É para lá que uma parte importante da humanidade deseja ir quando chegar o seu tempo. Desde tempos imemoriais, é tido como a morada dos deuses e é fonte de assombro e reverência. Não é de estranhar que a arquitetura monumental aponte para o céu, de uma maneira muito mais exagerada do que a funcionalidade ou prudência justificariam. Menires, torres sineiras ou de menagem e minaretes dominaram a paisagem de fabrico humano até muito recentemente, quando a arquitetura civil conquistou as alturas.
Fomos visitar uma seleção destas estruturas religiosas de maior relevo em Lisboa, algumas das quais oferecem acesso público para vistas únicas da cidade. Os Urban Sketchers de Portugal, um grupo com formações heterogéneas, unido pelo gosto do desenho, oferece-nos a uma visão mais pessoal e artística destes monumentos.
Igreja de São Vicente de Fora. Desenho de Eduardo Salavisa
A visita ao mosteiro inclui o acesso ao terraço.A sua localização única oferece uma visão imperdível da cidade e do estuário do Tejo.
Largo de São Vicente
Tel. 218 244 400
Mosteiro dos Jerónimos. Desenho de José Louro
Está ao nível do mar mas é um dos pontos altos da arquitetura religiosa portuguesa. A sua nave, com colunas de 16 metros de altura, é também das mais impressionantes do país.
Praça do Império
Tel. 213 620 034
Sé de Lisboa. Desenho de Pedro MB Cabral
A Sala do Tesouro da Sé tem uma sacada virada para o rio, onde se podem apreciar os telhados de Alfama.
Largo da Sé
Tel. 218 866 752
Igreja de Santa Engrácia / Panteão Nacional. Desenho de João Catarino
O guardião da nossa memória e identidade, exemplar destacado do barroco português, oferece um miradouro privilegiado da cidade e do rio.
Campo de Santa Clara
Tel. 218 854 820
Basílica da Estrela. Desenho de Rosário Félix
O acesso à Basílica contempla a possibilidade de subir ao zimbório, ainda que apenas do lado interior.
Praça da Estrela
Tel. 213 960 915
“Não há dias sem morte”, constata Luzia no quarto fechado onde remexe em papéis, faz ginástica compulsivamente e exaspera, enquanto persente estar no caminho para o esquecimento, o que a faz estar só e cada vez mais perto do fim. Foi uma enfermeira dedicada, colecionou nomes, muitas histórias e muitos homens. Foi, diz a momentos, o que a tornou “uma puta dos mortos”.
Luzia sabe que vai morrer. Sabe, porque o deseja. O quarto onde a encontramos é a sua cabeça, uma prisão; o corpo, o rasgo da sua libertação. É assim que Gonçalo Amorim vê a personagem do monólogo original de Cecília Ferreira, texto vencedor do Grande Prémio Teatro Português Sociedade Portuguesa de Autores/Teatro Aberto, em 2013.
Para interpretá-lo, conferindo-lhe uma densidade que extravasa (no melhor sentido) os limites das emoções e da fisicalidade, está Mónica Garnel. “Sendo um monólogo e não havendo contracena, era importante ter uma atriz com as suas capacidades”, sublinha o encenador. “Até aos 12 anos, a Mónica fez ginástica de competição, e há muito tempo que desejava encontrar no teatro um papel a que desse uso aos recursos físicos que adquiriu em criança”.
Quanto ao texto, Amorim considera-o de uma enorme riqueza, tanto pela complexidade de uma personagem “esquizoide como Luzia”, como pela “sua inequívoca teatralidade”, não descurando um “humor apurado e desconcertante”. A música de Joana Sá e Luís Martins estabelece “as três temperaturas” (como “andamentos”) que a encenação definiu para o espetáculo: a primeira “em que se mergulha na depressão”, a segunda de “euforia e violência”, e uma terceira em que se cumpre a ritualização da morte, “a lembrar a simbologia do Dia dos Mortos mexicano”.
Uma vez que o julgamento de Flaubert é ponto de partida para este espetáculo, pode presumir-se que Bovary seja muito mais do que a adaptação do romance?
Para ser rigoroso, diria que Bovary é também uma adaptação do romance. Interessou-me pegar no julgamento de Flaubert, sob acusação de atentado à moral, como partida para esta adaptação. Como tal, parti da relação íntima que cada um de nós estabelece com um grande romance, como é Madame Bovary, fazendo-a acontecer paralelamente com o material histórico provindo do julgamento. Ao invés do encontro estrito com o romance, interessa confrontar essa mesma obra de arte com a sociedade, a lei e o Estado, à procura de descobrir como eles se relacionam com uma forma de arte que é simultaneamente crítica e intima. Esta mesma relação é avivada nos dias de hoje, tornando-se um assunto sobre o qual importa refletir.
É, então, através do julgamento que se conta a história?
É curioso constatar que, mais do que o próprio Flaubert, quem estava a ser julgado era a protagonista do romance, Emma Bovary – uma mulher em busca da embriaguez da felicidade, que a procura fora de todas as convenções sociais da época. Durante o julgamento, tanto a acusação como a defesa tratavam as personagens como se fossem pessoas reais, culpadas ou inocentes. Daí, o romance ir sendo constantemente citado, através das palavras e dos atos dessas mesmas personagens, como uma maneira de contar a história a partir do ponto de vista dos advogados de acusação e defesa. É, já em si, um debate dramatúrgico.
A tua admiração pelo romance foi determinante para o adaptar ao teatro ou pesou igualmente o facto de ter existido um processo legal contra ele?
A genialidade de Flaubert é ser lido hoje com a mesma intensidade e intimidade com que era há 150 anos. É muito estimulante lidar com uma obra de arte genial e preciosa na forma como usa a palavra e, ao mesmo tempo, abordarmos aquele processo que levanta questões prementes. Mas, se há algo que se sobrepõe a tudo é o mistério e “a inquietação injustificada”, para citar o romance, da personagem Emma. Esse é o verdadeiro motor da nossa adaptação.
Como é que este projeto nasceu e se desenvolveu?
Como em todos os meus projetos, o primeiro passo é descobrir o vocabulário que vou desenvolver. Bovary começou com uma conversa com a Carla Maciel, que pretendia fazer qualquer coisa em torno desta personagem. Como gostávamos tanto do romance, desafiámo-nos mutuamente. Depois, encontrámos cúmplices (o Pedro Gil, o Gonçalo Waddington e a Isabel Abreu). Formada essa família de atores, sem pensar ainda em papéis, preocupou-me o conceito de adaptação – iríamos deixar inspirar-nos pelo romance? Iríamos ser-lhe fiéis? Ou, quem sabe, iríamos subverte-lo? Até que surgem as atas do julgamento, e percebemos que seria aí que iríamos encontrar o mecanismo pretendido para o espetáculo.
Como é que descobriste essas atas do julgamento?
Apesar de haver alguma literatura sobre o caso, e ai ter começado por me basear, por mero acaso encontrei uma versão integral do julgamento em língua portuguesa. Foi quando estava a preparar o By Heart [espetáculo apresentado por ocasião dos 10 anos do Mundo Perfeito], e onde atuo com caixotes cheios de livros que tinham pertencido à minha avó. Num deles descubro uma edição de Madame Bovary dos anos 60, com o julgamento integral em apêndice.
Para quem desconhece a história do julgamento, qual foi o veredito?
Flaubert é absolvido, mas o julgamento serve como aviso. Assim, apenas uns meses depois, o mesmo advogado de acusação consegue condenar Charles Baudelaire pela obra As Flores do Mal, entretanto proibida. É curioso constatar como a França daquela época parecia esquecer os valores da revolução e assumia uma tendência conservadora, marcadamente instituída pela “boa moral cristã”.
Por falar nessa tendência conservadora, podemos considerar que Bovary surge na continuidade de um projeto como Três dedos abaixo do joelho, concebido a partir dos textos dramatúrgicos censurados pela ditadura portuguesa?
Podemos considerar que sim, mas não é um espetáculo semelhante. Acho que no meu percurso há questões que se repetem, há uma preocupação latente em relacionar-me com temas sociais e políticos. Se por um lado me interessa procurar mecanismos para contar histórias em palco, por outro não alimento um teatro de ilusão. O espetáculo tem de estar em aberto para o público criar, se assim o entender, as suas próprias ilusões. Em muitos dos meus trabalhos, parto de documentos reais que digerimos e manipulamos descaradamente para inventar um espetáculo. Não me interessa o rigor de um teatro documental que imite a realidade. O meu teatro é da ficção e da imaginação. Porém, quero que ele se relacione com o mundo…
Como um teatro de intervenção?
Não no sentido de intervir politicamente. No teatro que faço, e com as pessoas com que o faço, procuro uma expressão pública da minha intimidade. É no encontro entre a intimidade e o espaço público que se opera aquilo que podemos considerar intervenção. O mais político que creio existir nos meus espetáculos é assumir que quando nos expressamos surge uma relação direta com a política. No fundo, a minha intimidade (e a de todos nós) tem uma relação com a vida pública.
Este espetáculo encerra o Alkantara Festival , que pode muito bem ser o último devido aos cortes de financiamento na área da cultura. Sentes ser uma responsabilidade acrescida?
Sinto que é uma honra, mas também uma tragédia se assim for. O Alkantara é um festival de dimensão europeia que significou, ao longo dos anos, um enorme investimento em novos artistas e criadores. Faz parte de Lisboa, parte do país, e não pode ser visto como um custo. É lamentável que se condene um projeto desta importância à mera sobrevivência, por isso respeito a decisão de quem o dirige de acabar, caso se mantenham os atuais quadros de financiamento.
Imagine um armazém, amplo, luminoso e arejado. Lá dentro, dois artistas plásticos – os escultores Lagoa Henriques e Carlos Amado – erigiram, no seu tempo, várias estruturas a lembrar casas de um bairro típico alfacinha, com divisões espalhadas por vários pisos, tetos com claraboias para deixar entrar a luz, janelas que permitem olhares acutilantes e vivos sobre os espaços comuns. “Algo a lembrar Alfama”, como refere Luís Castro, membro fundador e diretor artístico da KARNART, o novo inquilino do espaço.
Desde a saída da secção de Anatomia da antiga Escola Superior de Medicina Veterinária, em Picoas, há cerca de cinco anos, a KARNART instalou-se num armazém do Beco da Mitra. Em janeiro deste ano, a Câmara Municipal de Lisboa assinou, com a estrutura fundada em 2001 pelo ator e encenador Luís Castro e pelo artista plástico Vel Z, um protocolo de cedência do espaço deste ateliê na Avenida da Índia, a pouco mais de 300 metros do Centro Cultural de Belém.
Nesta nova morada, o coletivo pretende criar um polo cultural à medida do ímpeto artístico e criativo dos seus associados e amigos. Mas, também, do percurso inovador da KARNART, estrutura que tem marcado o panorama artístico e teatral português com as suas criações perfinst – aliança entre performance e instalação, a bem da “humanização do objeto e da materialização do performer”. Para isso, a estrutura passará a ter à disposição um espaço marcadamente identitário, “tão imprevisível no seu ordenamento quanto os espetáculos e criações” de Luís Castro e seus associados. “Essa é a nossa marca criativa, porque é assim que apelamos à imaginação de quem vê os nossos espetáculos”, completa.
No espaço da Avenida da Índia, a estrutura passará a dispor de um pequeno auditório para espetáculos e acolhimentos, salas de leitura e ensaio, um espaço de galeria para exposições, oficinas e um salão de chá. Futuramente, nas traseiras do edifício, esperam criar-se condições para um espaço de lazer ao ar livre e, nem os mais pequenos serão esquecidos: haverá uma sala num dos pisos do armazém, o que permitirá aos visitantes mais graúdos ter onde deixar as crianças enquanto assistem a espetáculos ou visitam exposições, ao mesmo tempo que os seus filhos se entretêm e aprendem com atividades especialmente criadas para eles.
De enorme importância para a estrutura será o centro de documentação. Conforme confidenciou Mónica Garcez, que nos guiou pelas instalações, “é essencial para a KARNART ter um espaço que compile e sistematize toda a documentação relacionada com a atividade desenvolvida ao longo dos anos, estando aqui à disposição de criadores e investigadores que se interessem pelo estudo do perfinst”. A atriz, associada da estrutura desde 2007, sublinha também outro vetor de enorme importância, aliás coerente com as preocupações ambientais da KARNART: a ecosustentabilidade do espaço. Os trabalhos de restauro que ocuparão associados e amigos ao longo destes próximos meses terão, precisamente, esse aspeto em consideração.
Falando em teatro, a KARNART prevê estrear, a 18 de junho, Petróleo, espetáculo inspirado no conto O Campo da Casilina de Pier Paolo Pasolini. Antes do final do ano, há um regresso ao universo de Raul Brandão e, para a temporada de 2015-2016, uma desafiante incursão em A Divina Comédia de Dante. Tudo a acontecer nesta “casa de cultura” que, como refere Luís Castro, “estará à altura das nossas expetativas enquanto artistas e da imaginação de quem nos visita.”
Sopros de Vida / GITELO77 é o título desta exposição. Quer explicá-lo?
Sopros de vida tem sido aquilo que eu tenho tido. Infelizmente a vida tem sido terrível no sentido da doença. Desde bastante jovem que vivi uma série de situações de risco de vida, com várias intervenções cirúrgicas, especialmente ao coração. Isso começou na altura do meu último concurso para professor catedrático da escola, portanto um pouco antes de 71 e terminou em 99 com um coração novo, com um transplante cardíaco. Uma pessoa transplantada é, como se costuma dizer, um bebé prematuro, tem que ter muitos cuidados porque é sempre muito frágil. Apesar deste currículo clínico, praticamente nunca parei. Houve sempre a tentativa de fazer coisas, porque tinha mesmo que ser. E é a esses diversos momentos que eu chamo sopros de vida. Porque quando tudo apontava para que eu não aparecesse mais, eu aparecia. Para mim, os sopros de vida são alentos que se vão tendo para ir dando azo aos sonhos que ainda não desapareceram.
Trata-se de uma exposição antológica? O que se pode ver nesta mostra?
Chamem-lhe antológica, chamem-lhe retrospetiva, tudo o que quiserem. O que eu entendo é que qualquer pessoa que tem um percurso bastante grande e que se dedica a muitas matérias tudo aquilo que apresenta é retrospetivo. Aliás, se posso classificar esta exposição é uma retroprospetiva, porque apresenta sempre coisas anteriores, como resultado de pesquisas prévias, mas está sempre a querer apresentar coisas novas e para isso é necessário o indivíduo estar atento ao que se vai fazendo e agitado de maneira a poder produzir.
O corpo feminino é uma constante na sua obra. Porquê?
Uma vez perguntaram-me o porquê da obsessão pelo corpo feminino. E eu disse: o corpo feminino encerra muita coisa. Há coisa mais entusiasmante que a curva e a contra curva? Ora o corpo feminino está pleno de curvas e contra curvas, está sempre em movimento de altos e baixos como a própria vida, num jogo de saliências e reentrâncias. Por outro lado, há recantos, lugares no corpo feminino que nunca conseguimos proferir totalmente. Há sempre um mistério. Daí que a figura feminina, quando eu a aplico, e tento nunca ser demasiado literal, encerra sempre um mistério, como a própria vida em si. Por isso é difícil existir um sentido de posse total; há sempre mundos e mundos na figura feminina. Por alguma razão o corpo feminino foi sempre o tema mais abordado nas outras civilizações e em várias outras épocas, é precisamente porque encerra virtudes que não existem noutros lados.
A sua obra pictórica não se filia diretamente em nenhuma corrente estética. Porém, será correto falar em expressionismo a propósito dela?
Expressionismo, entre outras. O expressionismo é importantíssimo porque é aquele que nos dá uma série de sentimentos e de reações; dá-nos toda a vivência da própria vida em si. E isso é fundamental em mim. É uma das características fortes do expressionismo: a reação àquilo que se vê e que nos pode tocar. E até vou mais longe: em determinados momentos da expressão, tem de haver um estado de graça para que o artista possa trabalhar. Eu sou contra os prazos, porque não se pinta por pintar, pinta-se por necessidade. Pinta-se porque algo nos tocou e sentimos uma necessidade de reação. Ora bem, o expressionismo é exatamente isso. É fundamental que o indivíduo tenha espaço para criar, que se encontre no que eu chamo estado de graça, para se poder expressar e valer a pena.
É habitual falar-se numa certa vertente social e política do seu trabalho. Quer comentar?
Tem que refletir sempre essas vertentes, até pela vida em si. A minha vida nunca foi de berço de ouro, foi uma vida subida a pulso, ainda hoje o é. Até para conseguir esta exposição. E depois não podemos esquecer que eu sou do período pós-guerra, onde havia toda a miséria. Ainda mais numa terra no interior, em Mirandela, na altura do racionamento e da vinda dos refugiados de Espanha. Portanto, a vida naquele tempo era rude, terrível. O frio, o quente, seis meses de inverno, seis meses de verão, tudo isso pesa e molda a pessoa.
A sua pintura assume-se também como um diálogo com os mestres do passado. Quais as suas maiores influências?
Quando entro numa exposição, a primeira coisa que eu faço é assimilar o ambiente e ver se há alguma coisa que me toca. Quantas vezes vou a uma exposição de que nem gosto tanto e depois volto lá segunda e terceira vez e acabo por gostar. Quando consegui uma bolsa da Academia de Belas Artes fui para Madrid e a primeira coisa que fiz quando lá cheguei foi ir direito ao Prado e à sala do Velasquez. Dei a volta à sala e perguntei: isto é que é o Velasquez?! E fui-me embora. Depois passei os vinte dias seguintes a ver os seus quadros. Era fantástico! Como é que um homem consegue transmitir aquilo que ele transmite? Por isso influências são muitas. De todas as épocas. Estou sempre aberto a poder encontrar. Aliás, já Picasso dizia isso: “eu não procuro, encontro”. E é verdade. É o encontrar que vai despoletar a faísca para haver necessidade de fazer. Isso pode acontecer no meio da rua, como já me aconteceu, quando encontro um pedaço de uma fotografia. Portanto, tudo é possível, tudo está à mão, é preciso é termos capacidade de ver. E ver é um ato crítico.
Nesta exposição apresenta também algumas peças de escultura. Há quem sugira uma associação das suas peças escultóricas ao existencialismo. Concorda?
Infelizmente poucas. Concordo com isso tudo e ainda mais alguma coisa. Eu estou sempre disponível a poder absorver tudo aquilo que me toca e a poder experimentar. A mim interessa-me, essencialmente, é experimentar, interessa-me é fazer.
A sua obra gráfica, tão reconhecida e premiada, está ausente desta exposição. Porquê?
Apesar de ter começado a minha obra gráfica ainda na Casa Pia, foi entre 71 e 81 que me dediquei inteiramente à gravura. Não só no âmbito da cadeira de gravura que lecionava na Faculdade de Belas-Artes como à gravura virada para o internacional. Foi aí que começaram a surgir os prémios nas principais bienais europeias, como a medalha de ouro na Bienal de Florença. Uma dessas gravuras está, inclusivamente, a representar Portugal na Biblioteca de Washington. A gravura que eu fazia era uma gravura diferente da que se fazia então. Era de grande dimensão e de grande colorido. Em 2002, fiz uma grande retrospetiva de gravura no Centro Cultural da Casa Pia e a partir daí nunca mais me dediquei à obra gráfica. A gravura nunca foi verdadeiramente reconhecida em Portugal.
A Modéstia marca o teu regresso ao trabalho com os Artistas Unidos (AU), mais de três anos depois de Comemoração, de Harold Pinter. O que se sente quando se volta a uma “casa” onde trabalhaste com tanta regularidade ao longo dos anos?
É muito agradável, não sendo esta a minha “casa-mãe” – essa foi o Teatro da Garagem, onde estive, ininterruptamente, mais de sete anos. Mas, com os AU, comecei precisamente em 1995, numa das peças fundadoras da companhia, António, um rapaz de Lisboa, do Jorge Silva Melo. Era um elenco enorme e todos nós éramos tão novinhos [risos]… Agora, e no caso de A Modéstia, foi o João Meireles que me convidou para ser encenada pelo Amândio Pinheiro, que apenas conhecia como ator. Para mim, está a ser uma experiência nova porque, até aqui, nos AU, tinha sido sempre dirigida pelo Jorge Silva Melo.
O que costuma ser mais desafiante no trabalho com os AU?
Tenho trabalhado com pessoas muito diferentes ao longo da minha carreira e, quando volto aos AU, sei que, por norma, vamos estar no campo da dramaturgia contemporânea, e num universo de autores com caraterísticas muito peculiares, como o Pinter, por exemplo. É um trabalho muito diferente do que desenvolvi recentemente no Teatro Meridional, com a Natália Luiza, em As Centenárias, de Newton Moreno.
O que podes desvendar sobre a tua, ou melhor, as tuas personagens nesta “comédia de enganos”, para citar o autor?
Esta é uma peça desconcertante, com um texto que desconstrói, de certo modo, os clássicos, brincando mesmo com eles. Por vezes, parece soar a Tchékov… As minhas personagens são a Ania e a Angela. A Angela tem uma situação familiar complicada e é muito empenhada politicamente, sobretudo na defesa das minorias étnicas. A Ania é precisamente o oposto, uma mulher resignada que tudo faz para salvar o marido. Porém, nada disto é absolutamente óbvio. Depois, há ainda uma terceira personagem que é a atriz Sílvia, aquela que conta a história…
Uma brincadeira com o teatro dentro do teatro?
Sim. A atriz é, também, uma personagem que joga na dificuldade de contar a história. No fundo, esta peça é isso mesmo: um jogo de desconstrução do próprio teatro. Pode parecer complicado, mas estou certa que o público vai gostar de ser parte neste jogo.
Antes de começarmos esta entrevista, falavas na constante surpresa que cada ator reserva aos outros em palco. Podes explicar um pouco melhor?
Vamos surpreender-nos uns aos outros. A única obrigatoriedade neste trabalho é sermos fiéis ao texto, mas não temos um modo cristalizado de agir em palco, ou seja, podemos improvisar nas marcações, no estar em cena. Digamos que esta é outra das faces do jogo que é A Modéstia.
Esta peça foi escrita nos dias da última grande crise económica argentina. Sentes que, em certa medida, isso vai fazer o público português aproximar-se do texto?
Antes de falar com o Amândio, e quando li o texto, achei-o um grande devaneio, por vezes tenebroso e cruel. Depois, falámos e ele diz-me para ter calma que as coisas não eram assim tão sérias… Há, de facto, aspetos muito ligados à realidade argentina, mas parece-me um texto universal e, infelizmente para nós, contém muitas situações que se aproximam daquelas que estamos a viver por estes dias.
Apesar de teres presença regular nos palcos, nos últimos anos tornaste-te uma atriz muito reconhecida devido à televisão. Sentes que isso mudou a tua vida?
A televisão faz-nos entrar diariamente na casa das pessoas, algo que provoca um tremendo impacto na vida de um ator. Já não consigo entrar num restaurante com o meu filho e permanecer incógnita [risos]. As pessoas abordam-nos, olham-nos… Mas, já aprendi a lidar com isso. Acho que somos olhados pelo público como vendedores de sonhos. E, as pessoas confundem-nos mesmo com as personagens. Lembro-me que, na telenovela Laços de Sangue, interpretava uma mãe com um filho problemático e, um dia, uma senhora aborda-me na rua confessando ter um problema semelhante ao da minha personagem. Foi desconcertante e, às tantas, já era eu própria a torcer para que tudo corresse bem à mulher que interpretava, sabendo que isso iria significar dar esperança a um sem número de pessoas que acompanhavam aquele drama pela televisão.
Sentes-te bem a fazer teatro e televisão?
Sem dúvida. O teatro é ritualístico, acontece ali, damos tudo no momento. A televisão é intensiva. Mas, gosto de ambos e sinto-me bem, tendo noção que trabalhar em televisão é ainda, para mim, um processo em aprendizagem. Ao mesmo tempo, o trabalho em televisão acaba por me poupar mais enquanto atriz e, sobretudo, enquanto mãe, já que me permite dispor de noites e gerir o tempo de um outro modo.
Para além de atriz, tens também formação em canto. Tens saudades de fazer teatro musical?
Muitas saudades. Fiz muito teatro musical no Teatro Aberto, aqui nos AU, no Esta Noite Improvisa-se, e foram experiências fantásticas. Agora que falas nisso, pergunto: quando é que me convidam para voltar a fazer um musical [risos].
Enquanto não chega o convite para o musical, tens outros projetos?
Não sou pessoa de projetar a longo prazo. Nunca delineei propriamente uma estratégia de carreira para não criar ilusões que se transformam em desilusões. E, se calhar ainda bem, porque o mais certo é não haver trabalho [risos]. Mas agora, logo a seguir à peça, vou continuar as gravações da série Bem-vindos a Beirais e, quem sabe, reincidir com um novo projeto nos AU, se a conjuntura o permitir. Até porque, a situação está, de facto, muito difícil para as companhias de teatro em Portugal e nenhum de nós pode contar seja com o que for como certo.
Para uma geração que andará entre os 30 e os 40 anos, a última grande referência que subsiste do fulgor do teatro de revista remonta há mais de duas décadas, quando Filipe La Féria levou ao palco do Teatro Nacional D. Maria II Passa por mim no Rossio. Apesar de dezenas e dezenas de atores, bailarinos, autores e cantores terem, com assinalável tenacidade e perseverança, feito o esforço de não deixar morrer o género – sobretudo na sua “casa” de eleição, o Parque Mayer – ao longo dos últimos anos, são poucas, ou nenhumas, as referências que os mais jovens têm da revista à portuguesa.
Porém, desde a segunda metade de 2013, Lisboa deixou-se, de novo, surpreender por uma nova vida do teatro de revista. Primeiro, e uma vez mais, com La Féria, que leva à cena, no Teatro Politeama, a sua Grande Revista à Portuguesa. Meses depois, com o produtor Hélder Freire Costa a estrear, no coração do Parque Mayer, Lisboa Amor Perfeito. O sucesso destas duas revistas à portuguesa justifica que ambos os espetáculos permaneçam em cartaz há já longos meses. Surpreendentemente, ou talvez não, o improvável aconteceu: ao desafio do Teatro Nacional D. Maria II, pelo diretor artístico João Mota, para conceber um espetáculo para a Sala Garrett, o Teatro Praga respondeu com… uma revista à portuguesa!
Para Pedro Zegre Penim, dos Praga, “não é tão surpreendente assim criarmos uma autêntica revista à portuguesa. Sempre nos sentimos fascinados pelo género, e olhando ao nosso percurso é particularmente interessante reconhecer algumas caraterísticas do nosso teatro na revista à portuguesa”. O diretor e encenador sublinha essas similitudes em aspetos como “não nos apoiarmos numa linha narrativa com princípio, meio e fim; estabelecermos sempre uma relação de grande frontalidade com o público; ou apostarmos constantemente na colaboração interdisciplinar entre teatro, vídeo, música ou artes plásticas.”
No grande caldeirão que é criar uma revista à portuguesa cumprindo a sua melhor tradição, Tropa-Fandanga conta com textos escritos a várias mãos (a abertura da revista vinca, precisamente, essa caraterística de criação coletiva que sempre fez escola no género). Ao mesmo tempo, e à sombra dos 163 anos da história do teatro de revista, colaboram neste espetáculo criadores de diferentes escolas e sensibilidades, como os artistas plásticos Vasco Araújo e João Pedro Vale, o músico Sérgio Godinho, que assina as canções originais, o cenógrafo José Capela, ou a fadista Filipa Cardoso, presença assídua em algumas das mais recentes produções do teatro de revista que veem sendo feitas no Parque Mayer.
A estes nomes, junta-se inevitavelmente a grande atração deste espetáculo dos Praga, José Raposo. À relutância que muitos possam ter quanto a uma revista à portuguesa criada pelo coletivo liderado por Penim, José Maria Vieira Mendes e André e. Teodósio, o popular ator responde: “Tropa-Fandanga é mesmo uma revista bem à portuguesa!” Raposo refere, precisamente, a importância de fazer parte de um projeto liderado por artistas “completamente descomplexados quanto a um género que tem sido tão maltratado nos últimos anos”. “Por ser um espetáculo do Teatro Praga, espero que outros públicos, sobretudo as novas gerações que nunca viram um espetáculo de revista ao vivo, possam descobrir este género de teatro tão português.”
Tendo como tema central a guerra – num assinalar dos 100 anos do início da I Guerra Mundial e dos 40 anos do fim da Guerra Colonial –, Tropa-Fandanga proporciona uma viagem do século XX à atualidade, frisando a herança histórica da cultura popular portuguesa. Aos textos e temas musicais originais, junta-se um momento antológico, interpretado por José Raposo, de homenagem a Raul Solnado no célebre quadro da revista Bate o Pé, A Guerra entre Aspas; a recuperação de temas do cancioneiro popular; ou a recriação de fados célebres, como Fado Falado, que João Villaret interpretou, e Fado do 31, de Pereira Coelho. Porque, como nos confessou Vieira Mendes, “nesta ‘guerra’ queremos espalhar a revista pelo mundo e fazer do fado a sua banda sonora.”
Inicialmente concebidos para zonas com poucas ou nenhumas árvores, estes objetos, da autoria do artista plástico Leonel Moura, têm agora um novo modelo inspirado nas obras de Mondrian e Van Gogh, encomendado por holandeses.
Fabricados através do processo de rotomoldagem, estes novos jardins mantém uma grande variedade de cores vivas, mas oferecem uma maior robustez e resistência. Aliando o conceito de mobilidade a um design provocador e inovador, os jardins permitem diversas utilizações, para interior e exterior, podendo ser usados em projetos de renovação urbana ou eventos pontuais. Os utilizadores podem ainda interagir com os objetos, uma vez que os podem dispor da forma que desejarem de forma a criar sombra ou espaço de convívio, gerando animação e um ambiente lúdico.
Recorde-se que o projeto Jardim Portátil foi concebido em 2002 e apresentado pela primeira vez na Bienal de Valencia de 2003. Os primeiros modelos, realizados em resina, têm sido expostos e comercializados em várias partes do mundo, incluindo Valência, Xangai e Lisboa.
Os jardins portáteis são comercializados em Portugal pela Robotarium.
O espaço existe! É a Galeria da Boavista, localizada a meio caminho entre Cais do Sodré e Santos, numa rua (a da Boavista) onde, na Lisboa de outros tempos, existiam dezenas de lojas de ferragens. O espaço é uma galeria municipal de arte contemporânea que, ao longo das próximas quatro semanas, está por conta da Máquina Agradável, da AADK – Arquitectura Actual da Cultura e de um sem-número de artistas independentes predispostos a “combater a indiferença cultural” e criar sem limites num espaço ao dispor. Por isso mesmo, o que aqui irá ler a seguir não faz referência a uma programação de antemão determinada, porque, como salienta a organização, “cada dia é, garantidamente, uma experiência nova”.
Entrar! A partir de 28 de novembro, seja bem-vindo. Ir “à galeria” pode ser uma prática quase diária até à chegada do Natal. Ao longo da semana, as portas abrem-se ao fim da tarde; aos fins-de-semana, tudo começa mais cedo – e aos domingos, até há atividades para os mais pequenos. Porque ali, na Boavista, acontece sempre qualquer coisa capaz de nos surpreender. São as mostras de artes plásticas, as jam sessions, as performances, a dança e tudo mais, porque a imaginação é o único limite para a criação.
Tendo em conta a experiência do ano passado – quando o evento ostentou o sugestivo título Ora bolas, há espaço, vamos usá-lo! –, na galeria pretende-se “gerar um acontecimento baseado na experimentação, no possível, no cruzamento de ideias e de áreas, sem a pressão dos resultados e sobretudo do sucesso”. E, nem mesmo o dinheiro que trouxer no bolso é um problema para dizer “presente”. Basta uma pequena contribuição para ajudar a alimentar o projeto e, é só entrar…
Ver! Como referimos, o Demimonde na Galeria da Boavista recusa os espartilhos de uma programação previamente definida. O espaço e os acontecimentos estão por conta dos artistas. Confirmam-se as presenças regulares de Vânia Rovisco, Ana Bigotte, Tiago Barbosa, Daniela Silvestre, Ana Monteiro, Francisca Santos, Cláudio da Silva, Joana Cotrim e outras dezenas de criadores das mais variadas áreas artísticas.
Num ambiente de partilha, a arte combina muito bem com o convívio. A galeria não é, evidentemente, um bar nem um restaurante, mas haverá sempre um ou outro petisco e um copo de vinho para animar a troca de dois dedos de conversa com os artistas.
Criar! E se lhe dissermos que parte da experiência desta iniciativa passa por deixar em aberto a hipótese de entrar, ver, mas também, criar. Ao longo destas semanas, o desafio é lançado a quem ouse agarrar a oportunidade de mostrar o seu lado mais criativo. Desde que haja espaço, fica ao seu critério passar de membro do público a criador.
O Demimonde na Galeria da Boavista deverá funcionar de quinta a domingo mas, aqui, quem mais ordena são os artistas. Por isso mesmo, até 15 de dezembro – apesar da organização considerar que este prazo pode muito bem ser elástico! – mantém-se o Open Call a artistas e criadores. As informações básicas para apresentar propostas estão disponiveis na página do Demimonde no facebook.
Porque há sempre um grande grau de imprevisibilidade num projeto que não quer ser, de todo, previsível, arrisque ir passando na Galeria da Boavista. Espetador ou/e criador, garantimos que se vai surpreender.
Como dizia Jean-Jacques Brochier, os filmes de Luis Buñuel (Espanha, 1900 – México, 1983) “manifestam uma unidade na diversidade notável”. Dadas as contingências de um percurso de vida acidentado – destacando-se o exílio mexicano, nacionalidade que viria a adotar –, este natural de Aragão, que estudou nos Jesuítas e acabou por se tornar num dos artistas malditos para a igreja católica, conheceu os mais diversos sistemas de produção. A sua obra, muitas vezes controversa e polémica, compreende o filme surrealista, o melodrama mexicano e “a odisseia histórica ou burguesa”. Díspar nos conteúdos, é certo, mas sempre fiel aos princípios de realização, à dedicação humanista e à “denúncia das alienações” que continuaram a ser as mesmas dos anos de 1930 até ao fim da vida.
Para homenagear este grande mestre do cinema, a Cinemateca Portuguesa dedica, no âmbito do CineFiesta, um dia inteiro (23 de novembro) a Buñuel, com três obras-primas de fases distintas do percurso do cineasta. Em complemento, o crítico de cinema e antigo diretor da Filmoteca Española e do Instituto de Cinema Espanhol, Miguel Marías, apresenta uma conferência em torno da filmografia e do percurso do realizador, que assinou mais de três dezenas de obras em países como França, Espanha, México e Estados Unidos da América.
(Re)descobrir Buñuel
A primeira proposta da Cinemateca e do CineFiesta para descobrir, ou redescobrir, o cinema de Luis Buñuel é o seu primeiro filme a solo. Sucessor de Un Chien Andalou (uma “obra capital sob todos os pontos de vista”, como considerou Jean Vigo – filme de autoria partilhada com Salvador Dáli), A Idade de Ouro (L´âge d´Or, 1930) é, como o próprio Buñuel disse, “uma película romântica executada em pleno frenesim surrealista”, onde “o instinto sexual e o sentimento da morte formam a substância do filme”. Filmado e produzido em França, a obra legou algumas das cenas mais inesquecíveis do cinema, como Lya Lys a chupar um dedo do pé de uma estátua, um angélico Jesus Cristo seguido por apóstolos libertinos atravessando a ponte de um castelo ou o pintor Max Ernst a encarnar um bandido moribundo.
Filmado no México, Nazarin (1960) é uma adaptação do romance de Benito Pérez Galdós e o filme onde habita “o único padre ´positivo´ na obra de Buñuel”. A história desenvolve-se em torno de um clérigo que renuncia aos bens materiais e toma a defesa dos oprimidos. A opção valer-lhe-á a humilhação, a violência e a prisão imposta pelos seus semelhantes. Uma obra polémica que dividiu opiniões, tendo sido proibida, à época, em Portugal.
Este pequeno ciclo termina com Tristana – Amor Perverso (1970), obra realizada na Europa, com Catherine Deneuve e Fernando Rey a interpretar os papéis principais. Tal como Nazarin, Tristana adapta um romance de Benito Pérez Galdós, e narra a história de uma jovem inocente seduzida por um galanteador mais velho. O filme retrata as perversões sexuais, o desejo e as obsessões – temas muito presentes nesta fase da filmografia de Buñuel – que, aqui, conduzem a um desfecho trágico.
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