No espaço amplo do Negócio, na Rua d´O Século, o público é convidado a dispensar a bancada. O objetivo é que, literalmente, se plante onde mais lhe aprouver. Daí a poucos minutos, a performer entra, procura um feixe de luz e planta-se também. Como uma árvore que vive.
Os pés descalços são raízes, os membros inferiores o tronco, os braços os galhos de uma árvore que pulsa, sente e respira. A terra está em constante movimento: há o vento que sopra, ora calmo, ora violento; há o chão que mexe e acossa a quietude de uma existência plácida. O corpo agita-se e desafia a leveza de ser árvore.
Segundo Sara Anjo, Em Forma de Árvore é uma peça para “procurar a quietude, aquilo que é latente num lugar e o que daí emerge”. O trabalho do corpo “alimenta-se da vivência da paisagem, das memórias da terra de onde venho, a ilha da Madeira”, algo que a coreógrafa e performer já havia experimentado no solo Strip Tree, mas que “agora evoluiu.”
A peça, que agora estreia em Lisboa, dá sequência ao trabalho desenvolvido por Sara Anjo no âmbito do Mestrado em Coreografia, pela Theatreschool de Amesterdão. O percurso enquanto artista, realizado entre Lisboa e Berlim, tem sido marcado pela relação do corpo com a paisagem e com as perspetivas fornecidas pelo espaço interior e exterior, estando muito presente a influência da insularidade, “muito própria de quem nasceu numa ilha”, como confessa.
Por vezes, uma polémica parece sobrepor-se à obra que a desencadeia. Se recuarmos a 2011, quando Sul Concetto di Volto Nel Figlio di Dio – Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus – estreou em Paris, no Théâtre de la Ville, iremos ouvir pouco debate sobre a peça e muito ruído sobre os incidentes desencadeados por grupos fundamentalistas cristãos, apostados em protestar veementemente contra a apresentação do espetáculo. Segundo eles, Romeo Castellucci é um “cristianofóbico” e concebera uma peça ofensiva da moral cristã.
Em palco, um pai e um filho, sob o olhar omnipresente de Cristo (representado na pintura de Antonello de Messina Salvatore Mundi). O filho tenta ir trabalhar, mas tem de deixar o pai idoso, assolado por incontinência fecal, limpo e confortável. Por um lado, há a abnegação do filho, por outro, o comportamento do pai que parece punir o filho. Será o pai “o sinédoque de Deus” e o filho, Jesus na cruz?
Quase cinco anos depois, quando recorda os episódios de Paris (depois, mais levemente replicados noutros locais), Castellucci desvaloriza, sublinhando que essas pessoas procuravam “apenas a polémica, talvez por razões políticas demasiado entediantes”. Desde dai, a peça percorreu o mundo, inquietou e lançou a dúvida, cumprindo essa missão do teatro enquanto “espaço da indeterminação”, como refere o encenador a Tiago Bartolomeu Costa, numa entrevista recente, incluída na folha de sala da apresentação em Lisboa do espetáculo.
Afinal, Castellucci considera que “o teatro não pode ser um lugar de consumo. É antes de mais um espaço problemático porque questiona e exige que o espetador invente. É um espaço quase moral, diria, porque pede, sobretudo, que o olhar seja responsável”. Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus é um arquétipo desta conceção de teatro. Com, ou sem, controvérsias e escândalos.
Mas valerá a pena ressuscitar a polémica perante um criador reconhecido mundialmente, tão amado e, simultaneamente, tão odiado por, no fundo, procurar quebrar os limites em algo tão presente na estética ocidental como o binómio ausência e presença de Deus?
Para a diretora artística do Teatro Municipal São Luiz, Aida Tavares, “depois de ver o espetáculo tenho a certeza que grande parte do público não vai compreender o que sucedeu em Paris. Acho até que é um espetáculo bastante cristão, apesar de questionar a fé e a religiosidade, e a nós próprios, perante determinadas situações das nossas vidas.”
Como contributo para a reflexão, e ao mesmo tempo para prestar a devida homenagem a um nome tão relevante da cena mundial, o São Luiz propõe uma programação paralela que acompanha a apresentação, em estreia nacional (a peça será apresentada a 12 de maio, no Porto), de Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus. “Sentimos que a complexidade da peça e, no fundo, de toda a obra de Castellucci, deveria ser acompanhada por um ciclo de iniciativas que propusessem ao público um enquadramento”.
Assim, logo a partir de 3 de maio, o São Luiz inicia a exibição em vídeo de Tragedia Endogonidia, “um vasto projeto de recapitulação teatral” em episódios onde se “inventam situações e acontecimentos encenados sem comentários nem explicações.” Cabe ao espetador observar e interpretar o que está a ver, em oposição a um tempo em que o teatro usa “as suas próprias regras de ficção e retórica” para persuadir o público num determinado sentido politico e social.
“Os outros momentos que compõem a programação são uma masterclass com o próprio Romeu Castellucci; uma conversa do encenador com o público, logo após o espetáculo de dia 7; e uma conversa entre Maria Filomena Molder, Mónica Calle e o padre José Tolentino Mendonça, moderada por Pedro Sobrado, onde, a partir do espetáculo, se vão debater temas como a fé, a ética ou a política”, salienta Aida Tavares.
Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus é apresentado no âmbito do programa Noites Maria & Luiz, uma iniciativa conjunta dos teatro municipais São Luiz e Maria Matos, que promete trazer a Lisboa alguns dos nomes mais importantes da cena artística internacional. Romeo Castellucci sucede ao coreógrafo francês Jérôme Bel, que apresentou na passada semana em Lisboa, Gala.
Apesar de escrito no final dos anos de 1980, numa Alemanha ainda dividida, existe uma perturbadora atualidade no texto do grande autor, encenador e ator germânico Manfred Karge. A Conquista do Pólo Sul é um mural sobre o sonho e realidade, sobre a solidariedade, sobre a constante oposição entre o coletivo e o individual, sobre um tempo sem futuro. Mas é também uma belíssima peça sobre a esperança no combate a todas as crises. Bem precisamos, “nas circunstâncias atuais da nossa querida Europa”, como sublinha a encenadora Beatriz Batarda.
Num bairro de uma qualquer cidade operária da Alemanha (ou de um outro qualquer país deste continente), quatro jovens desempregados embrenham-se no tédio de uma vida que parece ter perdido o sentido. Há as drogas, os pequenos golpes, a violência latente no relacionamento entre eles e os outros. E pouco mais alimenta os dias que uma televisão ligada em fundo, servindo de compasso a estes tempos bárbaros.
Até que, contra todas as expetativas, um deles descobre um livro sobre o grande explorador Roald Amundsen, o primeiro a liderar uma expedição bem-sucedida ao remoto Pólo Sul. Levados pela necessidade de ilusão – no fundo esta é “uma história sobre quatro desgraçados à procura da fé”, refere Batarda –, os quatro amigos encarnam a equipa de exploradores que, sem sair do sótão onde até aqui levavam uma existência letárgica, partem numa aventura sem limites, à descoberta de um mundo onde ainda é possível vencer as adversidades e encontrar um caminho, duro e de desfecho incerto, para a esperança.
De uma riqueza surpreendente, combinando a anarquia da linguagem comum com a beleza de um poema, a peça de Karge tem a graça “de revelar-nos a nossa própria alma, indo para lá do drama social e da própria metáfora”. É, acrescenta a encenadora, “escrita por um autor brechtiano até à medula que não hesita em fazer uma reflexão sobre o teatro, na sua capacidade de transformação, de ilusão e de desconstrução dessa mesma ilusão”. Por isso, num diálogo propositadamente ambíguo entre o sonho e realidade, mediado a partir do palco, A Conquista do Pólo Sul é um elogio à utopia feito em “estado de guerra”.
Para além de Bruno Nogueira, Miguel Damião, Nuno Lopes e Romeu Costa, o espetáculo conta com interpretações de Ana Brandão, Flávia Gusmão e Nuno Nunes, estando em cena até 24 de abril, no Teatro Municipal São Luiz, antes de seguir para digressão nacional.
No escuro e no silêncio da sala ecoa, subtilmente, um escorrer de areias, depois terras que se revolvem com maior celeridade. Parece que o mundo se cria ou, quem sabe, se reinventa. Parecendo flutuar no espaço, destrinçamos dois corpos nus – um homem, uma mulher. Sobre uma mesa de ateliê de arquitetura inicia-se a construção de uma paisagem. São pequenas formas, árvores, arbustos, pedras, troncos que, metodicamente, os dois performers vão dispondo, e voltando a dispor, sobre o horizonte no qual se fundem.
Subitamente, uma fúria impele os “arquitetos” deste mundo. À semelhança da natureza, ou do próprio homem, tudo é alterado, ou até mesmo destruído, para se construir de novo. Até à projeção de um novo mundo, de um outro horizonte. Sempre efémero.
Em Gentileza de um Gigante, Gustavo Círiaco, coreógrafo e artista concetual natural do Rio de Janeiro e residente em Lisboa, cria um espetáculo subtil e de rara beleza, com o crivo das preocupações ecológicas. Num diálogo simultaneamente livre e metódico entre os performers Ana Tricão e Tiago Barbosa e a construção de paisagens com vestígios naturais (pequenas plantas, ramos de árvores, pedras recolhidas numa residência artística em São Miguel, etc.) propõe-se “uma reflexão sobre o modo como a humanidade altera a paisagem para mudar o mundo e servir-se dele”.
“Aquilo que mostramos são já paisagens silenciosas que remetem para o antropoceno [tempo geológico que vivemos, profundamente influenciado pela ação humana], no qual o homem acelera quaisquer mudanças naturais no planeta”, sublinha Círiaco. Este silêncio justifica-se na existência de um mundo natural que persiste. Porém, perdeu a vida devido à intervenção do Homem – o coreógrafo lembra o caso do Rio Doce, no Brasil, “que continua a correr, embora sem vida alguma”.
Imitando a Natureza (humana), com a sua força criadora, mas também destruidora, os dois performers estendem a paisagem. São eles o “criador de mundo”, “o arquiteto”, o “gigante” do título que “faz no teatro a invenção da paisagem”. São um homem e uma mulher, elementos de múltiplas simbologias (humanidade, criação, Adão e Eva…), inventores de inúmeras ficções, dos grandes mistérios. Eles movem-se, movem os elementos, mas nunca se olham apesar de nesta paisagem haver “sexo e uma notória volúpia do fim”. O da própria espécie, “o da natureza sublime que nos colocou lado a lado”.
E nós olhamos, e fazemos a história. Pensamos que ali discorre uma síntese de mundo, até que tudo se apaga, a mesa de arquiteto esvazia-se e no lugar do homem e da mulher já só resta o vazio.
Começou muito cedo a sua vida de artista, chegou até a fazer teatro na escola. Recorda-se do momento em que percebeu que queria fazer da música a sua vida?
Isso foi acontecendo, mas penso que foi na adolescência, quando se instala a insatisfação e nos refugiamos na música. Lembro-me que, quando fazíamos excursões na escola, mandavam-me sempre cantar a mim. Andei num colégio que tinha internato masculino e feminino, no Carregal do Sal, que apesar de tudo não era um meio tão fechado quanto isso. Havia um movimento estudantil, uma agitação nos cafés, e a música era central na vida dos adolescentes, ligava-nos. Na altura comecei a cantar e aprendi a tocar guitarra e foi assim que tudo aconteceu.
A Dina foi uma das pessoas que mais vezes deu voz a genéricos de novelas. O processo de composição de fazer músicas para um álbum ou para uma personagem é muito diferente?
Na primeira novela da RTP fui convidada para cantar o tema de uma miúda problemática, mas o genérico era cantado pelo Samuel. A canção a que dava voz era um tema da Rosa Lobato Faria e do Vítor Mamede. Depois, na TVI, fiz o genérico de Telhados de Vidro, e ainda mais duas ou três canções. É um processo muito diferente. Gosto muito de fazer músicas propositadamente para um personagem. Adoraria fazer a banda sonora de um filme. É muito interessante pegar no perfil de um personagem e construir a música de acordo com as nuancesdele. Foi um trabalho que me deu muito gozo fazer, mas entretanto as coisas mudaram. As editoras começaram a usar as novelas para divulgarem álbuns que estavam para sair. E deixou de haver inéditos.
Em 1992 participou no Festival da Canção com um dos seus maiores êxitos, Amor de Água Fresca. Diria que esta canção foi um marco na sua carreira?
Sem dúvida. Quis fazer uma canção para ganhar, e assim foi. A Rosinha (Lobato Faria) fez um cocktail de frutas muito engraçado… Considero que tenho dois ex-libris na minha carreira: Há sempre Música entre Nós, de 1981, que ainda hoje as pessoas conhecem, e Amor de Água Fresca que é transversal a várias gerações. É uma canção muito animada, muito fresca e que fala em fruta. Dá para fazer várias leituras dali [risos], é uma canção feliz, e, sem dúvida, um ícone.
Essa parceria entre a Dina e a Rosa Lobato Faria foi longa. Como era o vosso processo de trabalho?
Lembro-me que quando estava a fazer o álbum Aqui e Agora, tinha uma canção sem letra (sou mais compositora do que propriamente letrista). Mostrei a canção à Teresa Miguel das Doce, que me sugeriu que falasse com a Rosa. Sempre fui um bocadinho distraída da vida, e na altura não tinha noção de que a Rosinha andava metida nesta coisa das canções. Entretanto combinámos e a Teresa levou-me a casa da Rosa. Houve logo uma empatia enorme, e ela fez a letra com a maior das facilidades. A canção acabou por se chamar Acordei o Vento. Gostei logo da letra e de dizer as palavras dela. Nasceu daí uma enorme amizade, nem podia começar a tocar uma música ao pé dela, que ela começava logo a pensar na letra [risos]. Foi uma pessoa que serviu muito bem as minhas canções e que faz falta a muita gente.
Juntamente com a Rosa Lobato Faria, compôs o hino de dois partidos políticos. Alguma vez se arrependeu de ter emprestado a sua voz à política?
A única coisa que me magoou nesse processo foi que toda a gente reparou que eu dei a voz, mas no entanto toda a gente dava a cara e essas pessoas nunca foram questionadas. Lembro-me da Mafalda Veiga, do Pedro Granger, por exemplo. Isso incomodava-me um bocado, porque eu queria era que falassem da minha música. Somos cidadãos como outros quaisquer, temos direito a ter as nossas convicções. Não diria que estou arrependida, mas tinha feito as coisas de forma diferente, até porque fui muito penalizada por isso.
No dia 22 de março, é homenageada no São Luiz por Ana Bacalhau, B Fachada, Best Youth, Da Chick, D’Alva, Márcia, Mitó, Samuel Úria e Tochapestana. Como é que olha para esta nova geração de músicos?
O que eu gosto nesta gente é o facto de serem descomprometidos com o sistema, ao mesmo tempo que são muito comprometidos com o seu trabalho. Quando o Gonçalo Tocha me apresentou esta ideia, pensou logo numa homenagem, não com gente da minha geração, mas com gente desta nova geração de músicos. Gente que conhece e que gosta do meu trabalho. Quando conheci o B Fachada ele trazia o meu primeiro disco, em vinil. Lembro-me de lhe ter perguntado se ele conhecia o álbum, ao que ele me respondeu: ”conheço muito mais de ti do que tu de mim”. Fiquei orgulhosa, o B Fachada é um personagem. Por arrasto veio esta malta toda… Por exemplo, acho que o Samuel Úria tem um bocado da minha ‘cena’. Não digo que tenham ido beber à minha música, mas sabem quem eu sou, conhecem o meu trabalho e agradou-lhes a ideia de fazer este espetáculo.
Conhece as versões que eles vão fazer ou vai ser uma completa surpresa?
Como intérpretes e autores que são é natural que deem o seu cunho pessoal. Aliás, basta abrirem a boca para a música já não ser minha, passa logo a ser deles. Estou muito curiosa e ansiosa por ver as minhas músicas serem cantadas por esta malta toda [risos]. Vou estar em palco com eles a tocar. À partida também cantarei uma ou duas canções vamos ver…
Este concerto marca o encerramento da sua carreira. Sente que está na altura de dar lugar aos mais novos?
Exatamente por ser o encerramento da minha carreira é que faço questão de estar em cima do palco. Não tem a ver com isso, o que acontece é que tenho um problema de saúde que não me permite continuar a cantar. Tenho fibrose pulmonar há nove anos e isso limita-me enquanto cantora. Não posso estar em cima de um palco a tossir, simplesmente não dá. Mas vou terminar com chave de ouro, com esta malta toda a cantar as minhas músicas no São Luiz.
Tem sido recorrente no teu percurso a adaptação ao teatro de obras não dramáticas. Pinocchio sucede a O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (2014). O que te motiva a fazer estas adaptações?
São sempre projetos muito aliciantes, que me dão um particular gozo. A linguagem do teatro é complexa e vasta e, enquanto encenador, o meu trabalho tem estado sempre muito ligado à palavra, ao texto como base e fundamento do espetáculo. Há romances, como o do Wilde ou o Frankenstein (que adaptámos em 2002), de que gosto muito, e isso motiva-me a explorá-los dentro da linguagem teatral. Aquilo que verdadeiramente procuro nas adaptações é a relação e o diálogo com a obra, recusando dizer, pura e simplesmente, “isto é o livro”.
Esse trabalho de exploração, que conduz à adaptação ao palco, pode ser entendido como a escrita de uma peça baseada num romance?
No romance e no teatro há sempre elementos que se tocam, mas entendo que a adaptação nunca deve ser escrever uma peça de teatro a partir do romance. Esse trabalho de exploração jamais tem em vista desvirtuar o romance. Importa sim “apanhar” a sua linguagem e perceber como é que ela pode funcionar em cena, considerando sempre a interpretação dos atores e todos os outros elementos que compõem um espetáculo de teatro.
Há uma liberdade acrescida nesse processo?
Digamos que um texto dramático, uma peça já escrita, pode ser entendido como uma partitura – dali partimos, e resta-nos procurar aquilo que podemos dar de novo e de único. Talvez por isso, não me custa reconhecer alguma liberdade nestes projetos que partem de textos literários. No Dorian Gray, por exemplo, foi nos ensaios que descobrimos como transformar os diálogos, como torna-los dramáticos, como perceber os movimentos e dar-lhes mais ou menos lirismo, mais ou menos dramatismo. Nesse sentido, reconheço uma liberdade quase total.
Pinocchio é, e ao mesmo tempo não é, uma obra que se pode balizar na literatura para a infância. O que te seduziu ao ponto de a querer trazer para o teatro?
Pinocchio foi sempre um personagem muito presente no meu imaginário e acompanha-me a recordação da minha mãe a ler-mo quando era criança. Talvez por isso, foi sempre um personagem muito vivo no meu imaginário. Já em adulto, li a obra de Collodi e percebi ser um livro diferente da maior parte dos livros dedicados à infância. Penso que pelo tema, pela odisseia daquele boneco de madeira que quer ser um menino de verdade, tão carregada de densidade e de negrume, algo que a minha memória de infância não deixava perceber…
Quando decidiste avançar com o projeto?
Soube que tinha de o fazer, e há dois anos que trabalhamos nele. Primeiro, pensámos fazer um espetáculo para crianças, porém, fui relacionando-me cada vez mais com a obra e percebi que o que lá está é muito mais do que aquilo que se lê. Isto porque, entendi o Pinocchio como uma representação do ser humano naquilo que é o desejo mais intimo de se cumprir, ou seja, a ambição (que, por sinal, perpassa todos os clássicos) de responder ao que sou, ao que anseio ser e àquilo que não posso ser…
Constatá-lo definiu o sentido da adaptação na procura de fazer um espetáculo para um público adulto?
Inequivocamente, pela linguagem, o livro foi escrito para crianças e nós não queremos desvirtuar isso. Se por um lado não estamos a trabalhar para a infância, estamos a trabalhar no território da infância. Logo, queremos que Pinocchio seja entendido como uma representação de todos nós, mas com as particularidades da infância – por exemplo, as mentiras que fazem o nariz crescer entendo-as como mentiras belas, sem a perversidade das dos adultos. Depois, há um contorno trágico naquela odisseia terrível por que ele passa para se fazer humano, com os códigos de sociedade, uns melhores, outros piores, a imporem-se… é um mundo lá dentro.
Mas se a odisseia, tal como o mundo, é trágica, aqui o final é feliz…
Esse é um dos mistérios do livro. Não estou tão certo, confesso, se o Pinocchio ao transformar-se em rapaz representa um final feliz.
A obra é povoada por inúmeras personagens mas, nesta versão, há apenas dois atores [António Mortágua e Carolina Salles]. Ao mesmo tempo, o espetáculo vai ser apresentado num espaço relativamente pequeno, uma vez que o público sentar-se-á numa bancada fixa no palco do Maria Matos. Procura-se um lado intimista para viver esta odisseia?
Conforme fui trabalhando o texto percebi que o queria fazer com dois atores, e chegámos mesmo a pensar apresentar o espetáculo no nosso espaço, a Ribeira. Na verdade, quero esse caráter intimista do espaço pequeno, dos dois atores, de partir da relação entre o Pinocchio e o Geppetto… Mas vai haver surpresas, como um coro muito particular, não humano… Em suma, um trabalho com elementos ligados à tragédia.
Pensas que este Pinocchio vai ajudar o público a reencontrar o imaginário de infância?
Os italianos trabalharam sempre muito as várias camadas do Pinocchio, e até no teatro o fizeram. Aqui, a imagem do personagem está muito fixada no filme de Walt Disney. Mas é o meu fascínio pelo território da infância que me traz aqui. A ver vamos como o público entenderá isso neste nosso espetáculo.
Como é que nasceu a vontade de promover esta ‘’okupação’’?
André e. Teodósio: O projeto partiu de uma ideia da Anabela que, na sequência do trabalho que tem desenvolvido nas entrevistas em tom intimista a algumas personalidades, idealizou um evento cujo tema fosse Estar em Casa. Entretanto, convidou-me, e em conjunto fomos elaborando um programa que conjugasse o tema numa ideia comum de programação.
Portanto, uma ideia da Anabela concretizada a dois…
Anabela Mota Ribeiro: Sim. Eu sou uma pessoa muito doméstica, mas por domesticar [risos]. E pretendo manter-me indómita tanto quanto possível. Apesar de gostar daquilo que não se deixa domesticar, preciso de reconhecer a domesticidade, logo necessito de ter um sentimento de ‘casa’…
Necessidade que transparece no seu percurso de jornalista, de entrevistadora…
AMR: Exato. O meu interesse pelas pessoas, pelo que elas são, pelo ‘interior’, levou-me a pensar neste Estar em Casa.
E o projeto estava já idealizado para o Teatro São Luiz?
AMR: Vivo em Lisboa desde 1999, e desde essa altura, sinto o São Luiz como uma ‘casa’. Aqui, neste espaço e com estas pessoas, vivo, por afinidades, com esse sentimento de ‘casa’. Por isso, decidi apresentar o projeto à Aida Tavares [diretora do São Luiz Teatro Municipal], no sentido de criar um evento que nos fizesse viver o teatro como se fosse uma casa. Teatro esse que iria ser aberto à cidade e, num cruzamento dinâmico, traria a cidade e as vidas da cidade para dentro de casa.
E como é que lhe ocorreu convidar o André para o projeto?
AMR: Foi logo na primeira reunião que tive com a Aida que pensei no André. Daí, considerar que só por acaso a ideia é minha. Sinto que o André é tão autor quanto eu.
Mas, porquê o André?
AMR: Há uns tempos fiz uma entrevista ao André para o Público a que dei o título A singularíssima cabeça de um alien barroco. Foi precisamente essa “cabeça”, o ser uma pessoa tão original e capaz de trazer o inesperado à minha vida e àquilo em que penso, que me fez convidá-lo de imediato. Pessoalmente, gosto de ser desassossegada, e o André traz a qualquer vida e a qualquer projeto esse desassossego.
Que desassossego trouxeste tu, André?
AT: Acho que desassosseguei no sentido em que este projeto é absolutamente inédito na minha vida. Digo-o porque uma coisa é trabalhar com o Teatro Praga (com quem estou há 20 anos) e outra é trabalhar com a Anabela, alguém que conheço e por quem nutro uma enorme admiração, mas com quem não tinha uma relação de tanta proximidade. Porém, este trabalho reflete uma enorme cumplicidade, uma afetividade profunda, embora tenhamos estratégias e modos diferentes de fazer as coisas. Digamos que, sou visivelmente louco, mas a Anabela, que parece muito organizada, é ainda mais louca do que eu [risos].
Estar em Casa reúne música, dança, teatro, pensamento, conversas, performances… enfim, praticamente tudo aquilo que possamos imaginar. Como é que entre os dois geriram um projeto como este, nomeadamente, quanto às escolhas da programação?
AT: É, de facto, um evento muito complexo e que só a capacidade da Anabela em montar as peças do puzzle tornou possível conceber. Como artista, tenho um lado crítico assente na distância que cultivo sobre projetos que percebo serem uma ameaça àquilo que é o meu projeto artístico; enquanto a Anabela, como jornalista, como teórica, consegue formar critérios supercomplexos e muito bem definidos, superando aquilo que possa ser entendido como um ataque à sua própria identidade e labor. Para mim, esse equilíbrio foi muito positivo e permitiu que o programa tenha toda esta diversidade.
AMR: Foi muito fácil escolher os nomes que vão participar. Digamos que nesta panóplia infindável, estão, para usar um título de Goethe, as nossas Afinidades Eletivas. Para fazer esta Casa, foi preciso desarrumar e voltar a arrumar, deixar entrar o ar, permitir até algumas correntes de ar… O resultado está nas pessoas em quem pensámos, pessoas que vão sair de suas casas para vir a esta Casa, que vão vir para desassossegar e, espero, para serem também elas desassossegadas.
A Casa instala-se, portanto, em todos, ou quase todos os espaços do Teatro…
AT: Porque a ideia do que é uma casa torna-se transversal a toda a programação. Não é só o seio familiar que está em destaque, é toda uma diversidade de universos capazes de caber no espaço doméstico. Para isso, e mediante o orçamento e algumas limitações logísticas, todos os espaços do Teatro São Luiz estão abertos. Vejo a programação como uma refeição etíope, com as várias porções e tipos de comida, em que se vai experimentando aqui e ali. Nós fornecemos os ingredientes e as pessoas são livres de provar aquilo que mais lhes apetece.
De entre os “ingredientes”, temos alguns nunca provados, como as performances, o concerto de Sérgio Godinho com Filipe Raposo…
AT: Isso é uma experiência com comida molecular [risos]…
E outros que estão devidamente experimentados, como os espetáculos de Mónica Calle, do Teatro Praga ou do Cão Solteiro…
AT: Quisemos trazer alguns espetáculos que foram falados, mas não muito vistos. No fundo, é como se estivéssemos a sublinhar a necessidade de repor e não estar constantemente a apresentar o novo. Dentro da poética de ‘casa’ que norteia o projeto, escolhemos alguns espetáculos já experimentados, porém, cerca de 80% da programação são coisas novas.
AMR: Usando a metáfora da casa, o reencontro com esses espetáculos é como olhar repetidamente pela janela e um dia, porque a luz incide de uma outra maneira, descobrimos coisas que ainda não tínhamos visto. Confesso que a apetência voraz pelo novo irrita-me, e talvez por isso defendo um teatro de reposições em Lisboa.
Para além de comissários, vão ser também espetadores? Já fizeram as vossas escolhas?
AT: Confesso que gostaria de ver tudo, até porque não sabemos de nada, demos carta branca a todos os convidados… Mas, o mais certo, é não conseguir ver nada. O que quero mesmo é ver as pessoas aqui, e ir percebendo aquilo que os espetáculos, as conversas, as aulas ou os debates vão desencadeando em quem assiste e no ambiente desta Casa…
AMR: O verdadeiro espetáculo vão ser, precisamente, as pessoas.
Em entrevista à edição em papel da Agenda Cultural de Lisboa, Faustin Lineykula falou de um “feliz encontro” com Miguel Ramalho, que conduziu a “uma cumplicidade, algo de íntimo e de pessoal”. Este solo é um retrato de ti mesmo, e simultaneamente a tradução desse encontro?
O Faustin defende que todo o seu trabalho é um encontro, uma “conversa” baseada naquilo que cada um dos interlocutores tem para dizer um ao outro. O solo chama-se I Miguel porque ele acredita ser o resultado dessa nossa “conversa”, logo mais ninguém o pode dançar senão eu. Daí ser tão privada, tão pessoal… este solo é uma viagem. É o meu encontro com o Faustin em África, num território muito agressivo e violento para a minha realidade.
De que modo é que sentiste essa violência?
Essa violência não se traduz fisicamente. Refiro-me ao barulho, ao cheiro, às pessoas… tudo muito movimentado e ruidoso, entendes? Quando voltei a Portugal, depois de três semanas no Congo, senti que, aqui, tudo é mesmo muito sossegado.
Falas de um solo que é “uma viagem”. A tua viagem a África…
Uma viagem que é traduzida no meu movimento, que conta a história dessa jornada.
E o que conta o teu corpo?
Conta a “conversa” entre ambos: eu danço e o Faustin sussurra ao meu ouvido, lembrando-me que os pés suportam os nossos joelhos, que os joelhos suportam as nossas ancas, que as ancas suportam o nosso peito, que o peito suporta a nossa cabeça, que a cabeça suporta as nossas ideias. Logo, o princípio ideal de cada movimento é que é da terra que vêm as nossas ideias.
A terra africana neste caso…
O solo é sobre donde vim e de como fui viver África com toda a intensidade e violência de um dia-a-dia em que falta água potável, onde há pessoas que passam fome… A sensação que tinha é que nós aqui temos tanto e tanto nos queixamos. Lá, há tão pouco e quase não há queixume.
Apesar desse cenário que encontraste, experienciaste também a alegria?
A vida no Congo baseia-se sobretudo na sobrevivência. Mas há uma riqueza cultural imensa, transmitida numa felicidade de viver que, para nós, até pode parecer estranha.
Fala-me um pouco dessa visão de viver a África profunda do ponto de vista de um europeu.
Há um choque brutal quando percebes que aquilo que sabes por ouvir dizer pode, de facto, ser vivido. Nunca esquecemos as nossas raízes, aquilo que somos, mas ali, para que o trabalho resultasse, despojei-me, como se guardasse a minha realidade numa caixinha. Ao longo dessas semanas, tentei viver como eles vivem, tentei comer como eles comem, tentei caminhar descalço na rua como eles caminham…
E como é que as pessoas de Kinsangani te olhavam?
Eu era praticamente o único branco na cidade, e se eu acredito que não há diferenças entre seres humanos, para eles percebe-se que essa diferença da cor da pele tem um peso histórico. Quando me olhavam, percebia que viam também o passado, tudo aquilo que a raça branca fez à raça negra. Claro que fiz muitos amigos, e sei que, como eu guardo saudades de tanta dessa gente que conheci, também eles sentem a minha falta. Aquelas três semanas pareceram três meses, cada dia parecia uma semana porque tudo era intenso, se bem que cada segundo é também calma e paz, mesmo sabendo que há guerra a uns meros 200 quilómetros.
Apesar das amizades que fizeste, pensas que o facto de seres branco, e europeu, continha ainda assim um olhar de desconfiança?
Esse peso histórico era ultrapassado, apesar de pairar nos primeiros olhares. A dada altura, tornei-me popular, sentia-me o Cristiano Ronaldo lá do sítio [risos]. As pessoas vinham mesmo tirar fotografias comigo para publicar no facebook – porque tirar uma foto com um branco é algo mesmo muito raro naquelas paragens.
Qual foi o grande ensinamento desta experiência?
Aprendi muito sobre aquilo que o mundo tem para me dar e, ao mesmo tempo, entendi que ser cidadão significa perceber aquilo que cada um de nós pode dar ao mundo para que ele seja melhor. E nós só o conseguimos se aceitarmos o que o mundo tem para nos dar. África é, precisamente, isso.
O TRABALHO NOS STUDIOS KABAKO
Sobre o ambiente de trabalho de Faustin Lineykula, os Studios Kabako, diz o coreógrafo assemelhar-se a “um abrigo sem teto”. Como era o teu dia-a-dia?
Trabalhar neste Teatro [Camões], com esta Companhia [Nacional de Bailado], é fantástico mas, permite-me que o confesse, trabalhar ao ar livre é absolutamente maravilhoso. Nos Studios Kabako fazia-o com os pés na terra, improvisei com cães e ratos que passavam… Houve um dia em que, quando dei conta, tinha um crocodilo ao meu lado – ao que os meus companheiros no Studio responderam: “não há problema Miguel, é apenas um pequeno crocodilo!” Por sinal, o animal era bem maior do que eu [risos].
Isso passava-se nos Studios Kabako?
Sim. Os Studios são compostos por um espaço interior, onde há computadores e meios próximos aos que temos cá, e um espaço ao ar livre, selvagem, onde temos de assentar os pés na terra. É preciso não esquecer que foi na zona de Kinsangani que, consta, se avistou o primeiro humano nosso antepassado. E isso marca indelevelmente a nossa presença naquele sítio.
Esse trabalho no exterior era visível à comunidade local?
Bastante. As pessoas passavam, viam um branco a dançar e entravam. O trabalho que desenvolvíamos no exterior era público, como se fosse um espetáculo. As pessoas atravessavam um grande portão, sentavam-se e ali ficavam, a ver-nos…
E o trabalho com o Faustin. Como era?
Esta é a primeira vez que o Faustin coreografa especificamente para um branco europeu e é também a primeira vez que eu estive em África. Isso marca muito a nossa “conversa”. Todo o movimento que construímos passa pelas experiências que vivi. Por isso, este espetáculo, este solo, é o resultado dessa viagem, das pegadas deixadas em território africano.
Mas, aqui, vais pisar o palco de um teatro a milhares de quilómetros de distância…
Um palco forrado a serradura, onde cada movimento deixa uma marca, como se fosse em África. Porque, fazer este solo aqui é como voltar a Kinsangani. Sinto que não fui só lá para trabalhar, para visitar… sinto ter feito parte de tudo aquilo, e trago comigo isso mesmo.
A CUMPLICIDADE COM FAUSTIN
Como é que o bailarino da Companhia Nacional de Bailado foi descoberto por Faustin Linyekula?
Toda a experiência por mim vivida e o solo que vamos apresentar tem contornos bastante místicos pela intensidade como tudo se passou. Porém, tudo o resto é muito objetivo. O Faustin foi escolhido para ser o Artista na Cidade em 2016 e a Luísa Taveira [diretora da Companhia Nacional de Bailado] sentiu ser muito positivo pertencer à Companhia o primeiro momento criativo desta edição da bienal. Assim, foi proposto um bailarino para ir e trabalhar no Congo com o coreógrafo…
E foste tu o escolhido.
Exato. Conhecemo-nos aqui em Lisboa. Conversando, fomos descobrindo alguns paralelismos nas nossas vidas: ele cresceu em Lubunga e tinha de atravessar o rio para ir estudar; eu cresci no Barreiro e atravessava o Tejo para estudar e trabalhar. O Faustin quis saber mais sobre mim, atravessou comigo o rio e foi conhecer o Vale da Amoreira, bairro social onde nasci. Quando fui ao Congo, ele atravessou comigo o rio e deu-me a conhecer o bairro em Lubunga onde cresceu…
Apesar das geografias, as similitudes…
Muitas coisas em comum, de facto. E as nossas vivências contaminaram-nos reciprocamente, criando uma cumplicidade não só artística, mas também pessoal.
Apesar das vossas escolas serem diferentes, consegues entender essa cumplicidade artística com um coreógrafo que tem uma dimensão universal precisamente porque é eminentemente local?
A história dele, a história da sua casa, contaminou o europeu que sou. Esse foi o grande desafio desta experiência. Eu sou um bailarino feito, tal como ele, e foi preciso encontrarmo-nos no momento certo para descobrir a cumplicidade e aquilo que somos enquanto artistas.
Este é o momento alto da tua carreira?
É o culminar de um ano de 2015 absolutamente especial para mim. Enquanto artista tenho sempre dúvidas, e a minha dúvida mais premente é se vou ter um ano como o último. Profissionalmente, senti evoluir, afirmei-me, fui reconhecido e, no final, vivo esta experiência única de vida. 2016 começa, precisamente, a coroar esse ano magnífico com este I Miguel que, acima de tudo, é um trabalho que me honra enquanto homem e bailarino.
Montanha é a sua primeira longa-metragem, os prémios obtidos com as curtas Arena e Rafa e o reconhecimento da crítica foram decisivos para a realização deste filme e concretização do projeto?
O Manoel de Oliveira disse, sobre esta questão do reconhecimento e dos prémios, algo que subscrevo: a única coisa para a qual os prémios servem, para além do seu efeito simbólico, é dar ao realizador condições para poder continuar a filmar em liberdade. Há um sistema relativamente perverso de legitimação de um determinado realizador em detrimento de outro, que é bastante injusto a maior parte das vezes. Para fazer esta longa-metragem os meus produtores serviram-se destes prémios para conseguir financiamento e isso permite-me acima de tudo, tempo e meios, mas sobretudo tempo para filmar da maneira em que acredito.
A adolescência é normalmente uma etapa de socialização, onde as amizades têm muita importância. No entanto, neste filme e nos anteriores os personagens principais são jovens, mas a solidão é uma das suas principais características. Porquê?
Montanha é um filme sobre um rapaz, de 14 anos, David Mourato, não é um filme sobre a adolescência. A mim interessou-me muito filmar este lado angustiante e muito violento que é a passagem da infância à idade adulta. O momento em que os últimos vestígios da infância chocam com a chegada dura de uma maturidade precoce. O filme nasce de dois desejos, por um lado tentar materializar algumas memórias da minha infância, que não são necessariamente factos que eu reproduzo no filme, mas sim a memória de uma experiência sensorial da adolescência, de um tempo meio flutuante de deambulações e errâncias pela cidade. Desta sensação de não saber onde se pertence e para onde se quer ir. Por outro lado, um segundo desejo que eu cruzo com este, é o de filmar o David e perceber até que ponto é possível fazer um filme em que um corpo em transformação conta a sua própria história. Queria muito que o filme permitisse a relação intensa da câmara com uma personagem. Nesse sentido é um filme muito clássico, quase como o Rebel Without a Cause com o James Dean, que é uma referência para mim, e onde a câmara não consegue largar a sua personagem do princípio ao fim.
Este é um filme que fala da transição da adolescência para a idade adulta, mas também reflete a crise que se vive no país (a mãe que foi trabalhar para o estrangeiro e que deixou para trás o filho, a escola que não consegue dar resposta, o hospital velho e obsoleto…). Há um paralelismo entre estes dois tipos de crise?
Eu não queria que o contexto social se impusesse sobre uma angústia que é muito mais espiritual e que é universal a todos os adolescentes, num determinado momento. Mas, ao mesmo tempo, há imensos vestígios de um país que desaba e que estão presentes, não de uma forma evidente, mas que são exatamente esses que identificaste. O que me interessava é perceber como é que uma coisa tão violenta como esta crise se pode manifestar nas coisas mais simples. Como é que uma situação tão doméstica, tão ínfima, tão particular da vida de duas pessoas, pode refletir quase um país inteiro. Achei isso mais interessante do que filmar Portugal a partir de um helicóptero, ou refletir o país através das notícias no telejornal.
Porquê a escolha de atores não profissionais? O objetivo é criar um maior realismo?
Para mim um filme só nasce verdadeiramente no momento em que sei quem quero filmar, e quando de alguma forma me apaixono pelas pessoas com quem vou trabalhar. Não faço de todo uma separação entre trabalhar com atores ou com não atores, porque o meu trabalho enquanto realizador é transformar em matéria de cinema a natureza das pessoas que quero filmar. Mesmo quando filmo atores, como a Maria João Pinho ou Carloto Cotta, faço-o porque me interessam enquanto pessoas. Acho que os grandes atores da história do cinema, que são poucos, são aqueles que conseguiram incorporar a sua presença de vida em todas as personagens que fizeram, fossem personagens históricas ou contemporâneas. Marlon Brando é sempre arrogante, seja no Apocalypse Now, no Último Tango em Paris ou no Há Lodo no Cais. Há qualquer coisa que se manifesta na sua vida e que ele põe nas personagens.
Qual a expectativa que tem com este filme, uma vez que é o primeiro a estrear em sala sem estar associado a outros trabalhos?
Um filme visto numa sala de cinema continua a ser luz projetada numa parede, é um princípio simples. Em sala há uma componente energética, espiritual e, ao mesmo, há um reflexo. Um filme só existe verdadeiramente quando é visto. Tenho a maior felicidade de saber que o filme vai ser visto em algumas salas de Portugal, mas também tenho plena consciência, se calhar um pouco pessimista, que há um certo tipo de cinema que continua a ser uma atividade minoritária. Mas a literatura no tempo do Fernando Pessoa também era uma atividade absolutamente minoritária, até porque grande parte da população era analfabeta.
Já há sucessor para Montanha?
Sim. O próximo filme que vou fazer, em co-realização com Renée Nader, será com os Krahô, um povo indigena que habita o cerrado brasileiro no estado de Tocantins.
Para trás ficaram duas representações da peça e, agora, é tempo de voltar ao trabalho. A prioridade máxima, sublinha o ator, é adquirir a melhor forma física. Desde que voltou de férias em Viseu, sua cidade natal, corre diariamente no Estádio Universitário. “O corpo tem de estar preparado para o nível de exigência deste espetáculo”, acrescenta, lembrando que se avizinha um ciclo longo de representações que começa em Lisboa e se conclui em novembro, uma vez mais, em Almada.
Sentamo-nos à conversa, e o Hamlet mais jovem do teatro português parece esquecer o formigueiro que o assaltou há minutos. Apesar de se considerar tímido é um conversador nato, e ao longo de quase uma hora, falou de um papel que qualquer ator sonha fazer, das ligações afetivas e profissionais com Luís Miguel Cintra e os “colegas” da Cornucópia, de Viseu, de um concurso de televisão que o retirou do anonimato por via da poesia e da particular influência que trabalhar com Luísa Cruz, em Íon, teve em tudo o que se seguiu na sua vida de ator.
Por quantas noites de insónia passaste quando o Luís Miguel Cintra te desafiou a interpretar o papel de Hamlet?
Na altura, fiquei particularmente contente. O desafio foi feito de um modo algo peculiar: o Luís Miguel trouxe-me um saco com uma série de livros na sequência de algumas conversas que mantivemos e, por entre peças de teatro e antologias de poemas que ele me foi apresentando, anunciou que, no fundo do saco, havia um segredo. Esse segredo era o Hamlet traduzido pela Sophia de Mello Breyner.
Mas, no momento, pensaste que isso iria querer dizer seres tu o protagonista?
De modo algum. Sabia-se que a companhia queria fazer o Hamlet, mas só depois é que ele me anunciou que o queria fazer comigo. Recordo que, talvez a seguir ao Pílades, o Luís Miguel enviou-me uma mensagem de email anunciando que tudo se compunha para que o Hamlet avançasse. No final, dizia qualquer coisa como “o mundo te saúda, ó Príncipe da Dinamarca”. Foi ai que começou a surgir uma espécie de peso sobre mim…
E chegaram as insónias…
Essas vieram mais tarde, mais próximo da noite de estreia em Almada [risos]. Sempre tentei que a responsabilidade e importância do papel não me prendessem de alguma maneira. Pensei sempre que, independentemente de ser o Hamlet, haveria de dar muito prazer fazer o papel. E assim foi. Cheguei a ir para os ensaios com a sensação de que até não seria assim tão difícil – estava enganado…
Porquê? Sentiste alguma insegurança?
Insegurança não, mas só com os ensaios é que percebi o quão complexo é o personagem. Porém, toda a equipa da Cornucópia dá-nos a segurança da inteligência e do pensamento, e isso foi fundamental para me tranquilizar e seguir em frente.
Chegaste a pensar ser novo demais para fazer um papel que é tão ambicionado por todos os atores?
Penso que as pessoas sentem isso mais do que eu. Desde que conheço o Luís Miguel percebo que a escolha dos atores depende do caminho por onde ele quer levar o espetáculo. Neste Hamlet, o intérprete teria de ser necessariamente jovem, fosse eu ou outro colega. Isto porque, aqui o Hamlet tem 22 anos. A partir do momento em que percebi esta, digamos, consciência do espetáculo, a minha juventude deixou de ser, se é que alguma vez foi, um entrave ao desempenho do papel. Isto não quer dizer, é claro, que o trabalho não é de uma brutal exigência e requer muito sacrifício e sofrimento.
Fala-nos um pouco da estreia em Almada, naquele que foi o primeiro momento de te mostrares ao público enquanto Hamlet…
Nesta casa – o Teatro da Cornucópia – aprendi sempre que se algo não corre bem sobre o palco, se há um momento em que nos perdemos ou algo toma indevidamente a nossa atenção, agarramo-nos ao colega, e ele está lá para nos amparar. Isso faz com que nos consigamos abstrair de ser o foco do público e enfrentar o habitual nervosismo no momento de subir ao palco. Naquela noite, quando terminámos e fomos agradecer os aplausos, senti toda uma comunhão muito singular entre os atores que, de algum modo, me retiraram o peso de ter interpretado o protagonista.
Houve algum momento, nessa noite, em que te sentiste vacilar?
Houve uma situação curiosa: durante os ensaios, eu ia comendo cada vez que saía de cena. Naquela noite, devido ao nervosismo, custava-me bastante comer e, praticamente, nem bebi água. No final, senti-me extremamente enfraquecido e pensei que ia desmaiar. Outra curiosidade teve a ver com o público: em determinadas cenas, as pessoas riam, e a dada altura só me questionava sobre o que se estava a passar. Lembro-me de, no final, termos concluído que o Hamlet é, afinal, um personagem cómico [risos].
No âmbito da preparação para o papel, fizeste muito trabalho de casa por tua autorrecriação?
O Luís Miguel forneceu-nos imenso material e recordo particularmente um dvd chamado Acting Shakespeare, produzido pela Royal Shakespeare Company, que me ajudou muito na composição do papel. Por acaso, descobri aqui no teatro um livrinho sobre A Sonata dos Espectros, de August Strindberg, espetáculo que a Cornucópia fez há quase trinta anos. No final, havia uma referência ao quadro de [Arnold] Böcklin A Ilha dos Mortos. Aquela pintura inquietou-me, e confesso ter-me transportado para o universo preciso deste trabalho. Tem graça que, desde os meus tempos de escola, sempre tive uma certa tendência para estudar um pouco ao lado dos manuais e estabelecer paralelismos com outros materiais. Aqui aconteceu isso.
Os teus primeiros minutos de fama deveram-se à televisão, quando tinhas apenas 17 anos e surgiste a recitar poesia num concurso de talentos. Naquele tempo, já tinhas decidido que irias ser ator?
Na altura estudava Ciências, e até conclui o meu 12.º ano na disciplina de Física. Esse concurso de talentos foi uma espécie de rebeldia da adolescência [risos]. Quando apareci no programa queria promover a ideia de dizer poesia e, confesso, nunca esperei ter grandes resultados. O certo é que cheguei mesmo à final do concurso…
Mas nesse concurso revelaste uma capacidade enorme de seres mais do que um declamador. Um dos membros do júri, o encenador Ricardo Pais, frisou bem isso…
Para se perceber melhor, vou começar pelo princípio. Os meus pais não veem do meio artístico, mas são espetadores regulares de teatro. Desde muito jovem fui participando em workshops das mais diversas áreas artísticas promovidos pelo Teatro Viriato [em Viseu]. Sem me aperceber, passava a vida no Teatro, como se fosse absolutamente normal passar quase todos os meus tempos livres naquele espaço. Um dia, inscrevi-me no projeto PANOS [iniciativa da Culturgest para teatro juvenil] e aquilo foi uma experiência reveladora…
E decisiva para seres ator?
Quase… Andava no 9.º ano, penso eu, e um professor de português escreveu no quadro a frase “põe quem tu és no mínimo que fazes”. Achei-a grandiosa e pus-me a pesquisar, acabando por descobrir que aquela frase era um verso de um poema de Fernando Pessoa/Ricardo Reis. Foi o início da minha paixão pela poesia. Assim, comecei a gravar em vídeo poemas de que gostava e a partilhá-los no You Tube. Aquele meio era uma espécie de refúgio para o miúdo que queria fazer teatro e continuar a experiência do PANOS, mas vivia em Viseu, uma cidade que não tinha ensino artístico.
Por isso concluíste a tua escolaridade em Ciências…
Exato. Quando fui ao concurso já estava decidido, após concluir o 12.º ano, ir estudar Teatro para Lisboa. Aos 18 anos, deixei Viseu, cidade em que, graças à televisão, toda a gente me conhecia e acarinhava, e vim para cá, onde estava completamente anónimo.
Fizeste o Conservatório, um estágio aqui na Cornucópia e, de repente, estavas a interpretar o Íon no palco do Teatro São Luiz…
O meu ano de Conservatório teve a grande sorte de ter vindo para a Cornucópia, a meio do curso, fazer um estágio no âmbito de um espetáculo baseado em teatro de cordel. Foi apenas uma semana, mas o suficiente para estabelecermos uma relação próxima com a companhia. Um dia, o Luís Miguel contacta-me, na sequência de também ter descoberto na internet as minhas prestações no concurso de talentos, e convida-me para fazer o Íon. Ali tive o privilégio de trabalhar com grande atores, e uma menção muito especial vai para a Luísa Cruz que, durante um ensaio que correra bastante mal, disse-me: “errar é normal, o truque está na maneira como lidamos com o erro”. Foram palavras determinantes para lidar com os meus receios e que jamais esqueci.
Tem sido tudo muito rápido no teu percurso de ator. Para usar um lugar-comum, já sentes o palco como a tua casa?
Sinto-me muito bem em palco, mas faço por olhar para o teatro como a concretização da vontade de fazer coisas legíveis que convoquem as pessoas. Houve uma altura em que via o palco como um lugar sagrado, sobretudo porque ainda não sabia se o meu futuro havia de passar por ele. Noutras fases, e porque sou muito tímido, o palco era como que uma espécie de terapia. Hoje, é um sítio que respeito, que vejo como um veículo para chegar às pessoas. Daqui para a frente, e tenho até um projeto com colegas de Conservatório, interessa-me derrubar a barreira do palco e fazer do teatro um sítio pleno de partilha, um catalisador de pensamento. Para mim, um bom espetáculo de teatro deve ser comouma boa conversa, onde partilhamos, onde pensamos e onde refletimos em conjunto.
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