Como é que Mary Poppins se prepara para salvar o mundo?

Na verdade, Mary Poppins não salva nada! [risos] Tudo parte das promessas de um futuro brilhante e maravilhoso que ela vem anunciar. Ela promete um mundo radioso que as outras personagens vão rejeitar, provavelmente, porque já não acreditam em nada. Esse é o lado político que parece estar presente na peça, estabelecendo um paralelismo entre esta Mary Poppins e aqueles que tudo prometem. Há uma personagem na peça que diz “somos novos demais para ter já um futuro tão viçoso”, e isso sublinha aquilo que nós, sobretudo os jovens, estamos a viver quando nos dizem que temos de passar um mau bocado para merecer dias melhores.

Mas, apesar de já não ser possível acreditar em promessas, as coisas ainda correm bem a Mary Poppins. Ou não?

A peça começa com um monólogo que corresponde à apresentação dela para conseguir um novo emprego. Na verdade, acho que também ela já viveu melhores dias, e agora até tem de se sujeitar a entrevistas de emprego…

Porquê Mary Poppins?

Porque foi dos filmes que mais vi na infância. Lembro que o tinha gravado numa cassete VHS e o revia vezes sem conta. Devia ter uns quatro anos quando o vi pela primeira vez, portanto, nem sequer sabia ler. Curioso é que, quando aprendi a ler e o voltei a ver, fiquei com a sensação de que o entendia desde sempre.

Como é que nasceu a peça?

Foi graças ao [Jorge] Silva Melo. Na altura estava a fazer A Morte de Danton, de Buchner, com os Artistas Unidos, e ele falou-me de um encontro de jovens dramaturgos, promovido pela Sala Beckett, em Barcelona. Vi como poderia inscrever-me e enviei o currículo. Para participar era necessário apresentar um texto dramatúrgico inédito, para um espetáculo de cerca de 20 minutos. O tema era A Era dos Desejos

E como é que ligaste essa “era dos desejos” a Mary Poppins?

A minha visão da Mary Poppins é a de uma fada-madrinha sem varinha, logo associei a personagem a alguém que realiza desejos. Como estava com uma enorme dificuldade em iniciar o texto, lembrei-me de um monólogo que tinha escrito em 2010 e adaptei-o à “voz” da Mary Poppins. Depois, decidi coloca-la junto de uma nova família, que não se inspira na do filme, nem sequer diretamente numa família portuguesa. Digamos que o que se passa nesta peça poderia acontecer hoje, em qualquer lugar do mundo.

O espetáculo acabou por ser feito em Barcelona, mas também nalgumas cidades dos arredores de Lisboa. Como é que o público tem reagido a esta versão de Mary Poppins?

A minha Mary Poppins é muito latina, muito mais descontraída e histriónica do que aquela personagem tipicamente britânica do filme. Por isso, alguma estranheza acaba por se refletir no público, e surpreendê-lo. Em Barcelona, como a peça foi representada em catalão e inglês, a musicalidade que tentei imprimir ao texto ficou algo comprometida e, talvez, a sensação de estranheza que passou para quem a viu lá tenha sido devida a isso mesmo.

Como é que o ator Ricardo Neves-Neves se transformou em dramaturgo?

Foi ainda no Conservatório que comecei a escrever, mas sem a pretensão de fazer da dramaturgia a minha profissão. Aquilo que queria era ser ator. Um dia, umas notas que tomei acabaram por se transformar numa peça que dei a uns colegas para ler. E, às tantas, como a tinha escrito, acabei por encená-la. Começou por chamar-se O Regresso de Cassandra, mas achei mau e mudei para O Regresso de Natacha… confesso que não entendo aonde é que vi as melhoras [risos]. Por incrível que pareça, essa peça, que escrevi em 2005, continua a ser muito solicitada e ainda há pouco tempo foi representada, apesar de, confesso, sentir por ela algum desconforto.

Para além de teres trabalhado com grupos como os Primeiros Sintomas, és fundador do Teatro do Eléctrico, onde tens desenvolvido a maior parte do teu trabalho enquanto dramaturgo e encenador. Como é que nasceu esse projeto?

Poucos meses depois de acabar o Conservatório, em 2006, reuni colegas e começámos a trabalhar juntos, apesar de, oficialmente, o Teatro do Eléctrico ter sido fundado dois anos depois. Foi, também, a resposta que encontrei para poder continuar a trabalhar com os meus colegas de turma e, assim, desenvolvermos um projeto que considero dotado de muita seriedade e empenhamento. Acima de tudo, o Teatro do Eléctrico dá-nos prazer. E isso, por vezes, é muito mais importante do que um eventual retorno financeiro.

O fado tem muitas vezes associado a ideia de destino e, por isso, é inevitável perguntar quando é que sentiu que o seu destino era o fado?

Foi relativamente cedo. Comecei a cantar o fado aos 23 anos e um par de anos depois ficou claro na minha cabeça que havia de ser esse o meu destino. O início foi feito timidamente e de forma amadora, mas o público aceitou-me muito bem. Até hoje.

Recorde-nos a sua primeira gravação.

O meu primeiro disco era um single, inserido num disco do muito popular Grupo Mário Simões. À época editavam-se discos de 45 rotações com quatro faixas e eu gravei um fado de minha mãe [a fadista Lucília do Carmo] acompanhado, imagine, por piano, guitarra elétrica, bateria, baixo e um coro vocal. Uma autêntica loucura… mas que passava na rádio de manhã, à tarde e à noite…

Que fado era esse?

Chamava-se Loucura, um dos grandes fados de minha mãe, com autoria de José de Sousa, e o único que eu sabia cantar à época.

O seu segundo disco também não foi uma gravação propriamente convencional para aquilo que era o fado…

Nada mesmo. Foi gravado com uma orquestra sinfónica, dirigida por um grande músico, o maestro Joaquim Luís Gomes, referência, infelizmente esquecida, da nossa música ligeira. Foi também um grande sucesso junto do público e isso convenceu-me nitidamente que este seria o meu caminho. A partir dai, nunca mais parei…

Mas, ao que se sabe, o seu pai tinha outros projetos para si…

Infelizmente o meu pai faleceu antes de eu ter abraçado este percurso. Mas importa referir que mais do que ter projetos para mim, o meu pai delineou-os muito bem. Quando acabei o então 7.º ano do liceu, mandou-me estudar idiomas para um colégio na Suíça. Era um sítio para filhos de milionários, e sabe-se lá os sacrifícios que meu pai e minha mãe fizeram para eu poder estudar ali. Em relação ao fado, quando era miúdo e cantava, o meu pai emocionava-se muito, mas deixava bem claro: “mais artistas na família, não!”. Hoje, e penso não estar enganado, estou certo que estaria muito orgulhoso com a decisão que tomei. Até porque, para ele, um princípio fundamental era que qualquer coisa que fizéssemos na vida fosse bem feito.

E a sua mãe? Como é que depois dos sacrifícios feitos para que tivesse uma vida, digamos, mais convencional, encarou a decisão de ser fadista?

Com a morte do meu pai, fui chamado à gestão da casa de fados [O Faia] dos meus pais. A minha mãe, que achara alguma graça aos meus primeiros passos no fado, era a vedeta, o grande chamariz, mas incapaz de assumir sozinha a gestão da casa. Passado uns tempos, comecei também a cantar lá e, como os grandes fãs dela – que eram pessoas com um entendimento superlativo do fado – lhe diziam “o teu miúdo tem jeito”, isso foi acontecendo com maior regularidade. Poucos anos depois, juntávamos na casa públicos muito diferentes, uns que vinham pela minha mãe, outros por mim, o que era extremamente interessante. Objetivamente, em relação à aceitação dela da minha vontade de ser fadista, penso que só aconteceu devido às considerações de três mestres: o Alfredo Marceneiro, que gostava muito de me ouvir e chegou a ser meu conselheiro; o Frederico de Brito, que acabou por escrever-me fados fabulosos e dizia à minha mãe “Lucília, o teu rapaz tem futuro!” – e como ele contribuiu para esse futuro! –; e o Joaquim Campos, um contemporâneo do Marceneiro, que um dia vai à nossa casa de fados para ouvir a minha mãe e me descobre como fadista. Com o apoio destes três grandes, a minha mãe acabou por aceitar a decisão.

Como é que recorda essas noites n´O Faia, lado a lado com a sua mãe?

Com grande saudade. Era formidável ter dois públicos na mesma casa de fados, o meu e o dela. Os da minha geração eram surpreendidos com a qualidade de fadista da minha mãe e os da geração dela diziam-lhe “o teu filho canta cada vez melhor”. Foram 20 anos a cantar quase todas as noites. E foi uma grande oficina – sem microfones, sem luzes, sem artifícios, com o fumo dos cigarros e dos charutos. Uma verdadeira escola…

Como é que foi passar desse ambiente para os grandes palcos?

Lembro especialmente um concerto em 1980, no Olimpia de Paris. O Gilbert Bécaud ficou muito surpreendido com a forma como eu preparei em cerca de duas horas o cenário, as luzes e tudo o resto, e geria tudo isso durante a atuação, e pergunta-me: “de onde é que tu desembarcaste?”. Eu respondi-lhe: “tu estás num país de cultura, onde os músicos estão habituados aos grandes palcos; eu estou a pisar um grande palco depois de anos a fio a cantar nas condições mais improváveis”. E contei-lhe que cheguei a atuar em sítios onde, quando não havia sequer colunas de som, a voz era transmitida por cornetas. Penso que isto explica como foi importante para mim a aprendizagem em condições pouco convencionais e depois passar para os grandes palcos. Foi isso que fez de mim um “bicho de palco”. Tanto que, onde me sinto como peixe na água é sobre o palco, e ao longo dos anos tenho dispensado o psiquiatra porque é ai, precisamente, o sítio onde faço a minha catarse.

1977 é um ano incontornável na sua carreira pelo lançamento daquele que será, porventura, um dos álbuns mais citados da música portuguesa, Um Homem na Cidade

Essa é uma apreciação vossa, não minha… Eu fiz tantos outros discos! É certo que há cantores que ficam famosos por um tema e eu tenho um disco inteiro… Mas é como se limitássemos os grande discos de Amália ao Busto e ao Com que voz, esquecendo que ela gravou outros álbuns maravilhosos.

Mas reconhece que, na sua carreira, é um momento incontornável, até pela ligação criativa ao José Carlos Ary dos Santos.

Claro que sim. Que bom na vida é olhar para trás e afirmar que tivemos alguns privilégios. Eu tive alguns, e um deles foi ter-me cruzado com o José Carlos. Foi crucial para mim e para o fado. Um Homem na Cidade nasceu da vontade dele de escrever sobre Lisboa e fazer um álbum conceptual sobre a cidade, mas, sobretudo, de disfrutar da liberdade conquistada no 25 de Abril. Eu percebi o espirito, embora tivesse sido forçado a travá-lo em momentos em que ele resvalava para o discurso panfletário. O José Carlos tratava-nos por “sobrinhas” – ele era a “tia velha” – e, em resposta às minhas objeções, dizia: “acho que a ‘sobrinha’ está muito exigente e um pouco reacionária”. Mas fi-lo ver que devíamos fazer um disco que perdurasse e que, ao longo dos anos, fosse capaz de ser sempre atual. E ele aceitou isso muito bem. Depois, com a sua genialidade, aconteceu o resto e, apesar de muita gente não acreditar, houve letras de fados naquele disco escritas em pouco mais de 45 minutos. Porque ele não era só um génio, era também um repentista. Pessoalmente, foi um grande amigo, um homem insubstituível, de quem sinto uma enorme falta.

O que é também muito interessante no disco são os autores das músicas serem compositores pouco ou nada ligados ao fado, como o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho ou o António Vitorino de Almeida…

Os grandes autores do fado clássico tinham desaparecido, portanto fomos à procura de novos músicos, pessoas oriundas dos mais variados géneros. Isso tornou ainda mais maravilhoso fazer esse trabalho. Foi, na verdade, uma experiência inesquecível… Mas, deixe-me dizer que das minhas ligações criativas ao José Carlos Ary dos Santos, lamento a pouca atenção dada a um disco chamado Um Homem no País [1983], que gravámos com ele já um pouco diminuído, mas ainda assim fabuloso. Era um disco muito à frente do tempo, louco mesmo…

Para além desses discos que fez com o Ary dos Santos, há algum outro de que guarde uma memória especial?

Poderia citar muitos outros. Mas gosto especialmente do Mais do que amor, é amar [1986], onde reuni alguns dos fados clássicos, aprendidos e ouvidos quando criança, e coloquei sobre esses mesmos fados versos de grandes autores portugueses que nunca haviam sido cantados, como Teixeira de Pascoaes, Antero de Quental ou José Saramago. Isso aconteceu numa altura em que o fado não estava a dar, o que fez com que esse disco esteja praticamente esquecido.

«Desde criança que ouvi cantar as grandes figuras do fado, que o faziam de uma forma absolutamente inesquecível, pelo que assumo ter pelo fado tradicional um enorme respeito.»

 

Ao longo destes 50 anos, nunca se cansou de pesquisar no fado, e até de enervar os puristas…

Às vezes, as pessoas pensam que tenho o objetivo de inventar a pólvora, de causar danos… Mas não é nada disso. Dentro da história do fado, cada pessoa tem a sua e a minha é esta que fui construindo ao longo destas décadas. Desde criança que ouvi cantar as grandes figuras do fado, que o faziam de uma forma absolutamente inesquecível, pelo que assumo ter pelo fado tradicional um enorme respeito. Contudo, se essa gente maravilhosa cantou o fado daquela forma, o que é que eu poderia acrescentar ao fado? Por isso, assumi, por exemplo, cantar o “fado vianinha” com uma orquestra, convidar um músico extraordinário como o Carlos Bica [contrabaixista de jazz] para tocar comigo, ou, como aconteceu na Alemanha, cantar fado acompanhado por uma orquestra de sopros. Vejo o fado tradicional como o meu alimento básico, mas tenho que me motivar e por isso sou, e serei sempre, um pesquisador.

Como estamos prestes a comemorar os dois anos da distinção do fado como património imaterial da humanidade, não posso deixar de perguntar como foi ter sido, ao lado de Mariza, o embaixador dessa candidatura vitoriosa?

Foi uma enormíssima honra e, quando se concretizou, foi uma alegria sem paralelo em toda a minha vida, exceção feita às de ordem pessoal, mas superior às da minha carreira. Foi uma conquista irrevogável e inapagável, e como sempre disse desde o início, Lisboa é uma cidade que tem, entre outras coisas, uma canção que é seu património, que é património dos portugueses e, desde há dois anos, de toda a humanidade.

A história de como se tornou embaixador da candidatura é bastante curiosa. Quer partilhá-la?

Em 2004, o Dr. Santana Lopes, presidente da Câmara Municipal de Lisboa à data, anunciou numa sessão de Câmara que seria lançada a candidatura junto da UNESCO e os embaixadores seriam Carlos do Carmo e Mariza. Nessa noite, uma jornalista telefona-me para casa e diz-me: “Como está, Sr. Embaixador?” E foi assim que soube, sem ter previamente conhecimento de nada. Como gosto muito pouco de brincadeiras com o fado, fui saber se a coisa era mesmo para ser levada a sério e, a partir dai, arregaçámos mangas e deitámos mãos à obra, agregando toda, mas mesmo toda a gente do fado, desde os artistas às associações e agremiações, passando por estudiosos e académicos. Até fiz algo que não está minimamente na minha maneira de ser que foi telefonar ao Dr. [Francisco] Balsemão a pedir-lhe o apoio da SIC. Contactei também o diretor da TSF e a Antena 1, e conseguimos, ao longo de seis anos, o ruído de fundo essencial para levar a bom porto a candidatura. O trabalho de todos os envolvidos foi de tal modo bem feito e com tamanha qualidade que impressionou significativamente o comité de avaliação.

Antes da candidatura, houve a “construção” de um museu para o fado. E, o Carlos do Carmo teve um papel determinante nesse projeto…

A fundação do Museu do Fado e da Guitarra Portuguesa, há 14 ou 15 anos, gerou uma enorme hostilidade junto da família do fado, que desconfiava dos “doutores” que iam invadir o território. Foi preciso construir uma relação de confiança, e esse papel coube à Dra. Sara Pereira, diretora do museu, que com o seu caráter agregador o foi fazendo. A dada altura, eu próprio dei um impulso para fazer dali a “nossa casa”. Aquando da morte de minha mãe, e como ela não era uma pessoa religiosa, tentei saber se era possível que o corpo saísse do museu para o Talhão dos Artistas no Cemitério dos Prazeres. E isso aconteceu. Logo a seguir, doei todo o espólio dela ao museu, Esta atitude motivou uma enorme confiança junto dos artistas e dos seus familiares, tendo muitos deles efetuado doações que permitiram construir um espólio que é já bastante assinalável.

Voltando à sua carreira, e como antes de iniciarmos esta entrevista, nos disse já não ser um cantor da moda, lembro que um dos temas mais tocados nas rádios portuguesas ao longo deste ano é Os Velhos do Jardim, um dueto com o Rui Veloso…

Uma surpresa para mim, sobretudo quando me disseram que era das canções mais tocadas na Rádio Comercial que é, ao que consta, a rádio mais ouvida a nível nacional. Foi muito engraçado, porque o Rui telefonou-me um dia a dizer que me ia enviar uma canção e se eu gostasse poderíamos gravá-la juntos. Confesso que, apesar de ter integrado um álbum do Rui, eu não a conhecia, pelo que, quando senti aquelas belíssimas palavras do Carlos Tê foi inevitável aceitar gravá-la.

Antes de falarmos um pouco sobre os concertos do CCB, é importante assinalar que no próximo dia 4 de novembro é lançado o seu novo disco Fado é Amor. O que nos pode contar sobre este trabalho?

O disco vai ser lançado, por coincidência, no dia de anos da minha mãe. Mas não foi uma decisão minha, foi a editora que apontou essa data. E, apesar de não poder falar muito sobre o disco, o que é interessante é a minha mãe estar em dueto comigo numa das faixas. Graças a estas novas tecnologias, isso é possível. Mais sobre este trabalho: estou rodeado de 10 miúdos e miúdas que cantam fados comigo. Há ainda um dvd sobre os bastidores do disco que é divertidíssimo.

No dia 30 de novembro e no dia 1 de dezembro, há concertos comemorativos dos 50 anos de carreira. Como vão ser estes dois espetáculos que se adivinham tão especiais?

Antes de mais, o público sensibilizou-me profundamente, porque continua a ser tão generoso comigo que já esgotou o concerto de 30 de novembro. Daí a data extra. Sobre os concertos, pretendo fazer uma síntese deste percurso. Para isso, terei comigo a Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida pelo maestro Vasco Pierce de Azevedo, que me irão acompanhar nalguns dos fados mais populares e consagrados da carreira. Terei os meus “meninos”, o José Manuel Neto, o Carlos Manuel Proença e o José Marino Freitas, um trio de guitarristas maravilhoso que me acompanharão em fados que ainda estou a selecionar. Por fim, vou ter um grande músico do mundo chamado Antonio Serrano. Para quem não sabe é espanhol, habitual colaborador do Paco de Lucia e é um exímio tocador de harmónica. Conheci-o num festival de jazz na Andaluzia, e, confesso, deixou-me impressionadíssimo.

Percebi que recebeu com enorme satisfação a notícia de ter esgotado o concerto de 30 de novembro…

Foi com muito espanto. Afinal, como lhe disse, não sou um cantor da moda nem um miúdo que apareceu agora e está a dar… É verdade que pensámos nas dificuldades que as pessoas estão a passar, e os bilhetes têm preços acessíveis. Mas não deixa de ser surpreendente que, sem grande promoção e a quase dois meses de distância, tenhamos esgotado o Grande Auditório. Agora, espero que se justifique a decisão de termos avançado para um segundo concerto. Cabe ao público dar a resposta.

A 13 de outubro de 2013, cumprem-se 40 anos sobre a estreia nos palcos da companhia fundada por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. E, no Teatro do Bairro Alto vai fazer-se a festa.

Do Laura Alves ao Teatro do Bairro Alto

Tudo começou a 13 de outubro de 1973, no Teatro Laura Alves, na Rua da Palma, arrendado ao empresário Vasco Morgado. Os jovens Jorge Silva Melo e Luís Miguel Cintra, antigos membros do Grupo de Teatro de Letras e ex-bolseiros da Fundação Calouste Gulbenkian, haviam fundado o Teatro da Cornucópia, e apresentavam ao público de Lisboa O Misantropo, de Molière. Com este clássico, afirmavam um dos objetivos centrais da companhia: “realizar espetáculos que, pela acessibilidade dos temas e dos tratamentos cénicos, possam interessar simultaneamente o público adulto já formado pela atividade das restantes companhias e o público jovem que ainda não tem consciência nem hábitos de espetador (…)”. No elenco, para além dos diretores da companhia, figuram Glicínia Quartin, Filipe La Féria, Carlos Fernando, Luís Lima Barreto, Orlando Costa, Raquel Maria e Dalila Rocha.

Até ao 25 de Abril, a Cornucópia assina mais uma criação, Ilha dos Escravos e A Herança, de Marivaux, que estreia no Terraço do Teatro Capitólio, em março de 1974. Com a queda da ditadura, o sopro da liberdade leva a companhia a apresentar no Incrível Almadense, em julho, a sua primeira incursão no teatro de Brecht. O Terror e a Miséria no III Reich é um espetáculo co-encenado por Cintra e Silva Melo, e seria representado em dezenas de vilas e cidades do sul do país. Em Lisboa, a estreia acontece no Teatro da Trindade.

1975, o país em revolução e a Cornucópia chega à sua atual morada, o Teatro do Bairro Alto. Pequenos Burgueses, de Gorki, é a peça inaugural, após meses conturbados, sem dinheiro para o pagamento de ordenados e com poucas ou nenhumas condições para desenvolver a atividade. Depois de muitas hesitações, o espetáculo estreia a 1 de julho e conta no elenco, entre outros, com Lia Gama e Márcia Breia, duas atrizes que vão trabalhar com alguma regularidade na companhia.

No ano seguinte, dá-se a primeira colaboração de Cristina Reis com a Cornucópia, precisamente na peça infantil As Músicas Mágicas, de Catherine Dasté. Mais tarde, a cenógrafa e figurinista assumiria a codireção da companhia.

Em 1979, um momento de viragem. Jorge Silva Melo assina as encenações de Woyzeck, de Büchner, e E Não se pode Exterminá-lo?, a partir de cenas de Karl Valentin. Os dois espetáculos acabariam por ser os últimos do encenador, ator e cineasta no Teatro da Cornucópia. Mais tarde, em 1995, fundaria os Artistas Unidos.

 

Uma escola de teatro

O Teatro da Cornucópia tornou-se, provavelmente, a mais aclamada das companhias do teatro português. Ainda na última edição do Festival de Almada, Rodrigo Francisco sublinhava a sua importância, e a dessa “figura absolutamente incontornável no teatro europeu que é Luís Miguel Cintra”. O diretor do mais importante festival de teatro do país não hesitou em colocar o diretor da Cornucópia lado a lado com outros dois vultos vivos: Peter Stein e José Luis Gómez.

O trabalho de divulgação de grandes obras da dramaturgia mundial, dos clássicos aos contemporâneos, bem como a notabilização dos grandes atores e atrizes do teatro português das últimas décadas são essenciais para compreender este reconhecimento. A Cornucópia trabalhou, minuciosa e criativamente, cerca de 120 produções, com textos de autores clássicos, como Aristófanes, Plauto, Gil Vicente ou Shakespeare; contemporâneos, como Heiner Müller, Fassbinder, Lorca, Genet ou Pasolini; e gigantes da dramaturgia portuguesa, como Gil Vicente, Camões ou António José da Silva. Um punhado de espetáculos admiráveis a partir de colagens de textos, marcam também o rico percurso de uma companhia que “tocou em todas as épocas da história da literatura dramática”.

Ao longo destas décadas, a companhia conheceu muitos elencos e contou com um sem-número de atores e atrizes de teatro de referência. Ricardo Aibéo, Virgílio Castelo, Emília Correia, Margarida Carpinteiro, Teresa Madruga, António Fonseca, Miguel Guilherme, Canto e Castro, Luísa Cruz, Rita Durão, Adriano Luz, Rita Blanco, Miguel Borges, Dinarte Branco, Beatriz Batarda ou Nuno Lopes são apenas alguns dos nomes que brilharam nos espetáculos da Cornucópia.

 

Parabéns à Cornucópia

Outubro de 2013 marca o arranque das comemorações do Teatro da Cornucópia. A 5 e 12, sábados, o Teatro do Bairro Alto está de portas abertas para apresentar… cinema. Oito filmes mostram momentos de um percurso. São registos da companhia, registos de amigos, uns inéditos, outros esquecidos, que contam pedaços de história do teatro. Do teatro que a Cornucópia fez e continua a fazer.

De 9 a 31 de outubro, a Cinemateca Portuguesa associa-se à comemoração e apresenta um programa paralelo de cinema, onde surgem obras de Paulo Rocha, José Álvaro Morais, Christine Laurent, Solveig Nordlund ou Jorge Silva Melo.

No dia em que se cumprem os 40 anos da estreia de O Misantropo, a 13 de outubro, domingo, inicia-se, às 16 horas, uma tribuna livre para falar sobre a Cornucópia. É o momento ideal para aqueles que partilharam as “brincadeiras” tomarem a palavra. Todos estão convidados a intervir, bastando apenas uma inscrição prévia (até 4 de outubro) através de correio eletrónico (info@teatro-cornucopia.pt). Depois, pelas 20 horas, é tempo de brindar, tomar um copo, petiscar e conversar – são bem-vindos contributos de comes e bebes! Para encerrar a noite, o verbo dá lugar à música, e todos os músicos estão convidados a intervir.

Da nossa parte, endereçamos à Cornucópia os parabéns e o desejo de ver cumprir muitos mais anos de “brincadeiras”. E, já agora, em novembro há novo espetáculo: 4 Ad Hoc, quatro “pochades” de Eugene Labiche traduzidos por Luís Lima Barreto e Luís Miguel Cintra, com a colaboração de Cristina Reis, promete ser mais um grande momento de teatro a juntar a tantos outros que temos visto, pelo Teatro do Bairro Alto, ao longo dos últimos anos.

No sótão de um prédio de Nova Iorque prestes a ser demolido, Vitor Franz (Marco Delgado), um polícia, e a mulher, Ester (São José Correia), deambulam por entre móveis e objetos enquanto aguardam a chegada de um velho comprador de antiguidades, Gregório Salomão (João Perry). O objetivo do casal é conseguir o melhor preço pelo espólio da família Franz, da qual só resta Vitor e o irmão Walter (António Fonseca), um médico de sucesso que se afastou da família para perseguir as suas ambições.

Com a chegada do vendedor, e perante a pressão da mulher, Vitor sente-se tentado a vender tudo por um preço sem consultar o irmão, de quem está desavindo há mais de 16 anos, altura em que o pai morreu. Entre a necessidade do dinheiro e o secreto desejo de ver Walter aparecer, Vitor acaba por ser forçado a recordar e a pôr em causa todo o seu percurso de vida, desde o dia em que o pai se viu falido, no decorrer do crash de 1929 que originou a Grande Depressão, até ao momento em que está prestes a confrontar-se com o irmão e com a sombra de um passado que lhe devorou os sonhos.

‘O Preço’ tem cenário de António Casimiro e João Lourenço

 

Da autoria do dramaturgo norte-americano Arthur Miller (1915-2005), O Preço é uma peça muito pouco conhecida, escrita em 1968, e levada pela primeira vez aos palcos portugueses em 1970, numa encenação de Jacinto Ramos. Toda a ação se projeta a partir da Grande Depressão e “não será estranho ver, de certo modo, o nosso presente no drama destas vidas”, sublinha o encenador João Lourenço. Pelas suas características, a dramaturgia de Miller parece não reconhecer-se à primeira vista: “há aqui qualquer coisa de Ibsen, pelas personagens, pelo constante diálogo com o passado”, sublinha o encenador.

Nesta encenação, que surge perante a ameaça concreta de ser a última levada à cena pelo Teatro Aberto devido aos cortes nos apoios estatais, destaca-se, para além de um texto magnifico servido por uma direção notável, grandes interpretações de um quarteto de atores que encarnam extraordinárias personagens criadas pelo autor de Morte de um caixeiro viajante.

Uma palavra muito especial para João Perry que, neste seu regresso ao palco, compõe superlativamente o comprador de origem russo-judaica Gregório Salomão, naquela que, nas palavras de Lourenço, será porventura “das personagens mais modernas da dramaturgia de Miller.”

“Está ai o público.” “Que entre”, responde o Diretor de uma companhia de teatro ao ar livre ao anuncio do Criado. Por esta altura já o público percorreu um longo corredor do Teatro São Luiz e se instalou no palco. A cortina fechada oculta a plateia de cadeiras vermelhas, vazias. O público, esse, já sente as “entranhas do teatro”. Dentro de momentos, a cortina abre-se. O espetáculo está a começar, e vai representar-se Romeu e Julieta, de Shakespeare. Erguem-se as máscaras que ocultam a verdade e alimentam as ilusões, num duelo entre o lado de cá e de lá dos biombos espelhados que nos separam, a nós, o público, da plateia vazia em fundo. Este é o “teatro das convenções”, mascarado e frio, que Lorca sentia querido pelo público, normalmente indiferente e insensível à procura da verdade através da arte.

Soltando amarras, o espetáculo prossegue, como se colocasse “o céu numa sala de teatro” que agora não existe. Estamos no Largo de Camões, ao ar livre, onde se faz ouvir o “manifesto de Lorca”, lido por Margarida Vila-Nova (antes, sobre o palco do São Luiz, a actriz era Julieta), num encontro com as palavras cantadas de Poeta em Nova Iorque, pela voz de Mitó Mendes (A Naifa). Para o encenador António Pires, este momento partilhado pelo público vindo do teatro e o público acidental, ocasional ou errante da praça lisboeta fixa a mensagem de Lorca: “o público não pode nem deve intervir no mais íntimo da criação artística”. A bem da verdade através da arte.

Margarida Vila-Nova numa cena de ‘O Público’

 

Último momento. Derradeiro. No Teatro do Bairro, em torno de uma caixa de areia, todas as máscaras caem. É, por fim, o tempo da verdade através da arte, do “teatro debaixo da areia”, da imaginação e da alegoria. Aqui pulsam os sentimentos e quebra-se a máscara. O próprio Lorca deixa cair a sua, assume e aborda a sua homossexualidade, e encontra-se consigo mesmo dentro do teatro. Deste teatro onde, partidas as portas, levantado o teto, apenas restam “as quatro paredes do drama.”

O Público enquanto manifesto pela liberdade

Não é estranho reconhecer em O Público os ecos surrealistas que abalaram Federico Garcia Lorca (1898-1936) nos finais da década de vinte e princípios de trinta do século passado, por via da influência de amigos como Buñuel e Dalí.  Mas, se a peça repercute esses ecos, acima de tudo, ela é como que um manifesto pessoal sobre o teatro e a arte, onde o mundo intimo do autor, inclusive a sexualidade, se liga estreitamente às suas conceções criativas. Ao opor aquilo a que chamou o “teatro das convenções” ao “teatro debaixo da areia”, Lorca procurou um caminho para que cada um encontrasse, nas palavras de António Pires, essa “espécie de laboratório crítico de nós mesmos”. Precisamente no último, nesse “teatro debaixo da areia”, aquele que é mais livre, mais abstrato e criativo.

Ao opor aquilo a que chamou o “teatro das convenções” ao “teatro debaixo da areia”, Lorca procurou um caminho para que cada um encontrasse, nas palavras de António Pires, essa “espécie de laboratório crítico de nós mesmos”.

 

Ao aliar ao texto de O Público passagens de Poeta em Nova Iorque e outros escritos do poeta e dramaturgo produzidos na mesma fase, o espetáculo de Pires – que o encenador chega a adjetivar como “pintura surrealista” – assume o caráter de manifesto, também ele muito pessoal, a favor da liberdade criativa dos artistas, num período em que se parece querer fazer depender a criação das vontades do público.

A peça vai estar em cena ao longo de 11 noites, de 5 a 16 de junho (exceto dia 12), e conta nos principais papéis com Adriano Luz, como o Diretor, Margarida Vila-Nova, como Julieta, e Laura Soveral, no papel de Prestidigitador.

Fazendo uso das suas palavras, nesta “espécie de arca do tesouro ou de caixa de Pandora” que é o teatro de cordel português setecentista, que surpresas encontrou?

Quanto se começam a ler estas peças avulsas, reunidas por terem sido vendidas como teatro de cordel, descobrem-se, surpreendentemente, naturezas muitos diferentes: há textos litúrgicos, satíricos e de crítica social, poéticos, filosóficos e entremezes. São precisamente os entremezes que tornam mais conhecido o teatro de cordel, porque contêm, digamos, uma forma muito volante na sua expressão dramática. Outra grande surpresa está precisamente na ideia de teatro popular. Não há dúvida que o teatro de cordel é popular, mas os seus autores eram geralmente pessoas eruditas. Dai encontrarmos textos muito bem escritos e diálogos dramáticos espantosos do ponto de vista literário. As personagens, essas sim, são populares, e correspondem a uma imagem bastante reconhecível pelas gentes de Lisboa.

Como procedeu à seleção dos textos e construiu o espetáculo?

Confesso que não houve grande critério científico na seleção. Recorri à coleção da biblioteca da Gulbenkian, que digitalizou estes folhetos de cordel e, a partir de casa, fui lendo tranquilamente os textos e tomando nota daqueles que me pareciam mais engraçados ou que me prendiam a atenção. Acabei assim por fazer uma espécie de salada, casando até cenas de textos diferentes, como uma espécie de potpourri de coisas que se associam naturalmente umas às outras.

E o resultado é…

Um espetáculo sobre “os desastres do amor” (precisamente o título de um nosso anterior trabalho) e muito sobre as mulheres… Porque são as mulheres que estão no centro da vida, porque são as mulheres que os homens amam, porque são as mulheres que impelem os amores felizes ou não são felizes no amor…

Trata-se, portanto, de um espetáculo muito feminino…

Diria que é um espetáculo muito divertido, muito variado e é um “show” de representação das quatro atrizes que o protagonizam. Refiro-me à Luísa Cruz e à Teresa Madruga, atrizes excecionais e profundamente ligadas à minha carreira, e à Rita Durão e à Sofia Marques, que trabalham habitualmente aqui na Cornucópia. Elas são brilhantes e, citando uma frase que retirei da literatura de cordel, “a mulher é como o camaleão”, afirmo tratar-se da maior das verdades pela capacidade de inconstância e transformação que se reconhece à mulher. Essa frase ainda mais se aplica às atrizes, e, porque não, a estas em particular, que se desdobram, ao longo da peça, em múltiplas personagens e registos.

Voltando aos textos. Foi difícil selecioná-los, tendo em conta o extenso acervo da Gulbenkian?

Pela qualidade do material sim, por isso, o espetáculo é longo, contrariando até, de certo modo, o espírito da literatura de cordel. Porém, o prazer que nos deu trabalhá-lo e vê-lo em palco foi mais forte e, como prefiro pecar por excesso do que por defeito – por defeito é sempre mais preguiçoso –, decidimos aproveitá-lo o mais possível.

Luísa Cruz e Luís Miguel Cintra numa cena do espetáculo ©Luís Santos

 

Um material certamente capaz de surpreender o público…

Com certeza, porque acredito ir haver muita gente a descobrir o manancial que existe na literatura de cordel setecentista. Há milhares de textos muito bons de literatura dramática portuguesa que foram desprezados, o que, aliás não surpreende, porque Portugal é assim…

Como escolheu o título?

Vem de uma peça – da qual, por sinal, não aproveitámos nenhum diálogo – que se chama Amor sem Pés nem Cabeça. É um daqueles “disparates” (que há muitos) sobre a maneira como se tecem os casamentos e como as pessoas se comportam dentro das relações amorosas numa sociedade de burguesia pequenina que se faz passar por gente fina, muito característica do final do século XVIII. Àquele título, acrescentei um “ai” que, no fundo, transmite aquilo que de pessoal coloquei ao serviço da peça. Ou seja, uma certa melancolia sobre a vida e as infelicidades de quem não consegue no meio de complicações mais ou menos ridículas fazer a vida que quer e ser feliz. Apesar de ser um espetáculo muito engraçado, tudo isso está também na peça, e acaba como que contido nessa interjeição que antecede o título.

Refere que alguns dos textos parecem estar à espera de ser transformados em “teatro de novos tempos”. Este espetáculo é o resultado dessa transformação?

Sim. Antes de mais porque não se trata de uma reconstituição histórica da vida na Lisboa do século XVIII. Há uma brincadeira constante com a atualidade, tanto que, numa coisa que me é muito grata fazer, exploro o anacronismo do ponto de vista cénico, nomeadamente através da cenografia e do guarda-roupa. O que representamos através destes textos de época acaba por ser o contemporâneo, o que demonstra quão livre é este material.

É uma relação diferente daquela que se tem com os clássicos?

No teatro de cordel, o prazer passa por descobrir ser melhor do que aquilo que pensávamos, sem nunca provocar a sensação de não estarmos à altura dos textos. A relação com os clássicos é diferente, é um bocadinho traiçoeira. Sou de um tempo em que os clássicos atemorizavam as pessoas, impunham respeito, davam medo e assustavam pela sintaxe difícil… lembro, quando traduzimos e encenámos Ricardo III, no princípio da companhia, considerarmos uma ousadia. Hoje, tudo se banalizou pois a relação com os textos é muito mais superficial. Já não se exige a intimidade com o clássico, pelo contrário, o texto ou o autor funcionam muitas vezes como um mero aval ou um selo de qualidade.

Há, então, uma imensa liberdade neste teatro de cordel…

A arte é por definição o terreno da liberdade, abre portas ao mundo e na cabeça dos outros. Este teatro também corresponde a isso, ainda mais hoje, numa altura em que, por imposição das lógicas do mercado, a arte está a deixar de ser livre.

Neste “destemperado jogo de entremezes lisboetas”, que Lisboa se reconhece na peça?

Há vários exemplos ao longo da peça, mas sublinharia um local recorrente nos textos: o Cais do Sodré. Na Lisboa setecentista aquele era um local de grande centralidade, com comércio, com barraquinhas de comes e bebes, com gente de toda a índole. Em suma, era um verdadeiro microcosmos da cidade. Hoje, é pouco mais que um local de passagem, e não serão poucos os que venham a pensar como o Cais do Sodré daqueles tempos é tão semelhante ao Centro Comercial Colombo dos nossos dias.

Porquê esta peça quando a Cornucópia completa 40 anos de teatro?

Depois de termos feito tantas obras-primas, tantos grandes textos da história do teatro, porque não fazer peças portuguesas que são secundárias neste nosso aniversário?

O teatro continua a ser um prazer?

Prescindi de muito para fazer teatro durante quase toda a vida. Tenho 60 e tal anos e o privilégio de não ter dado conta de aqui chegar. E tudo porque se faz teatro para nunca deixar de ser miúdo. Fi-lo sempre pelo prazer de brincar, mesmo quando as brincadeiras se tornaram muito complicadas intelectualmente.

Nesta peça, interpreta Peggen Mike, a principal personagem feminina. O que nos pode dizer sobre ela?

A Peggen é a filha do dono da taberna onde decorre a ação da peça. É uma rapariga de “pelo na venta”, como se costuma dizer, muito prática, muito trabalhadora, muito objetiva… Ela está de casamento marcado com um camponês, até que aparece o “campeão”. À semelhança de toda a gente, fica fascinada, acabando por se apaixonar por ele, pela sua poesia, pela sua bravura, pela novidade que ele representa. Mas, o desfecho de tudo isto não irá ser muito feliz…

O que mais a fascinou na Peggen?

Como não gosto de personagens lineares, encontrei na Peggen muito mais do que a dureza que normalmente surge associada a ela. O ser humano é sempre mais do que isto ou aquilo, é muitas coisas. E a Peggen, na forma como se relaciona com a família e com os outros, contem uma multiplicidade fascinante.

Há alguma característica nesta personagem que reconheça facilmente em si?

Há uma frase no texto, dita em relação à Peggen, que responde a essa pergunta: “Ela muda como o vento.”

Estreou-se no teatro, em 2006, precisamente com os Artistas Unidos, na peça A Mata, dirigida por Franzisca Aarflot. No espaço de um ano, voltamos a vê-la nas produções da companhia, nomeadamente em A Morte de DantonA Estalajadeira e, agora, nesta peça. É uma relação para continuar?

O primeiro trabalho que fiz foi, de facto, um bom começo, e aconteceu com os Artistas Unidos. No ano passado voltei a trabalhar com a companhia no Danton, e correu tudo tão bem que o Jorge Silva Melo me chamou para estes projetos. Aconteceu tudo muito naturalmente, e provavelmente é assim que irá continuar a ser.

Maria João Pinho estreou-se nos palcos, em 2006, numa produção dos Artistas Unidos

 

Teatro, cinema, televisão. Em qual das áreas prefere trabalhar?

Confesso que não tenho preferência. Tudo depende da equipa e do projeto. Claro que há paixões… adoro cinema! Mas também já fiz trabalhos no cinema onde as coisas não foram propriamente simpáticas.

E o teatro?

O teatro tem a relação com o público e dá-nos uma estrutura e uma bagagem que me preenchem enquanto atriz. Adoro o palco, mas também adoro a câmara… e também já houve trabalhos em televisão que gostei imenso de fazer. Se puder estar nos três, ótimo!

Vê-se que não concorda muito com aquela ideia, partilhada por muitos atores, de que se pudessem só fariam teatro…

Acho que esse discurso é algo presunçoso… É verdade que há trabalhos em televisão porventura pouco gratificantes, sobretudo porque os textos não são bons. Mas isso também acontece no teatro e no cinema. Seria demasiado romântico pensar que só o teatro é que é bom…

De entre os muitos cineastas que a dirigiram constam dois grandes nomes, infelizmente já desaparecidos: Raul Ruiz (Mistérios de Lisboa) e Fernando Lopes (Em Câmara Lenta). Que memória guarda deles?

Eram pessoas muito diferentes e é um privilégio para mim tê-los conhecido e trabalhado com eles. Dos Mistérios tenho memórias extraordinárias. O Raul Ruiz era um senhor encantador, uma criança num corpo adulto, muito sensível e disponível. Havia uma liberdade e um espaço de criação muito, muito agradável. E depois, como adoro filmes de época, com aqueles vestidos e perucas, senti-me sempre tão confortável que o meu trabalho fluía de uma maneira impressionante. Recordo ainda o casting e a empatia que criei desde o primeiro momento com o Raul: o tom de voz dele, o que quis saber na conversa que mantivemos, o modo como me olhava… Era um grande senhor.

E o Fernando Lopes?

Durante a rodagem do Em Câmara Lenta, senti que o Fernando estava muito zangado com a vida, com o cinema, com a cultura em geral… isso custava muito. Percebia-se o quão frágil e debilitado ele estava. Dávamo-nos muito bem… Recordo quando me sentava de joelhos ao lado dele e o via, incessantemente, a acender cigarros, uns atrás dos outros… Foi pena ele estar tão amargurado.

Voltando ao teatro, há alguma personagem que gostaria de inscrever na sua já extensa galeria?

Às vezes leio umas peças e penso: era mesmo esta personagem que gostaria de fazer. Mas, não tenho propriamente nenhuma personagem que ambicionasse interpretar. Isso acontecia-me nos tempos de escola… hoje não.

E projetos para o futuro? Onde a vamos poder ver após O Campeão do Mundo Ocidental?

Espero que não me vejam nas férias [risos]… Provavelmente, irá estrear nas salas um filme do Vítor Gonçalves, que apenas tem título provisório, e que rodámos há dois anos. Quanto a novos projetos, para já não tenho nada em mãos.

Porque o fado também é moda, o MUDE – Museu do Design e da Moda e o Museu do Fado apresentam Com Esta Voz Me Visto – O Fado na Moda, uma mostra que propõe um olhar sobre os trajes e acessórios que vestiram, e vestem, a “canção de Lisboa” desde os anos 40 do século passado. Inevitavelmente, o destaque maior da exposição vai para os vestidos de Amália, a fadista que reuniu à voz espantosa a importância da imagem, derrubando, nas palavras de Bárbara Coutinho, diretora do MUDE, “uma série de estereótipos, enquanto [se] afirma como uma mulher independente e emancipada, moderna e segura de si, atenta às novas modas e detentora de uma sensibilidade inata, elegante e sofisticada, plena de feminilidade.”

A marca de Amália nessa rutura acontece precisamente na predominância do negro no vestuário. Mais de uma dezenas de vestidos pretos, com ornamentações subtis e de extrema elegância, caracterizam a maioria das peças da fadista agora expostas, provenientes sobretudo do acervo do Museu Nacional do Teatro e da Fundação Amália Rodrigues.

Como sublinha a diretora do Museu do Fado, Sara Pereira, nos retratos de inícios de quarenta, Amália surgia normalmente “vestida com uma blusa branca, saia e xaile tradicionais”. Posteriormente, a adoção do preto tornou-se imagem de marca da fadista que confessava não ter dúvidas “que o vestido preto com o xaile preto que comecei a usar, deu uma presença mais agradável ao fado.”

A construção dessa imagem, ainda hoje tão vincada como é possível perceber no núcleo dedicado às fadistas da nova geração, deveu-se sobretudo a três mulheres: Anna Maravilhas, Maria-Thereza Mimoso e, mais tarde, Ilda Aleixo, com quem a fadista idealizou inúmeros figurinos. Ao longo das décadas, foram estas mulheres que criaram para Amália uma imagem que tanto contribuiu para fazer dela, citando Sara Pereira, “a Voz mais universal da nossa identidade”.

Mas, não se pense que a cor não tem lugar no espólio de Amália. Na sua versatilidade de intérprete, a fadista atuava muitas vezes, nas primeiras partes dos espetáculos que eram dedicadas ao folclore, com vestidos mais garridos e vivos, como é o caso daquele que encomendou a Pinto de Campos, inspirado em motivos regionais, para uma atuação no Lincoln Center de Nova Iorque, em 1966. A propósito dessa peça magnífica, também presente nesta mostra, Sara Pereira relembra que essa quebra na utilização do negro se deveu a uma sugestão do maestro Andre Kostelanetz “que lhe recomendou que não usasse preto, à frente de uma orquestra com todos os músicos vestidos de preto.”

O renascimento do fado e a sua projeção internacional na década de 1990, acabaria por proporcionar uma reinvenção da sua própria imagem. Mísia, com a sua irreverência e sofisticação, e Paulo Bragança, com uma “transmutação estilística total”, surgem como os primeiros representantes dessa mudança. As fadistas da nova geração, como Mariza, Ana Moura, Carminho ou Aldina Duarte “atestam um cuidado renovado com a imagem”. Ao longo da exposição é possível compreender esse percurso, como se as peças de João Rôlo, José António Tenente, Fátima Lopes, Ana Salazar ou Luís Buchinho para as atuais estrelas do fado se tornassem extensões das suas próprias vozes.

Em Com Esta Voz me Visto expõem-se ainda alguns acessórios marcantes para a história do fado, sublinhando-se a icónica boina e o cachené de Alfredo Marceneiro, o Cristo em ouro e diamantes de Rodrigo ou as chinelas que Tiago Cardoso fez para Raquel Tavares que tinham como referência a iconografia associada a Severa.

O que o atraiu neste filme do realizador Bille August?

Já tinha trabalhado com Billie August no filme Casa dos Espíritos. É um realizador muito gentil, interessante e atencioso. Sabe o caminho a seguir, é alguém em quem podemos confiar. É muito bom poder trabalhar com uma pessoa de quem realmente se gosta.

Adaptar um livro com sucesso ao cinema é sempre uma tarefa difícil. O que acha que os leitores do livro esperam do filme?

Adaptar um livro ao cinema é de facto muito difícil. O filme parece que nunca vai estar ao nível do livro. Claro que há romances, como Anna Karenina ou Dr. Jivago, que os leitores pensam: ainda bem que podemos ver o filme, o livro é tão grande. Acho que no caso do Comboio Noturno para Lisboa, o romance não é tão denso, e é mais fácil de se captar o espírito do livro. Espero que neste caso haja muitos espetadores que vejam o filme e queiram ler o livro.

A sua personagem, Raimund, é um homem solitário. Gabriel García Marquez disse que “a solidão é o contrário de solidariedade”. Acha que a solidão é um problema persistente da nossa sociedade?

Sim, acho que a solidão é um problema, principalmente das grandes cidades. Penso que quanto mais concentrados estamos, quanto mais barulho e informação nos rodeia maior é a necessidade de nos isolarmos. No campo as pessoas respiram de outra forma. As casas têm mais espaço e o meio envolvente é amplo. Isso permite uma maior abertura por parte das pessoas, mais convívio e uma menor necessidade de isolamento.

Já esteve em Lisboa várias vezes. Há algo em particular que o faça gostar da cidade?

Gosto bastante de Lisboa. É uma cidade com história e isso faz dela necessariamente uma cidade interessante. Fascina-me o facto de muita gente, essencialmente idosos, conseguir viver em casas muito antigas e degradadas (desmoronamento), mas muito belas, no centro da cidade por uma renda razoável. Sinto que estas pessoas fazem de Lisboa uma cidade habitada. Desta vez descobri o fado, e gostei bastante. Sou um grande apreciador de música irlandesa e encontrei algumas semelhanças com o fado.

O que pode esperar o público português do filme?

Espero que o filme permita ao público conhecer um pouco melhor determinados aspetos da sua história. Espero que faça com que se sintam orgulhosos por serem portugueses.

Existem novos projetos para breve?

Para já há mais uma série dos Bórgia. Tenho também alguns guiões. No entretanto, espero fazer uma série de coisas como montar a cavalo, passear de barco, arranjar partes da casa que precisam de pintura, viver um pouco.

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