienciar a sensação caseira de estar em frente à televisão, deambulando sem norte pelos canais à distância de um toque no comando.
Mas essa velocidade (e aparente simplicidade) que caracteriza Amor e Informação não dispersa o olhar crítico sobre aquilo que nos rodeia. O humor fino das cenas, sempre pautadas pela dose certa de mordacidade e uma profunda e acutilante inteligência, colocam-nos perante nós mesmos, e os outros. A encenação hábil e engenhosa de João Lourenço realça essa leitura, e exponencia as interpretações “caleidoscópicas” do elenco, composto por 13 atores de diferentes gerações.
É teatro, sim. E tem o mundo todo lá dentro.
Perdidas algures na gélida província russa, em torno da mesa da sala da casa de família, as irmãs Olga, Masha e Irina preparam-se para comemorar o aniversário da última. A ocasião é talvez um pretexto, ou um argumento, para falar do passado e sonhar ainda com um futuro noutro tempo e noutro local (Moscovo, ou, porque não, Londres…).
Na verdade, em palco não estão propriamente as três irmãs, mas sim Graça Lobo, Mariema e Paula Só, sendo as suas memórias pessoais, do teatro e da vida, a confundirem-se com as das personagens de Tchèkov. Por isso, Martim Pedroso, artesão deste “espetáculo-homenagem”, se refere a As Três (Velhas) Irmãs como “uma memória de Tchèkov”, carregada de imagens projetadas por três grandes atrizes do teatro português.
Mas, este não é um espetáculo feito apenas de passado. Graça Lobo conta as suas histórias com a jovialidade de quem permanece eternamente jovem, Mariema continua a cantar como se tivesse 20 ou 30 anos, e Paula Só representa uma Irina tão incrivelmente virginal como se o tempo não tivesse passado por ela. Como sublinha Martim Pedroso, “o artista nunca perde a vontade de fazer o seu trabalho, porque sempre emprestou a vida à arte e a arte à vida”. Talvez por isso, “a peça simboliza o querer viver” e deixa um lastro de futuro, mesmo quando se sabe que o tempo não cessa a sua marcha.
Quando passam quase 40 anos sobre o assassinato de Pier Paolo Pasolini (1922-1975), a obra deste vulto maior da cultura italiana do século XX vai marcando o panorama teatral português por estes dias. Depois da KARNART ter explorado o romance inacabado Petróleo, ou do Teatro da Cornucópia ter apresentado a “tragédia clássica” Pílades – e, antes disso, ter permeabilizado o “seu” Íon de Eurípedes com um trecho de Pasolini –, John Romão apresenta, nos próximos meses, duas leituras do díptico Teorema e Pocilga, textos que resultaram em filmes, de 1968 e 1969, respetivamente.
No primeiro espetáculo, Romão regressa ao “ambiente” que já havia contaminado a peça Cada Sopro, uma “reapropriação” de Teorema pelo australiano Benedict Andrews, coencenada com Paulo Castro para a edição de 2013 do Festival de Almada. O encenador (e, neste caso, também ator) apresenta no Teatro São Luiz “uma experiência sensorial e de contemplação”, de certo modo mais próxima do filme homónimo e das problemáticas sobre “o sagrado e a linguagem” que rodeavam Pasolini à época em que o dirigiu.
“A função de ver é essencial no filme, que praticamente não tem palavra”, sublinha Romão. Em Teorema, o espetáculo, respeita-se a tese pasoliniana da “linguagem da ação” associada ao cinema enquanto “realidade tout court” (o espetáculo integra, a propósito, o Festival Temps d’Images). Assim, a cena torna-se “cinematográfica, apesar de a cortina subir e descer recorrentemente”. Dispensa-se praticamente a “língua escrita-falada”, buscando-se uma procura do sagrado (na contemplação do movimento) aqui encarnada por 12 skaters que assumem o papel de “estrangeiros invasores” do conforto e segurança do “palácio burguês”.
Em Teorema “busco uma experiência de sacralização que encontre a graça na suspensão, no salto, na queda”, sublinha o encenador. “Os skaters [que nesta leitura substituem o enigmático ‘visitante’ que surge para colocar em causa a “ordem” burguesa que “perdeu o sentido do sagrado”] funcionam como figuras profanas, móbil para a captação do desejo, representando enquanto grupo, ícones da sociedade capitalista de hoje. Isso dá-lhe um estatuto de entidade divina, iconográfica e fetichista”. Simultaneamente, “procuro neste grupo algum paralelismo com o subproletariado que Pasolini não se cansou de filmar. Também os skaters são marginais, embora filhos da sociedade de consumo e representem, hoje, uma marginalidade que se tornou ‘estilo’, logo assimilada pelos padrões sociais em que vivemos.”
Num espetáculo para skaters e ator (esteve para ser um bailarino, por sinal o antigo colaborador de Pina Bausch, Damiano Ottavio Bigi, que Romão conheceu em 2012, em residência artística na Bienal de Veneza) há ainda outro elemento preponderante em palco: um músico – que está para o filme como a personagem do ‘mensageiro’. O acordeonista Fábio Palma interpreta, ao longo do espetáculo, a peça “religiosa, quase barroca mas muito experimental” Et exspecto da compositora russa Sofia Gubaidulina. “Agradava-me ter a presença do acordeão, um instrumento conotado com a música de raiz popular; e essa sonata de Sofia tem muito ar, esse ar que ela trabalha exemplarmente e que eleva os protagonistas em cena”, frisa.
Em janeiro, Pocilga
Se Teorema é “uma peça visual e sonora, feita em função do movimento”, Pocilga é uma peça para atores com a palavra no epicentro da ação. Aos olhos do desfecho dessa vida violenta que Pasolini viveu, reforça-se a ideia de os dois textos/filmes formarem um díptico. “Ambas parecem antecipar a morte do autor. O modo como leio Teorema sublinha, dentro das suas múltiplas camadas, as circunstâncias em que morreu; Pocilga era assumido pelo próprio como um texto autobiográfico, no sentido em que as práticas privadas do protagonista eram tão reprovadas socialmente como a homossexualidade do autor. Mas, o final vai ainda mais longe e olha sobre o modo como o desejo devora o homem”, sublinha Romão.
Na sua aparente simplicidade, Pocilga é uma peça sobre identidade e política. O encenador conjuga elementos saídos das duas narrativas paralelas do filme (uma ambientada numa comunidade canibal do século XVI e a outra na Alemanha dos anos 60 do século passado) para contar a história do filho de um candidato a primeiro-ministro que tem como segredo as visitas regulares à pocilga para manter relações sexuais com porcos. Quando o pai descobre que o seu adversário político teve um importante papel nos crimes do nazismo, é confrontado com o vício privado do filho, e enceta um jogo de ocultação que culmina num desfecho trágico.
Pela primeira vez encenada em Portugal, a peça conta com atuações de Albano Jerónimo, João Lagarto, Ana Bustorf, Cláudio da Silva, Pedro Lacerda, Mariana Tengner Barros e Paulo Pinto, no papel de Espinoza, o filósofo, encarnado num porco. Como diria Pasolini, “a burguesia é só verborreia” e Pocilga, nesta versão de John Romão, faz-lhe efetiva justiça.
Pasolini, 40 anos depois
Crime político, ou “o desejo que devora o homem”? Pasolini foi assassinado a 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia, a alguns quilómetros de Roma. As circunstâncias da morte permanecem até hoje por esclarecer, sabendo-se que terá sido espancado e, depois, atropelado com o seu próprio carro. As rodas de skate que rolam em palco no Teorema de Romão cercam o protagonista (o próprio Romão). Projetam essa morte, mas ao mesmo tempo parecem fazer viver uma obra e um pensamento que parecem irresistíveis aos dias de hoje. Será pelo teor anticonformista? Será pela importância de voltarmos ao político?
Romão confessa ter sido absolutamente casual esta aproximação a Pasolini. “Terá acontecido em 2012 esta fixação na sua obra. Começou, penso, numa sugestão do Jorge Silva Melo que selecionou algumas peças enquadráveis no trabalho que vinha desenvolvendo, nomeadamente uma de Genet e, precisamente, a Pocilga, de Pasolini”. Mas, compreende “o fenómeno que alguém designou como Pasolini renaissance”, e que até tem filme a estrear brevemente [Pasolini, de Abel Ferrara, com Willem Dafoe no papel principal]. “Fazer Pasolini é inevitavelmente um ato político, e a sua obra e pensamento, até porque era um marxista empenhado e envolvido, mantêm-se profundamente atuais e urgentes”. Porém, nestes dois espetáculos, confessa, “não senti a necessidade de ser tão político quanto Pasolini foi.”
Como justificar então este apelo? “Sinto um eco constante de Pasolini. Encontro-me enquanto criador no trabalho dele, que é complexo e desafiante. Há muito, mesmo muito para descodificar…” E estas duas peças são isso: “nada do que se diz é, tão só, aquilo que se disse”. Tal qual a realidade que Pasolini fixou, pensou e legou aos vindouros.
Em tempos como os que vivemos, porquê escolher como tema para esta nova criação um movimento tão vincadamente romântico?
O projeto começou por nascer de um desafio da Luísa Taveira [diretora artística da CNB] para criar uma peça com orquestra, que envolvesse músicos e bailarinos de uma forma não convencional, ou seja, não ter uns no palco e outros no fosso de orquestra. Com o Pedro Carneiro, e após muitas conversas, chegámos a este movimento e às ideias que ele preconiza. Apesar de pertencer a uma época e a um contexto muito específico, a essência do sturmismo ultrapassa a questão da emoção versus razão e a oposição ao classicismo vigente no século XVIII. Este movimento está profundamente ligado à essência do ser humano, do homem em crise por apego à forma. A forma é uma recorrência humana do ser gente, que cada um de nós assume para se sentir mais seguro no mundo. Para nos libertarmos, precisamos de renunciar às formas existentes e criar outras. É essa a dinâmica do acontecer, logo todos os tempos são tempos para abordar esta temática.
Mas, aos olhos do sturmismo, essa libertação das formas que conduz a novas formas é deveras emocional…
Por isso optei por tratar a peça a partir das emoções básicas dos seres humanos, estabelecendo quatro ciclos: o do medo, o da alegria, o da tristeza e o da raiva. Através destas emoções criei uma forma coreográfica que se destrói a partir de cada uma dessas mesmas emoções. E, ao criar uma nova forma, estabelece-se um ciclo contínuo de destruição e criação.
Pedro Carneiro foi o parceiro ideal para um projeto como este?
O Pedro é um músico especialmente intuitivo e criativo. Neste espetáculo, a partir das sinfonias de Haydn, sobretudo a partir das sinfonias n.º 44 e reminiscências da 45, temos elementos de uma enorme capacidade dramatúrgica que o Pedro reajusta e recompõe de um modo extraordinário. Sinto que em Tempestades estamos a viver um momento único de plenitude criativa.
Independentemente de Haydn ser o grande compositor deste movimento, a sua música foi uma escolha inteiramente consensual?
Absolutamente. Trata-se do compositor mais representativo do sturm und drang, foi um visionário e alguém que mudou a história da música. As suas composições têm a marca do movimento…
Como é trabalhar a partir da sua música?
O coreografo não precisa de trabalhar a música tal qual aquilo que ela nos transmite. O desafio é, precisamente, não cair nessa armadilha. Por natureza, uso a música mais como ambiente do que como suporte para criar movimento. Aliás, todo o material coreográfico de Tempestades foi criado sem música para evitar contaminação. Os bailarinos trabalharam quase sempre no silêncio, ou, pontualmente, com música que nada tem a ver com aquela que vamos usar no espetáculo.
Para além da CNB, nos últimos anos tem coreografado para outras estruturas, nomeadamente as companhias de dança de Angola e Moçambique. De que modo é que estes trabalhos têm marcado a sua perceção da dança e o seu percurso enquanto coreógrafo?
Se estiver confinado a trabalhar sempre com as mesmas pessoas vou ter a tendência de afunilar as minhas ideias. Lá está aquele conforto da forma que é o mote de Tempestades. Trabalhar com pessoas de outros locais, com outras vivências e noutros contextos é extremamente enriquecedor. As pessoas têm resposta física em função da sua latitude e isso tem-me ensinado muito. Quando chego a África não vou com a pretensão de impor uma maneira de estar e de fazer. Em Moçambique, por exemplo, percebi que as pessoas pensam com o corpo, ou seja, o gesto é integralmente uma extensão do pensamento que, incrivelmente, já sai organizado em dança. Nesse sentido, quando me deixo contaminar por estes ambientes, sinto que acrescento mais-valias à minha condição de criador. Se há medo que tenho é o de achar que “já sei”. O que tal implica são riscos que não tenciono correr porque, aquilo que me move, é conseguir reinventar-me, seja como coreógrafo, seja como pessoa.
Como é que avalia o estado da dança em Portugal tendo em conta o seu passado enquanto bailarino da CNB?
Tudo é diferente. Na época em que dancei, a companhia teve um papel importante enquanto museu vivo da dança. Porém, durante anos, fechou-se quase por completo no repertório. Só para se ter uma ideia, ao longo dos quase 20 anos de carreira como bailarino fiz apenas um papel de criação, tudo o resto eram reposições. Hoje, tudo é diferente. Na CNB, por exemplo, tudo se altera com a entrada do Jorge [Salavisa] que abriu portas a novos coreógrafos. Algo que a Luísa continuou e aprofundou, trazendo para a CNB pessoas de todas as áreas. Hoje, Portugal tem um leque de criadores extraordinários, gente com outra visão, com uma formação que lhes dá uma perspetiva mais ampla da dança. E a minha geração também está a aprender com eles.
Ainda sente vontade de dançar?
No estúdio ainda me perco um pouco, mas subir a um palco não. Confesso que não dei conta de ter deixado de dançar, porque um dos meus maiores prazeres é transmitir com o meu movimento aquilo que estou a sentir. E ver o movimento nascer no corpo de outra pessoa é algo que me dá uma enorme adrenalina. Tal qual como quando os meus bailarinos sobem ao palco para fazerem o espetáculo.
Há pelo menos três razões incontornáveis que levam Luís Castro e a KARNART a reincidir na obra de Raúl Brandão (1867-1930): o universo das personagens, a marca daquilo que poderíamos designar como “portugalidade” e as potencialidades performativas dos seus textos. A Farsa, romance datado de 1903, conjuga-as na perfeição. As personagens são um “espelho social”, tão particulares como universais; “os lados sociológico, antropológico e telúrico” vincam uma certa ideia de portugalidade, que se encontra mais próxima dos nossos tempos do que supomos; e o modo como a palavra “humaniza as coisas do mundo” oferece um amplo campo de experimentação ao nível performativo e plástico.
Para adaptar o texto de Brandão à linguagem criativa da KARNART, Castro procedeu a um intenso trabalho dramatúrgico que conduziu à expressão cénica de duas partes distintas no espetáculo. Numa primeira, o móbil é sobretudo performativo, com Sara Carinhas a entregar-se à corporalização das várias personagens do romance, sendo o movimento e o gesto partículas materializáveis do caráter dessas mesmas personagens e da sua imanente ligação ao mundo, à paisagem e à terra (o “lado telúrico” da obra de Brandão que muito seduz o diretor do espetáculo). A atriz é peça de museu, “objeto instalado”, até substituir a narração em off e humanizar-se ao ser ela mesma a assumir a palavra. Segundo Luís Castro, um trabalho como este requer “a capacidade técnica e o rigor de uma atriz como Sara Carinhas [que trabalhara com a KARNART em 2010, em Húmus], tão eficaz no campo performativo e plástico como enquanto atriz no sentido mais ‘clássico’.”
Na segunda parte do espetáculo, a “materialização” da atriz encontra um novo desafio. Tal qual objeto vivo (uma boneca, talvez) de olhos vazos, cega como uma sombra, percorre sete mesas, cada uma com três níveis, construindo 21 pequenas instalações, num processo que o público é convidado a assistir bem de perto, enquanto a narrativa e a excelente paisagem sonora criada por Adriano Filipe nos conduzem pelas tortuosas fragas do humano. Para Sara Carinhas, “apesar da exigência e da meticulosidade requerida, a construção dos objetos em tempo real assemelha-se ao trabalho sobre os textos. É necessário dominá-los, senti-los e saber como os manipular.”
A Farsa, que estreia a 25 de setembro na Sala-Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, é mais do que um espetáculo de teatro. É uma experiência sensorial de luz e sombra pelos trilhos das palavras e das imagens, onde somos livres de desfragmentar contextos e emoções a cada momento. Um processo que não se esgota na última récita no D. Maria II. A partir de 29 de outubro, o espetáculo continua no Gabinete Curiosidades Karnart, onde, como esclarece Luís Castro, será apresentada “uma variável perfinst de reflexão sobre este mesmo objeto”.
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