Com 21 anos de carreira, João Tordo é um dos mais profícuos escritores da atualidade. Em novembro, lançou o seu 21.º livro, Dias Contados, que volta a centrar-se na subcomissária Pilar Benamor. Uma excelente notícia para os seus leitores mais fiéis, já que este novo policial (o terceiro da série) explica a origem dos fantasmas de uma das suas personagens mais marcantes. Vencedor do Prémio José Saramago 2009 com o romance As Três Vidas, e do Prémio Literário Fernando Namora em 2021, com Felicidade, o autor também conta no currículo com a participação, enquanto guionista, em diversas séries de televisão, como o sucesso da Netflix Rabo de Peixe. Este ano, a sua ficção saltou do papel para os ecrãs com o filme Dulcineia, estreado em setembro, adaptado do romance O Ano Sabático. No próximo ano, está previsto o início das filmagens de uma série baseada num dos seus bestsellers, Águas Passadas (o primeiro sobre o universo Pilar Benamor).

Oratória de Natal
19 de dezembro, às 20h
20 e 21 de dezembro, às 19h
Fundação Calouste Gulbenkian
Obrigatória nesta quadra festiva, a Oratória de Natal é um dos momentos altos da temporada da Gulbenkian. Escrita entre 1734 e 1735 por Johann Sebastian Bach, é uma das grandes obras-primas corais do período Barroco. O escritor já assistiu a duas oratórias, que considera serem “sempre momentos muito bonitos de celebração nesta época festiva”. A Oratória de Natal será interpretada no palco do Grande Auditório, de 19 a 21 deste mês, sob direção da nova maestrina titular do Coro Gulbenkian, Martina Batič. Para João Tordo, é “uma ocasião para ver a Orquestra Gulbenkian e o Coro Gulbenkian em palco com solistas convidados”. As sessões deste ano já estão esgotadas, mas fica a dica para comprar com muita antecedência no ano que vem.
A Origem dos Dias
romance de Miguel d’Alte
Editora: Suma de Letras (setembro, 2024)
Um livro é sempre uma excelente opção para companhia nos dias outonais, e não podia faltar nas escolhas de João Tordo. O escritor sugere a mais recente obra de Miguel d’Alte, A Origem dos Dias. “Já tinha lido o primeiro livro dele, Os Crimes do Verão de 1985, e identifiquei-me. Acho que o Miguel tem coisas muito parecidas comigo e com os meus livros, por isso gostei bastante”, confidencia. Este é o terceiro romance de Miguel d’Alte, e segue a vida de Tomás Franco, um escritor falhado que se muda para o Porto em busca do significado do passado e da literatura. “Um nome a registar para o futuro” e que o autor de Dias Contados não quis deixar de partilhar com os leitores da Agenda Cultural.

Fora de portas…
Trilho da Peninha, Sintra
Às portas de Lisboa há um sítio mágico para descobrir. Trata-se do trilho da Peninha, que tem início junto do Santuário da Peninha, em Sintra, “um sítio muito bom para se caminhar, com dezenas de rotas individuais”. Esta sugestão do escritor é um apelo ao usufruto da natureza e ao exercício físico. Há passeios para vários tipos de ‘atletas’, mas as caminhadas “são longas, com uma duração mínima de uma hora”, explica. A paisagem, diz o autor, “é muito bonita, especialmente durante o inverno porque a floresta tem um ar meio transcendente, parece um cenário do Senhor dos Anéis”. Se quiser ir passear por lá ao fim-de-semana, não se admire se der de caras com João Tordo, já que este é um dos seus locais de eleição (e quem sabe se fonte de inspiração para algum dos seus livros).
Em cena, rodeados daquilo que o encenador Bruno Bravo define como uma “orquestra do lixo” (e não é que é mesmo, como explicaremos adiante), temos Guilherme e Guilhermina, um casal praticamente imóvel, ele numa cadeira de rodas, ela numa de braços. Tal como aparentam, no início são “jovens namorados, velozes, sexuais e impetuosos”. Atrás deles, uma sucata de carro ganha vida e empurra-os para a vertigem do sexo e do risco. Há um acidente, mas também há um casamento e há um filho que nasce e que morre.
O tempo parece saltar dos eixos, no entanto, o local permanece o mesmo, “tão concreto como distópico”, considera Bruno Bravo. O lixo que os rodeia continua ganhando vida – é toda a “orquestra do lixo” na qual explodem lâmpadas, onde um cavalo de madeira galopa sem criança, em que música antiga se escuta através de um vetusto rádio de sala –, mas estamos já noutro ponto das suas vidas, numa espécie de velhice interminável onde ambos interpretam “um jogo de linguagem que os desloca do drama para um território mais surrealista e irónico”.
Não Vos Arrancarei A Língua/ Momentos Há Em Que As Palavras Nos Abandonam recupera o “absurdo existencialista” de Beckett, citando mais concretamente Dias Felizes (“Até nos nomes das personagens, Guilherme e Guilhermina e Willie e Winnie…”, lembra o encenador), conjugando “o trágico e o cómico, como se fossem um só verbo”. Este casal parece estar condenado à circularidade da existência, num “tempo suspenso, que não avança, preenchendo o espaço entre a juventude e a velhice em que se encontram com emoções e memórias que nunca saberemos se efetivamente viveram”.
Ao mesmo tempo, talvez a circularidade se quebre um dia e se consiga vislumbrar o futuro. Como se pode escutar na locução de um programa televisivo que, a dado momento, fixa o olhar de Guilhermina no ecrã de um velho aparelho de televisão, “belos dias são os dias de amanhã”.
Talvez, “um estranho musical”
É a primeira vez que o encenador Bruno Bravo, diretor da companhia Primeiros Sintomas, trabalha no Teatro Aberto. “Tratou-se de um convite do João Lourenço e da Vera San Payo de Lemos para encenar um texto novo, vencedor do Grande Prémio de Teatro Português, que achei, assim que o li, muito estimulante.”
Explica o encenador que, a par da “musicalidade aliciante dos diálogos”, o texto de Patrício Torres começou por conquistá-lo com as “didascálias impossíveis de materializar em palco, que incluem carros desportivos que caem do céu, incêndios descontrolados ou pernas que andam desatarraxadas do corpo, tão desafiantes para a imaginação e estimulantes para interpretações metafóricas capazes de serem exploradas dramaturgicamente”. Em parceria com Nídia Roque, Bruno Bravo iniciou esse trabalho tendo como foco “aquilo que o texto poderia sugerir”, daí afirmar que “não será a peça do autor que levamos a cena, mas a peça que o autor escreveu”, sendo isso “diferença fundamental no exercício de encenação”.
Com o cenário de Stéphane Alberto, a sonoplastia de Sérgio Delgado, o desenho de luz de Diana dos Santos e, claro, a vivacidade dos atores André Pardal e Rita Correia, esta aventura cénica vai para além das verosimilhanças da vida quotidiana, parecendo cumprir-se num sonho onde tudo parece estar imbuído de música. Ou, como escreve Bruno Bravo a concluir o texto da folha de sala, “às vezes, durante os ensaios, cheguei a pensar, é um musical. Estranho musical”.
Em 1912, Arthur Schnitzler escreveu Professor Bernhardi, um retrato impressionante e devastador do antissemitismo vigente na sociedade austríaca da época. A peça narra a história de um destacado médico judeu que nega a extrema-unção prestada por um padre católico a uma jovem paciente moribunda, após um aborto malsucedido. Professor Bernhardi acabou impedida de estrear em Viena (por isso, a estreia aconteceu em Berlim nesse mesmo ano), sendo que nenhuma explicação plausível foi dada pelos censores, embora a proibição se tenha mantido até à queda dos Habsburgos, em 1918. Pelas temáticas abordadas, é suscetível presumir o que não agradou à censura, e o certo é que a peça de Schnitzler acabou, muito pelas vicissitudes do curso da História, por se tornar um clássico da literatura dramática europeia do século XX.
Embora frequentemente representado, um interesse renovado pelo texto surgiu em 2019, quando o dramaturgo e encenador britânico Robert Icke, especialista em novas abordagens de grandes textos da literatura (os Artistas Unidos têm, atualmente em digressão pelo país, a sua visão, a meias com Duncan Macmillan, de 1984, de George Orwell), estreou em Londres, com enorme sucesso de público e de crítica, A Médica, um reboot da peça de Schnitzler. Com originalidade e agudeza, Icke impregnou o drama de alguns dos temas mais suscetíveis de gerar debate na atualidade, nomeadamente os conflitos raciais e as questões de género e de classe, e ainda apostou em introduzir um jogo dissonante entre o género e a etnia de alguns dos atores e das personagens que representam. Um exemplo dessa dissonância: o padre católico impedido pela médica de origem judaica (papel aqui interpretado por Custódia Gallego) de prestar a extrema-unção à jovem de 14 anos é negro. Ora, na versão portuguesa, respeitando as indicações de Icke, esse personagem é encarnado pelo ator Pedro Laginha.
O encenador Ricardo Neves-Neves vê o “desencontro” como um desafio do próprio teatro enquanto arte. Afinal, “quando o ator ou a atriz está em placo é aquilo que diz ser, não aquilo que efetivamente é”. Aqui, Icke usa a dissonância do género ou da raça como “uma espécie de laboratório para perceber o que é que o público realmente vê. Enquanto vemos um ator a representar uma personagem, será que estamos a ver o ator ou a ver a personagem”, questiona.
De certo modo, neste jogo teatral, parece estabelecer-se entre A Médica e o anterior espetáculo que Neves-Neves e o seu Teatro do Eléctrico apresentaram no Teatro da Trindade, uma relação não discernível à partida. “Em Noite de Reis recorria à regra do teatro isabelino e todas as personagens, femininas ou masculinas, eram representadas por homens. Aqui, tenho um elenco definido na sua diversidade, contudo a distribuição dos papéis não obedece à regra lógica” do género ou da raça, explicita o encenador.
Vale a pena, assim, recuperar a ideia de que “a representação tem como ponto de partida a ilusão, palavra essa muito ligada ao teatro”. Isso já acontecia em Noite de Reis, com o género, mas A Médica (e esse jogo da dissonância começa, desde logo, ao colocar o protagonista no feminino quando, na peça original, o Professor Bernhardi era um homem) leva o desafio para outro nível. Este texto não se resume a mexer com o espectador pelos temas que aborda, mas também por lhe puxar o tapete ao desafiá-lo a pensar de que modo é que se deixa “iludir” quando, por exemplo, uma atriz negra como Vera Cruz interpreta uma personagem “que diz ser negra porque teve uma avó negra, mas aparenta, segundo nos dizem as outras personagens, ser uma pessoa totalmente branca.”
Doenças modernas
O incidente inicial em A Médica, aquele em que a doutora Piedade Lobbo impede o padre de entrar no quarto da jovem adolescente moribunda, acaba por despoletar uma reação que ultrapassa os corredores do hospital quando a discussão entre os protagonistas surge difundida na internet, tornando-se viral. Inúmeras questões começam por ser levantadas, como o facto de Piedade Lobbo ter negado a visita do padre devido à sua origem judaica, ato agravado não só pelo conflito entre fés professadas como por racismo.
Acossada, primeiro, pelos seus pares que duvidam das suas explicações clínicas, segundo, pelas redes sociais que aclamam por uma condenação sumária pelas mais diversas (e simplistas) razões, Piedade acaba por se ver no epicentro de um furacão mediático que alimenta petições online, debates televisivos e até decisões políticas. Com a carreira profissional ferida de morte, a abordagem tóxica em torno do incidente resvala para a dimensão identitária e pessoal da vida de uma mulher branca, judia, privilegiada e profissionalmente bem-sucedida.
À visão crítica do antissemitismo da peça de Schnitzler, Icke prolonga o olhar na direção das nefastas doenças modernas que, na sua essência, as redes sociais, “em que se fala muito de coisas que se desconhecem”, propagam. Observa Neves-Neves que, a dado momento da peça, assistimos a um programa de televisão onde Piedade decide falar, pela primeira vez publicamente, do caso. Nele, antes de passar a palavra à médica, o apresentador resume o contexto ao dizer “vocês já terão de certeza a vossa opinião formada”. Portanto, após tanta “gente a gritar na internet, diga o que disser, aquela mulher já está julgada, condenada a ser trucidada pela opinião pública. E mesmo que, daí a uns dias, já o caso esteja esquecido, tudo aquilo fica como uma constante na vida de quem o sofreu”.
Para além de Custódia Gallego, Vera Cruz e Pedro Laginha, A Médica conta com um elenco de luxo constituído por Adriano Luz, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Rita Cabaço e Sandra Faleiro. A cenografia é de Fernando Ribeiro, o desenho de luz de Cristina Piedade e os figurinos de Rafaela Mapril. O espetáculo está em cena até 16 de fevereiro, com récitas de quarta a sábado às 21 horas, e aos domingos às 16h30.
Margarida Campelo é uma das mais interessantes artistas do panorama musical atual e alguém a ter debaixo de olho. Membro dos Cassete Pirata (que, no mês passado, esgotaram o Musicbox em duas datas), é também colaboradora assídua de Bruno Pernadas, Joana Espadinha, Minta & the Brook Trout ou Julie & the Carjackers. No ano passado, estreou-se a solo com Supermarket Joy, cuja sonoridade viaja pela pop, dance music, R&B ou jazz experimental. Este mês, podemos vê-la em modo natalício no palco do Musicbox quando, no dia 21, a cantora apresentar um espetáculo inédito rodeada de convidados, como Femme Fallafel, Filipe Melo, Samuel Úria e a família Isabel, Guilherme e Joana Campelo.
Fay Victor e Sam Newsome
13 de dezembro, às 19h30
Teatro do Bairro Alto (TBA)
Sendo a música o seu habitat natural, Margarida não podia deixá-la de fora das suas escolhas. A primeira sugestão musical é um concerto que acontece no próximo dia 13, no TBA, e que junta Fay Victor (cantora e compositora americana de free jazz) a Sam Newsome (saxofonista de jazz experimental). “O TBA é um sítio onde gosto muito de ir porque tem sempre uma programação de exploração e free jazz que não desilude. Não conheço Fay Victor e Sam Newsome, vou completamente à descoberta neste concerto, mas confio que vá ser um espetáculo interessante de música exploratória”, declara.
Superbox (Blu & Exile + DJ Spot + Sam the Kid dj set)
14 de dezembro, às 00h
Musicbox
A outra sugestão musical de Margarida acontece no Cais do Sodré. “Adoro o Musicbox, tem sempre uma programação disruptiva”, diz. No próximo sábado, é aqui que decorre o encerramento da temporada Superbox, uma festa dedicada à música de dança em ambiente intimista. À meia-noite, sobe ao palco a dupla norte-americana de hip hop Blu & Exile, que se estreia no nosso país com a apresentação do terceiro disco, Love (the) Ominous World. A noite conta ainda com atuações de DJ Spot e de Sam The Kid (em formato DJ set), que Margarida não quer perder: “Sou muito analfabeta no que toca ao hip hop, por isso comprei bilhetes para assistir a estas atuações, que saem da minha zona de conforto musical”. Como nota final, será nesta mesma sala que a multi-instrumentista irá apresentar o seu concerto de Natal, a 21 de dezembro.
Janela Indiscreta (1954, de Alfred Hitchcock)
15 de dezembro, às 19h30
Cinema Nimas
Inserido no ciclo Prendas de Natal, o Cinema Nimas recebe o clássico de Alfred Hitchcock Janela Indiscreta, uma das mais aclamadas obras do realizador britânico. A ação acompanha o fotógrafo L. B. Jeffries que, por estar imobilizado com uma perna engessada, decide passar o tempo a bisbilhotar a vida dos vizinhos através da janela das traseiras do seu apartamento. “Janela Indiscreta é um filme que adoro e que me fez muita companhia durante a pandemia, mas que nunca tive oportunidade de ver em grande tela. Gosto muito de Hitchcock e das bandas sonoras dos seus filmes, e adorava ir a esta sessão no Nimas, que é um espaço de que gosto muito”, refere.
William Klein – O mundo inteiro é um palco
Até 3 de fevereiro de 2025
Anthony McCall – Rooms
Até 17 de março de 2025
MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia
Para Margarida, “o MAAT é um sítio lindo”, e, por isso, lamenta nunca ter “muitas oportunidades para ver exposições”. Fã confessa de fotografia, a artista sugere uma visita à exposição de William Klein (1926-2022), um dos fotógrafos mais influentes da segunda metade do século XX. A mostra inclui fotografias de rua, moda, cinema e produção editorial que transportam o público até Nova Iorque, Paris, Roma, Moscovo e Tóquio. Ainda no MAAT, Margarida aconselha a exposição do artista britânico Anthony McCall. Chama-se Rooms e inclui quatro instalações fílmicas que fluem no espaço como esculturas imateriais de luz e fumo, mas aparentemente tridimensionais. “Uma exposição de luzes é uma coisa pouco comum, e deixou-me muito curiosa”, confessa.
As mudanças começam a notar-se ainda na rua. O Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, na Praça das Amoreiras, voltou a ganhar o amarelo original com que foi pintado há 30 anos e tem agora o nome em grandes letras na fachada. Neste aniversário redondo, já sob a direção do curador Nuno Faria, nomeado em fevereiro deste ano, o museu repensa-se e reinventa-se, seguindo a história do lugar onde nasceu, a antiga Fábrica de Tecidos de Seda, e também a história de amor que lhe deu origem.
É com o projeto expositivo 331 Amoreiras em Metamorfose, que se estende até ao final de 2025, que as salas do Arpad Szenes – Vieira da Silva ganham nova vida. O título remete para o número de árvores mandadas plantar pelo Marquês de Pombal para abastecer o processo de transformação e produção das fábricas de seda construídas na zona entre 1760 e 1770, no âmbito do plano de renovação urbanística de Lisboa, posterior ao terramoto de 1755. A ideia de “metamorfose” que inspirou Nuno Faria reflete-se tanto nas obras escolhidas, como na forma da mostra, que se vai mutando várias vezes ao longo do ano. “Será a mesma exposição, mas com cinco momentos diferentes, como se fossem uma gradação cromática”, descreve o diretor.
Depois de passada a loja do museu, agora logo à entrada e com um novo design assinado por Fernando Brízio, as escadas levam-nos àquilo a que Faria chama “uma ampla constelação de artistas, portugueses e estrangeiros, contemporâneos ou não de Maria Helena Vieira da Silva e de Arpad Szenes, cujas peças dialogam num espaço comum”. 331 Amoreiras em Metamorfose pretende propor novas leituras dos universos artísticos do casal e convocar outros autores a tecer diálogos com as obras e o lugar. “A ideia é contar histórias – não propriamente a história da arte, mas outras: sobre este edifício, onde se aprendia o ofício da tecelagem, sobre as 331 amoreiras, um número poético porque estranho, que alimentavam todo o ecossistema dos têxteis… É desse ecossistema que queremos falar, da solidariedade entre as espécies vegetal, animal e humana. Acredito que olhando para essas outras espécies, aprendemos sobre nós próprios”, explica o curador.
Sem perder o fio à meada
À entrada, no patamar das escadas, uma escultura de Frida Baranek, artista brasileira que vive em Lisboa, ocupa um espaço que, a partir de agora, terá, não pintura, mas intervenções escultóricas. É ali que há de estar, depois, uma peça de Sara e André, criada no ateliê de Vieira da Silva propositadamente para esta exposição, e, mais tarde, um trabalho de Vera Mota. Na sala principal, tiraram-se divisórias e destaparam-se as janelas, deixando entrar a luz natural, para dar outro conforto à visita. “O museu abriu-se à luz. É literal, mas acho que resume bem o que aqui quisemos fazer”, nota Nuno Faria. Nas paredes, as pinturas de Vieira e de Arpad convivem, lado a lado, como desejava a pintora, mas agora também com as de outros artistas. Nesta primeira fase, são quase três dezenas os nomes que se reúnem: Álvaro Lapa, Ana Hatherly, Ângelo de Sousa, Dominguez Alvarez, Fernando Marques Penteado, Lourdes Castro, Mário Cesariny, Sonia Delaunay, entre outros.
Logo ao início, duas crisálidas de Bruno Pacheco dialogam com Le Retour d’ Orphée, quadro que Vieira pintou depois da morte de Arpad. Mais à frente, havemos de descobrir desenhos e pinturas do artista húngaro, que teve nas borboletas um dos temas recorrentes da sua obra. Ou aquele desenho em que retrata a mulher no meio de tecidos, transformando-a quase num “bicho”, nome carinhoso pelo qual a chamava. “O tema da metamorfose é intemporal”, afirma Faria, sublinhando o interesse, nesta mostra, pelas mudanças dos corpos, de Ovídio aos dias de hoje.
O têxtil revela-se outro dos temas que vai atravessando a exposição, em obras como as de Robert Rauschenberg, Ana Jotta, Fernanda Fragateiro, Mumtazz, Tomba ou os estudos para tapetes de Vieira da Silva (uma das raras vezes em que assina com o apelido do marido, MH Szenes) ou, ainda, o vestido bordado a seda, oferecido pela pintora a Lourdes Castro (também encontramos uma serigrafia de Lourdes Castro oferecida a Vieira, em 1974). “A perceção de que as coisas têm uma textura parece-me fundamental. O material é muito importante para nos ligarmos à vida. Acredito que as realidades virtuais nos museus são desviantes e podem pôr em causa a apetência para apreciar uma pintura. O museu tem de ser político, não podemos ficar só no plano do estético”, defende o diretor.
“O museu convoca uma ideia de escuta muito forte e isso liga-nos aos outros”, continua Nuno Faria, enquanto fala, entusiasmado, de cada uma das peças expostas nas paredes. Montada “como um poema com rimas”, 331 Amoreiras em Metamorfose permite fazer cruzamentos de artistas, mostrando alguns dos seus trabalhos mais conhecidos e simultaneamente possibilitando inesperadas descobertas. Também por isso, em todos os cinco momentos da exposição, haverá visitas guiadas por alguns dos que aqui estão representados – para que, nesta trama, ninguém perca o fio à meada.
CICLOS
São cinco, os momentos da exposição 331 Amoreiras em Metamorfose
Até 9 fevereiro
[ I ] O Tecido do Mundo
Lançamento dos temas principais do projeto expositivo: “a metamorfose, a árvore, a ressonância do arcaico no contemporâneo ou o arcaico como contemporâneo, a fusão entre humano, vegetal e animal, a transmissão oral (e o papel das mulheres nessa tarefa de transmissão e de poetização da memória), a tematização do têxtil na pintura e no desenho, assim como a forma como o têxtil é cada vez mais assumido como central na produção artística contemporânea”.
13 fevereiro a 4 maio
[ II ] Uma Estreita Lacuna
A relação, por vezes metamórfica e fusional, entre a palavra e a imagem, a relevância do texto e a relação texto-têxtil: “A importância crucial do poético para as nossas vidas. O mesmo é dizer: da escuta. Estar à escuta do mundo e dos outros”.
8 maio a 13 julho
[ III ] Histórias de Bichos da Seda
Variações de metamorfoses: “a magia, os transformismos, os romantismos e o animismo”.
17 julho a 28 setembro
[ IV ] Notas sobre a Melodia das Coisas
São três, os motes: oralidade, auralidade e coralidade (de coral e de coro), ou “a cor, o silêncio dos objetos compostos em natureza-morta”.
2 outubro a 31 dezembro
[ V ] Ascensão: Vers la Lumière
“Uma montagem ao branco”, com pinturas alvas, muitas dos últimos anos de Vieira da Silva. O título, evocativo da sua última pintura, dá o tom para “um momento marcado pela litania, o lamento, mas também a beleza do reencontro para além da vida”. “A condição póstuma da arte é uma das suas mais fortes vocações e condições. Embora, muitas vezes, o esqueçamos”, aponta o diretor do museu, Nuno Faria.
Muitas pessoas defendem que a liberdade é o valor supremo da vida humana. De que forma a dança pode ser um exercício de liberdade, e em concreto nesta sua nova coreografia?
O que sinto é que esta coreografia surge num contexto de liberdade, mas é sobretudo uma dança de libertação. Uma celebração da libertação. A nossa liberdade está sempre condicionada numa relação espaço-tempo. O que pretendo com estes 17 intérpretes é que eles se sintam livres enquanto decorre o espetáculo. Gosto muito de falar da palavra “jogo” quando crio uma coreografia. Acho que tem a ver com o meu percurso no teatro. O que pretendo, além de todas as coisas fixas, é que exista um espaço onde eles possam jogar. Não no sentido de liberdade total: hoje fazem uma coisa, amanhã outra. Na realidade, existe uma estrutura, e dentro dessa estrutura podem ir jogando de forma diferente. Foi muito importante para mim perceber com os bailarinos que estávamos a fazer uma peça cujo tema era a liberdade e que eles tinham de ter esse espaço.
O título desta nova criação glosa um verso de José Mário Branco no tema Inquietação. Este sentimento de desassossego não será uma condição intrínseca às nossas vidas com os outros?
É sempre, mas há contextos mais propícios a isso que outros. Sinto que vivemos um momento politicamente difícil. Essa inquietação está hoje muito mais presente, porque vivemos sob uma forma de ameaça, o mundo todo. Acabámos de ter eleições, e Trump volta à Casa Branca.
Um leigo dirá que coreografar uma massa de corpos representa um maior desafio do que fazê-lo para um grupo mais restrito. Qual é para si o grau de verdade desta generalização?
É mais difícil coreografar para mais gente, porque acima de tudo trabalho com pessoas, com bailarinos, que não são máquinas. Aqui, são 17 pessoas com especificidades muito distintas; com egos muito distintos; gerir uma equipa de 17 pessoas ou gerir três é muito diferente. É um grande desafio gerir este grupo de bailarinos, também pela condição em que estão: uma peça que tem por ponto de partida trabalharmos através da nudez como ponto máximo de libertação, em que existe uma enorme generosidade de todos eles: tem sido incrível todo o processo de criação, o pulsar deste coro em cena, essa presença e a sua expressão.

O corpo nu é uma figura de estilo há muito empregue pela dança. Em Há qualquer coisa prestes a acontecer surge “um corpo de baile” despido em palco. Esta opção também se liga ao conceito de liberdade que pretende explorar nesta coreografia? Um corpo nu é uma figura mais livre porque despida de signos que aprisionam a sua identidade específica?
Acho que é isso. A opção foi a de tirar tudo o que é acessório; tudo o que pudesse dar indicações de classe social, de estatuto, de tudo. Pormo-nos num plano igualitário: somos todos feitos de carne, ossos, veias, sangue, cabelos. Criar esta massa humana sem que houvesse outra camada por cima, outras informações. A nudez é usada na dança há muitos anos, mas nas artes plásticas existe desde sempre. Isso tem sido também uma fonte de inspiração para mim, pois sou licenciado em pintura. A nudez faz parte da pintura e da escultura há séculos e séculos, e apeteceu-me voltar a esse lugar.
De trabalho em trabalho procura coisas diferentes nos bailarinos que traz para as suas criações, ou passaram a existir componentes específicas que se repetem?
Em cada projeto tento encontrar os intérpretes ideais para ele. Tenho feito projetos muito distintos, desde ter trabalhado com adolescentes (Margem, 2018) porque deviam ser eles a ter voz sobre o tema; ou recentemente no Corpo Clandestino (2022), em que trabalhei com corpos não-normativos, ou seja, que não correspondiam ao meu lugar de fala, e em que encontrei pessoas para quem aquele era, justamente, o seu. O que não quer dizer que não existam intérpretes frequentes nas minhas peças. No caso específico de Há qualquer coisa prestes a acontecer foi o momento de trabalhar com cúmplices com quem não colaborava há muito tempo. Para além de ter feito uma audição, em que escolhi grande parte do elenco, tenho esses intérpretes com os quais já havia trabalhado.
O que explica a centralidade de cidades como o Porto e Guimarães na produção e apresentação de dança contemporânea no nosso país?
Existe no Porto uma estrutura muito importante que é a Companhia Instável, que apoia muitos jovens criadores, e que antes se denominava de Núcleo de Experimentação Coreográfica, que foi de onde eu surgi. Sinto que existe uma comunidade muito forte da dança no norte do país. O festival GUIdance já tem um peso muito grande no panorama artístico nacional e o festival Dias da Dança veio trazer um fôlego gigantesco à dança, criando uma rede de espetáculos a norte.
O facto de a dança ser como a música, uma linguagem universal sem palavras, facilita a sua circulação pelo mundo?
Acho que facilita bastante e a prova disso é que a dança circula mais que o teatro. Mas também não considero que a dança seja uma linguagem universal. Entre Ocidente e Oriente os códigos são muito diferentes culturalmente. Mas sim, é mais global e chega a muito mais gente. A palavra assume um peso e uma importância determinante. A partir do momento em que não existem palavras há muito mais espaço para o espectador construir a sua própria narrativa, para se relacionar com aquilo que está a ver.
Quais são os requisitos mínimos no seu trabalho para começar a ensaiar com os bailarinos? Existe um momento do processo criativo em que se considera pronto para tal?
Toda a produção inerente a um projeto é um trabalho gigantesco e por vezes muito invisível, ao ponto de algumas pessoas que trabalham na área não terem consciência dele. Depois de conseguirmos os financiamentos, as condições logísticas, as salas de ensaios, penso que estou pronto quando chego ao estúdio, quando me encontro com os bailarinos. Estou disponível para aquelas pessoas, mas depois tem de se dar esse encontro. Para mim, é muito importante construir o coletivo. Trabalhar em cocriação com os intérpretes. Não chego com uma linguagem e começo a passar o movimento ou frases coreográficas. Lanço ideias ou temas e a partir daí começamos a construir. Inicialmente, eu com eles a trabalhar fisicamente, porque me interessa perceber a energia dos próprios bailarinos. Dançar com eles, não ser um outsider que se limita a ver de fora. Depois lentamente começo a afastar-me e começo a vê-los. Acho que nesse momento começo a estar pronto.
Consegue extravasar do circuito fechado que o trabalho artístico e intelectual determina, para retirar do mundo e do quotidiano um conhecimento empírico?
Confesso que sou um workaholic. Sou viciado no meu trabalho e vivo numa ânsia de aprender coisas. Vivo na angústia de não conseguir aprender tudo, de estar nos sítios todos, de responder a todas as solicitações. Acabo ficando circunscrito às pessoas com quem me vou relacionando. Mas tenho tido a felicidade de encontrar projetos que me vão abrindo mundos. Quando faço um projeto de três anos num contexto social em sítios de Almada, Moita, Barreiro ou Marvila, aqui em Lisboa, vou para esses territórios e confronto-me com aquelas realidades. Quando trabalho com miúdos de instituições. Quando trabalho com pessoas não-normativas que me colocam todas as questões, não só de locomoção ou do olhar do outro. De certa forma vou alargando o meu mundo. E quando estamos a trabalhar não estamos só a dançar. Trocamos ideias, discutimos conceitos, ouvimos outros pontos de vista. Tenho tido a sorte de poder decidir que projetos quero fazer, com que realidades me quero cruzar. Tenho-me forçado a alargar o meu universo, estando mais consciente do que se passa no mundo em geral. Se queremos espelhar o mundo através da dança, temos de o conhecer. Se quero ter uma dança com humanidade, tenho de perceber que humanidade é esta que me rodeia.
A leitura da sua biografia artística deixa a ideia de que aproveitou todas as oportunidades que se lhe apresentaram. Foi mesmo assim que aconteceu?
Tentei aproveitar todas, mas algumas não consegui, embora não tenha arrependimentos. Nem sempre no meu percurso tudo foi facilitado. Ouvi muitos nãos. Algumas coisas não consegui fazer, também por não ser o momento certo. Gosto muito de trabalhar porque tenho muito prazer a fazer o que faço. Estar a criar este espetáculo, Há qualquer coisa prestes a acontecer, faz com que me sinta um privilegiado. Poder estar todos os dias num estúdio com mais de 17 pessoas (19 bailarinos no total, contando com os dois estagiários), a sentir a sua entrega diária.
Que tipo de inquietações pairaram sobre a estrutura de produção que fundou, a Nome Próprio, em mais de 20 anos de existência?
Ao nível do trabalho tem sido muito regular e contínuo, com vários convites como no caso deste espetáculo que partiu de uma proposta do Centro Cultural de Belém, apesar da estreia não ser em Lisboa, mas em Aveiro [a 6 de dezembro], por se tratar da Capital Portuguesa da Cultura. Mas houve momentos em que não recebemos apoio da Direção-geral das Artes e sentimo-nos um bocadinho desamparados. Nessas alturas foi mais complicado persistir e resistir. Não por falta de trabalho, mas pelas condições em que certos trabalhos foram feitos. Este projeto com um total de 19 bailarinos é gigantesco para uma estrutura independente. A logística que implica é imensa para uma organização que tem três produtoras, sendo que uma é estagiária. Os recursos humanos são escassos para o volume de trabalho que tenho. Gostava de poder ter mais gente a colaborar, podendo dar-lhes as condições necessárias.
Havia o Oslo, o Copenhaga, o Liverpool, o Roterdão, o Hamburgo, o Tokyo e o Jamaica. Cada bar e discoteca do Cais do Sodré estava batizado com o nome de uma cidade ou país – até que, em 2006, debaixo do arco sobre o qual passa a rua do Alecrim, o Texas deu lugar ao Musicbox. Naquele armazém do século XIX com paredes e teto de pedra, abria-se uma caixa de música, com concertos e sets de djs. Nestes 18 anos muito mudou por ali, mas no número 24 da Rua Nova do Carvalho, o espírito mantém-se o mesmo: organizar encontros entre pessoas, promovendo a música ao vivo e trazendo talentos emergentes e nomes consagrados nacionais e internacionais.
Este ano, a celebração é feita com cinco dias de concertos e clubbing, de 4 a 8 de dezembro. Por lá passam B Fachada e Romeu Bairos; Fidju Kitxora e Elida Almeida; Suzana e Mynda Guevara; Dealema e Azia; Black Bombaim e Pedro Alves Sousa; Jasmim, A Sul e Gorjão; e o Conjunto Cuca Monga; assim como o DJ Fantasia, o DJ set da Tabanka Records com Mama Demba, o DJ set de Hip Hop Sou Eu e o DJ set de Lovers & Lollypops, com artistas como Xavbeatz, Soundpreta, João Gomes, Lady G Brown, Mike Stellar, King Kami e A Missa do Papi. Uma programação feita de cruzamentos por este ser um espaço que sempre os incentivou. “É o que fazemos há 18 anos: proporcionar encontros. E encontros ao vivo, o que é muito importante. Tem sido a nossa história e, por isso, pegámos nesta lógica para a celebração”, explica Gonçalo Riscado, diretor da CTL – Cultural Trend Lisbon, a estrutura de produção por detrás do Musicbox.
Quando há um ano lhe perguntaram se a sala do Cais do Sodré estaria preparada para a maioridade, Gonçalo disse que não. Hoje, ri-se quando voltamos à mesma pergunta. “Continuamos a não estar prontos, porque se a maioridade significa responsabilidade, o Musicbox deve continuar a ser irresponsável e a ser irreverente, deve continuar a arriscar. Isso é que faz sentido e também é isso que traz esta longevidade. Fomo-nos mantendo fiéis àquilo em que acreditamos, sem ir em modas ou sem nos rendermos a soluções que nos descaracterizassem. E isso, se calhar, é um anti-maioridade, não é? No sentido de não pensarmos que fizemos uma construção e que agora podemos viver à sombra do que fizemos ou tornar as coisas muito sérias. A nossa luta é manter o Musicbox irreverente e sustentável.”
Aldeia gaulesa
Longe vão os tempos em que, num Cais de Sodré de má fama, Gonçalo Riscado e Alex Cortez, músico dos Rádio Macau, passaram em frente à porta fechada do Texas Bar e tiveram a ideia de ali criar um lugar de música ao vivo, no espírito dos saudosos Rock Rendez-Vous e Johnny Guitar. Em dezembro de 2006, o Musicbox abriu, pela primeira vez, com um concerto dos 1 Uik Project, de Lil’ John e Kalaf, e começou a atrair os amantes da música e todo um público que antes se ficava pelo Bairro Alto.
Aos poucos, as ruas foram ganhando outros ritmos e vivências, muito por causa da programação quase diária que era organizada. “Desde o início, havia a ideia de poder ter uma estrutura que fizesse vários projetos em diferentes áreas artísticas, tendo o Musicbox como o pulmão que sustentava e unia as coisas. Muito rapidamente fomos fazendo outras coisas, como os Musicbox Club Docs para a RTP, o Lisboa Capital da República Popular, o Festival Silêncio, que era um acontecimento de partilha a partir da palavra e que criava uma união entre quem frequentava, vivia e trabalhava na zona do Cais do Sodré”, recorda Gonçalo Riscado, sublinhando o quão importante é existir uma estrutura sólida por detrás da sala de espetáculos que se financia através de vários projetos e sem apoios públicos – um deles, há de voltar a nascer no próximo ano, no Beato: a Casa do Capitão, pensada para ser um espaço com atividade regular em várias áreas artísticas, de dia e de noite.
Ao longo destes 18 anos, o Musicbox conseguiu resistir às contrariedades: sobreviveu à pandemia, graças à solidez da CTL e ao posterior aumento do turismo, tal como tem sido imune à especulação imobiliária, uma vez que o edifício pertence à produtora. “Em 2006, conseguimos um bom crédito bancário e adquirimos o prédio. É a única razão pela qual não tido pressão para sair, como tem acontecido noutros espaços”, confirma Gonçalo. “Quando fomos para ali, a zona não era habitacional, mas sim de comércio em decadência ou encerrado, de escritórios fechados e de vida noturna. Houve um novo fôlego com o Musicbox e com a recuperação de outros espaços que trouxeram uma movimentação de pessoas muito interessante. Havia uma altura em que a grande maioria das pessoas que trabalhava no Musicbox vivia no Cais do Sodré. Havia tantas casas disponíveis, que passou a ser um bairro habitado e com imensa atividade. Mas, tão rápido foi essa movimentação quanto o processo de gentrificação”, conta.
Hoje, em plena “rua cor-de-rosa”, o Musicbox é uma espécie de aldeia gaulesa em pleno império romano, rodeado de bares e discotecas mais virados para o turismo. “O excesso de turistificação faz com que o Musicbox se sinta como um espaço resistente, mas para nós continua a fazer sentido estar no centro. É com alguma tristeza que assistimos ao que acontece naquele bairro, pensando no que podia ter sido e no que se está a tornar”, afirma Gonçalo Riscado.
“Lisboa não tem conseguido olhar para a animação noturna nem regulá-la para a proteger. Continuo a ter dificuldade em perceber como, nos anos 20 do século XXI, não há um pensamento estratégico sobre a vida noturna de uma cidade. Estes lugares são os pontos de encontro principais das pessoas, são fundamentais para as dinâmicas culturais da cidade, para as comunidades se juntarem, para a cena local florescer. Isto é importante para quem vive na cidade e também para quem está de visita e não quer vir para uma cidade morta ou uma cidade museu ou uma cidade de vida barata como único atrativo. Atualmente há muito mais espaços e muito mais diversidade, mas tudo isso está a ser empurrado para periferias. É como se houvesse uma promessa de que esta cidade pode representar uma série de coisas, mas depois se dificulta a sua concretização. E o Cais do Sodré é um paradigma disto tudo.”
Mesa farta
Quem passa a porta debaixo do arco, encontra, quase diariamente, um cartaz pensado ao detalhe. Para Gonçalo Riscado, é importante não perder essa regularidade. “Acredito que devemos combater a sazonalidade da agenda cultural. Nada contra festivais, mas a cidade não pode estar refém deles. Têm de existir pontos de encontro, de debate, de programação de música, cinema, teatro… Só assim conseguimos construir comunidade ao longo de todo o ano.”

O Musicbox tem sempre um calendário preenchido e, lá dentro, tanto podemos encontrar artistas a dar os primeiros passos como outros já consagrados. Devem ser poucas as bandas de música ou cantores e djs que aqui não tenham atuado. Nesta morada, têm cabido todas as pessoas que gostam de música – as que a criam, mas também as que a seguem ou as que vêm à descoberta. Por isso, na newsletter que anuncia estes dias de festa, a jornalista Joana Canela escreve: “O aniversário do Musicbox é como uma mesa farta cheia de amigos. Arranja-se sempre espaço para mais um nesta sala (…). Nesta grande família cabem os primos do hip-hop, o tio do techno, os filhos do rock e todas as futuras e atuais gerações, nichos, coletivos, grupos de amigos e pessoas singulares. Até o turista pode vir jantar connosco. No menu musical, o buffet sempre a escaldar com novos pratos, ora mais modernos e ousados, ora mais tradicionais. E aquela sensação de provar algo nunca degustado: aquelas apetitosas primeiras vezes. A verdade que ninguém conta é que as seguintes são ainda melhores.”
Nestes 18 anos, muito pode ter mudado e muitos de nós podemos ter crescido (e envelhecido), mas o Musicbox continua ali para nos lembrar que podemos ser eternamente anti-maiores.
Chegou às livrarias em outubro, o novo livro de Isabel Lucas. Conversas com escritores, editado pela Companhia das Letras, reúne entrevistas a 15 escritores, conduzidas pela jornalista e crítica literária, quase todas publicadas no Ípsilon, o suplemento do jornal Público dedicado às artes. Elena Ferrante, Paul Auster, Zadie Smith, Patti Smith, Javier Marías, Salman Rushdie, Peter Handke, Don DeLillo, Julian Barnes, Jonathan Franzen e Enrique Vila-Matas são algumas das pessoas com quem se sentou para conversar.
331 Amoreiras em Metamorfose
Até 31 dezembro 2025
Museu Arpad Szenes Vieira da Silva
Na celebração dos 30 anos do Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, Isabel Lucas sugere uma visita à nova exposição. “Evoca-se a memória do edifício e do próprio museu, com obras a remeter para o universo animal e vegetal, e para o amor cantado por Ovídio. São muitos corpos, de muitas espécies, num canto quase inicial”, descreve. “É também o regresso à fachada dos nomes dos dois artistas, da autoria de Pedro Falcão, onde antes de 1994 estavam gravadas as letras ‘Fábrica de Tecidos de Seda’”, acrescenta, lembrando que o museu “fica num dos recantos mais bonitos de Lisboa, o Jardim das Amoreiras”.
Livraria da Travessa
Como não podia deixar de ser, a jornalista elege as suas livrarias preferidas em Lisboa. Da Livraria da Travessa, na Rua da Escola Politécnica, diz: “Os livros bem exibidos, bem organizados, numa seleção cuidada, vasta, que parece resistir a pressões de fluxo rápido que fazem parte da gestão de grandes cadeias, da necessidade de escoar. A Travessa é um exemplo de bem cuidar dos livros e de quem lê. Além disso, traz edições do Brasil, reveladoras de outro cuidado: o editorial, com objetos literários que apetece namorar, mesmo quando não os podemos levar connosco”. A esta, junta, ainda, na sua lista de eleição, a Tigre de Papel, a Snob, a Poesia Incompleta e a Almedina do Rato.
Cinema Ideal
Em Lisboa, não há como o Ideal, afiança Isabel Lucas. “O cinema no meio da cidade é um refúgio com a garantia de não ver maus filmes”, afirma. “Salas como estas foram desaparecendo e as que ficam – poucas – são um benesse, fora de centros comerciais ou de aglomerados ou de pipocas – nada contra, mas prefiro não. Estes lugares ficam na memória, saber onde se viu um filme que marca é um dado que ajuda a retê-lo. Dar o passo para passar a porta do Ideal, ali no Loreto, é um dos gestos que me dão muito prazer enquanto lisboeta adotada.”
Mercado de Alvalade
Isabel Lucas gosta de mercados e conta que, sempre que viaja, vai em busca do mercado local mais próximo. “Os produtos expostos, os aromas, as compras, o ruído dão-me um retrato muito vivo e rápido, uma boa maneira de aproximação. Procuro comprar em mercados e falar com a peixeira do ‘meu’ mercado, o de Alvalade, é uma boa sensação, a de estar em casa.”
Café Fermenta
Também em Alvalade, mais precisamente no bairro de São Miguel, a jornalista frequenta o café Fermenta. “Sobretudo quando dá para estar na esplanada, permite ter o silêncio que vai escasseando em Lisboa. As conversas cortadas de quem passa, o cheiro a croissants frescos, o sol de outono de manhã, um sossego que permite ler enquanto se bebe um bom café, longo, de preferência. E ainda há livros e revistas usados à disposição”, conta. Outra opção, não muito longe, acrescenta, é o Fora do Saco, na Avenida de Roma, “outro bom recanto, sobretudo de porta fechada, com o pão, os cozinhados das manas, a pequena mercearia”.
Caminhar pela cidade
“Nas cidades gosto de caminhar”, revela Isabel, garantindo que, em Lisboa, sempre que pode, é a pé que se desloca. “Os altos e baixos lisboetas levam por vezes a lugares e vistas que surpreendem mesmo quem vive há muito tempo na cidade. Um vislumbre de rio, um beco, a sensação de partilhar alguma intimidade através de um pátio ou de uma janela entreaberta. E isto enquanto se resolvem textos, se pensa, ou simplesmente se anda sem saber muito bem para onde.”
Miguel Real
Autobiografia de Jesus
“Todos os homens são um enigma, (…) mas tu és um mistério”, afirma José a seu filho em Autobiografia de Jesus. Parte desse mistério pretende este livro desvendar. Tomando a voz de Jesus, revela a sua vida familiar, a sua aprendizagem, as suas revelações, a sua solidão (“São os meus traços essenciais, sentir-me só e estar triste.”) O autor separa a ética de Jesus, “a ética das Bem-Aventuranças”, da ética de Cristo, “a da dor, do sacrifício, do tormento e da resignação”, e recorre a esta narrativa como forma resolver as inquietações que o tema da Ressurreição lhe suscita desde a infância. Afirmando uma visão profana da vida de Jesus (“um Jesus humano, não transcendente nem sobrenatural”), defende que este foi o homem mais fracassado da civilização ocidental: morreu abandonado pelo “Pai” e “tudo o que profetizou não só se cumpriu como deu origem à religião mais violenta do mundo”. Com um final engenhoso, este romance singular reabilita, de forma corajosa e bela, um pouco à semelhança de A Última Tentação de Nikos Kazantzakis, a figura de Judas Iscariote e assume o remorso de Jesus por ter tratado Maria Madalena de forma condescende e por não a ter convidado para a mesa da ceia pascal, entre os seus mais chegados companheiros. LAE Dom Quixote
Ovídio
Remédios Contra o Amor
Nos Remédios Contra o Amor, Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), o poeta que celebrou os prazeres do amor e que ensinou a explorar os seus segredos nos Amores e na Arte de Amar, parece que vem agora ajudar a fazer frente à suas contrariedades. Contudo, só aparentemente. Como afirma o próprio autor no início do poema “(…) eu sempre me entreguei ao amor / e se me perguntarem o que faço agora… pois bem entrego-me ao amor”. Carlos Ascenso André, tradutor e prefaciador da presente edição, sublinha, por isso, que Ovídio “continua a assumir a sua condição de porta-estandarte do mesmo amor que sempre apregoou e que de há muito lhe vem a nortear a vida e o fazer poético”. Sem renunciar ao carácter licencioso e erótico da sua poesia, enuncia uma série de preceitos uteis para evitar os males de amor. E, ao fazê-lo, subverte os códigos do protocolo amoroso e sexual de Roma: só a mulher é identificada com o amor e seus malefícios; o homem é sempre vítima. A mulher surge representada como detentora absoluta das regras de condução do processo amoroso. Os Remédios reafirmam, deste modo, “o direito da mulher à livre fruição do seu corpo, o seu direito ao prazer, o seu direito à escolha do parceiro de relação (…) semelhante ao do homem, em quem a sociedade contemporânea do poeta via o exclusivo na liderança do protocolo amoroso.” LAE Quetzal
James Baldwin
Um Outro País
Romancista, ensaísta, poeta e ativista dos direitos civis, foi, com Gore Vidal, um dos mais lúcidos espíritos críticos que a América produziu no século XX e um dos seus maiores intérpretes. O romance Um Outro País, publicado em Portugal no ano em que se celebra o centenário do seu nascimento, centra-se numa teia complexa de relações entre quatro casais, dos quais dois inter-raciais e um homossexual. Cada uma das personagens procura, à sua maneira, encontrar o verdadeiro amor para além dos conflitos de raça, sexo e género enraizados na sociedade norte-americana. Preconceitos que, através da persistência no tempo, se interiorizaram, inscrevendo-se no corpo e na mente de todas elas. Face a tão poderosos obstáculos, o fracasso do amor (o tema principal da obra) torna-se inevitável. À beira do desespero, os protagonistas entregam-se a uma espiral de desejo, agressão, sexo e traição que apenas contribui para reforçar o seu trágico sentimento de solidão e de angústia. Em pano de fundo, o peso hostil de Nova Iorque com as suas “torres orgulhosas e ávidas antenas”, sem “noção das exigências da vida humana”, “cidade sem oásis, virada inteiramente (…) para o lucro.” LAE Alfaguara
Anne Carson
Eros – Amargo e Doce
“Foi Safo quem primeiro chamou a Eros ‘amargo e doce’. Ninguém que se tenha apaixonado a contesta. Que significam essas palavras?” Neste seu primeiro livro, a poetisa, ensaísta, tradutora e classicista Anne Carson procura uma resposta para a questão paradoxal da divindade do prazer se apresentar como “um ser ambivalente, ao mesmo tempo amigo e inimigo”, de se traduzir numa experiência que causa uma simultaneidade de dor e prazer. Eros -Amargo e Doce foi imediatamente considerado um ensaio lírico comparável aos de Séneca, Montaigne ou Emerson. A obra diluiu as fronteiras entre antigo e contemporâneo, entre ensaio e poesia, e moldou a produção futura da autora, definindo as teorias sobre o desejo que inspiram a sua poesia, estabelecendo o processo de conceber os seus escritos a partir de textos clássicos gregos. O ensaio produz uma investigação sobre a natureza paradoxal do amor a partir da Grécia antiga, evocando referências da poesia, filosofia, literatura, história e psicanálise ao longo dos séculos, e apurando que “todo o desejo humano se equilibra num eixo de paradoxo, ausência e presença são os seus polos, amor e ódio as suas energias motrizes.” LAE Edições 70
Fábio da Silva
As 100 Maiores Curiosidades Sobre o Cosmos
Eis um livro de divulgação científica escrito por um autor que não é cientista nem astrónomo, mas prefere intitular-se como um astronauta da curiosidade. Fábio da Silva é um curioso insaciável, apaixonado pelo Universo e pela divulgação dos seus segredos. É um jovem de 33 anos formado em Jornalismo e Ciências da Comunicação, que exerceu funções de Direção Criativa. O seu gosto por comunicar materializou-se no Projeto Universo Perpendicular que usa as redes sociais para apontamentos de divulgação científica e só no Instagram conta com cerca de 90 mil seguidores. O seu livro, como o título indica, não pretende ter um fio condutor ou defender uma visão da evolução do conhecimento científico, mas através dos exemplos e histórias selecionadas dá uma boa contribuição para explicar, numa linguagem acessível e quase sempre com uma dose de humor, alguns dos princípios fundamentais e descobertas atuais do conhecimento científico sobre o universo de que fazemos parte. Espaço-tempo, teoria das cordas, ou coisas aparentemente simples como a razão do universo ser escuro ou das estrelas cintilarem, tudo é tema para a sua curiosidade. TCP Oficina do Livro
Conceição Evaristo
Olhos d’água
Um livro de contos pode ser uma boa porta de entrada para o universo de uma escritora. De uma assentada, a Orfeu Negro editou Olhos d’água e Canção para ninar menino grande, de Conceição Evaristo, afro-brasileira de 77 anos, mulher negra e ativista. O primeiro reúne 15 pequenas histórias com um denominador comum: não existem finais felizes, mesmo que, por vezes, até se vislumbrem laivos de esperança. Estas vidas – que são sobretudo de mulheres negras, cheias de mazelas, mas ainda assim, mulheres fortes – estão carregadas de dor e de pobreza, de violência e de morte, de sonhos desfeitos e de injustiças. No entanto, em cada uma delas, há também uma resistência até ao fim… mesmo que esse fim seja logo ali. Conceição Evaristo, que nasceu numa favela, se tornou intelectual e publicou o primeiro livro aos 44 anos, alinha palavras e frases de forma tão solta que estas parecem mesmo ter som, numa escrita-oralidade carregada de sotaque brasileiro. Depois de Olhos d’água, escrito há já 10 anos, vale a pena seguir para o romance, a sua obra mais recente, de 2022, onde narra a história de um homem e das muitas mulheres conquistadas por ele ao longo da vida. GL Orfeu Negro
Gonçalo Salvado
Luminea
“Quando a Luz do Meu Corpo me Cega, verdadeira gramática, quase uma enciclopédia do amor, obra simultaneamente complexa e de uma simplicidade mágica, junta num mesmo sortilégio palavra e imagem”, escreve a crítica de arte e poeta Maria João Fernandes que prefacia a obra. Luminea reúne uma seleção de poemas de Gonçalo Salvado e de desenhos de Siza Vieira, retirados do livro Quando a Luz do Teu Corpo me Cega, em versão bilingue português/braille. Compõem este livro poemas com o tema da luz no contexto amoroso, recorrente na obra do autor. A sua poesia, “ritual do amor, nas infinitas variações amorosas da palavra”, alimenta-se, recorrendo de novo a Maria João Fernandes, “dos diversos afluentes, temas dos outros livros do autor, a poesia e os textos de amor ancestrais e da grande tradição do lirismo, do Cântico dos Cânticos, de Safo, Ovídio e Omar Khayyam a Camões, Bocage, Leonardo Coimbra, Florbela Espanca, Pablo Neruda, Octavio Paz, Paul Éluard, Herberto Hélder, António Ramos Rosa e David Mourão-Ferreira, entre muitos outros”. Poesia valorizada ainda pela eloquente depuração das linhas de Siza Vieira. Duas serigrafias, numeradas e assinadas pelo arquiteto/artista, acompanham esta edição, impressas pelo Centro Português de Serigrafia (CPS), de Lisboa. LAE RVJ Editores
Teolinda Gersão
Autobiografia não escrita de Martha Freud
“Sou apenas figurante numa narrativa alheia, já escrita e considerada perfeita, vigiada dia e noite com uma devoção quase religiosa por uma multidão de pessoas que a assumem, propagam e defendem, sem permitir qualquer alteração (…)”. Neste romance, Teolinda Gersão resgata a figura de Martha Freud, casada com o célebre psicanalista Sigmund Freud, “silenciada e reduzida ao estereótipo de esposa, mãe e dona de casa” até 2011, data de publicação das suas cartas de noivado (“As cartas que trocávamos pareciam-me ‘um romance em episódios’, com os seus altos e baixos, peripécias e reviravoltas”). Através da interpretação desses documentos, a autora procura descobrir e dar voz à personalidade real de Martha. A protagonista tenta compreender quem foi, “na verdade, nas suas qualidades, mas também nos seus erros e falhas”, o homem por quem se apaixonou, na medida em que “saber quem é o outro é também saber quem fomos sendo, na relação com ele. Saber quem amei, e como, é também descobrir a minha própria face”. O livro, belíssima afirmação e revelação de uma identidade (“Além de Martha Freud, sempre tinha sido, e continuava a ser, Martha Bernays”), é também uma ampla e profunda reflexão sobre as múltiplas conexões entre memória, palavra e pensamento. LAE Porto Editora
Miguel Szymanski
A Viagem do Oligarca
Naquele que é o terceiro livro que Miguel Szymanski dedica a Marcelo Silva, jornalista especializado na investigação de crimes de colarinho branco, acompanhamos a vinda a Portugal de Oleg Porovich, um oligarca detentor de uma das maiores fortunas do mundo. A sua missão: derrubar o governo português com a ajuda, entre outros, do Ministro da Defesa. A acompanhar a mulher Jemima na promoção do seu livro, é durante a viagem inaugural dum comboio comprado por Oleg que Marcelo Silva vê a sua vida sofrer novo contratempo, depois de Oleg o ter “envenenado” e convencido a sua mulher a deixá-lo. Sem entender o que aconteceu, Marcelo resolve procurar Jemima, envolvendo-se numa densa trama que envolve alguns dos seus antigos colegas do curso de Direito, nomeadamente um antigo administrador da TAP, entretanto assassinado, e alguns traficantes e pescadores ilegais do bairro da Trafaria. Considerado “o grande representante do romance de natureza política”, pelo escritor Miguel Real a propósito do segundo thriller da série Marcelo Silva, O grande pagode (2020), Miguel Szymanski volta a criar um romance que transcende a natureza dos policiais. SS Bertrand Editora
Maria Filomena Mónica
Viagem de Inverno
Existem pelo menos três invernos para onde somos reenviados ao longo destes artigos, acompanhados de introdução, ensaio e epílogo, quase todos publicados nas revistas Atlântico e Sábado, e nos jornais Correio da Manhã, Expresso, Meia-Hora e Público. Aquele que inspira o título do livro diz respeito aos poemas musicados por Schubert, da autoria de Wilhelm Müller (Winterreise, a Viagem de Inverno original). Mais significativo é talvez pensarmos na estação como correspondendo à idade de Maria Filomena Mónica, que de alguma forma se despede dos leitores no final, refletindo sobre as possíveis últimas palavras que proferiria. As citações escolhidas, denotando igualmente forte sentido de humor, vão de “Nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos é triste”, de Rodrigo da Fonseca; “Vou fazer falta” de Fontes Pereira de Melo; ou “Isto dá vontade de a gente morrer”, de Alexandre Herculano. E chegamos ao Inverno mais significativo, e que preenche o maior número de páginas do livro, aquele que corresponde ao descontentamento da autora em relação ao nosso país, que afetuosamente critica com o rigor dos exemplos provenientes da investigação na área da sociologia, que desde cedo a alertaram para as grandes desigualdades da nossa sociedade. RG Relógio D’Água
Uma nuvem negra lança raios sobre uma mesa de escritório e ali, quase na penumbra, tudo é preto: a secretária, o módulo de gavetas, o candeeiro aceso, a cadeira giratória. Alguns objetos aparentam respirar, num movimento suave de ondulação que os torna quase vivos. O cenário parece agreste e, ao mesmo tempo, fofo e confortável – mas, para se ver a instalação de Ângela Rocha, instalada no palco do Pequeno Auditório da Culturgest, não basta olhar, é preciso sentir, tatear, apalpar, mexer e remexer.
Metade dos Minutos, que abre ao público a 30 de novembro, ficando patente até 5 de janeiro, descreve-se como um labirinto sensorial. A instalação foi criada pela cenógrafa para a Representação Oficial Portuguesa, comissariada pela Direção Geral das Artes, na Quadrienal de Praga 2023, uma das maiores mostras internacionais de artes plásticas do espetáculo. Concebida no pós-covid, procura recordar-nos o valor do toque, contrariando a ideia de perigo a ele associada durante a pandemia e combatendo também a sua ausência causada por relações cada vez mais digitais.
“Quis valorizar o conceito de estarmos presentes, aqui e agora. Nesta peça, temos de estar presentes para a sentir, não chega ver fotografias ou vídeos. É uma ideia de reconexão com o corpo, de tomada de consciência do corpo no espaço. Costumo evocar a imagem do jogo da mímica para dizer que qualquer dia todos os nossos gestos estão resumidos a um dedo a ligar e desligar, que isso será o código para tudo. E não pode ser. Quis enaltecer as mãos, a manualidade e o seu poder transformador”, afirma Ângela Rocha. Vem daí exatamente o nome com que batizou este trabalho, Metade dos Minutos, título do primeiro diário gráfico que fez na Escola António Arroio, usando recortes de jornais. “Foi a primeira vez que prestei mais atenção ao que faziam as minhas mãos e achei que fazia sentido voltar a essa ideia, reivindicando, pelo menos, metade dos minutos para estarmos presentes e ligados uns aos outros e à terra, e não ao wifi.”
“Visões raras de futuro” era o mote para as obras nessa 15.ª edição da Quadrienal de Praga e pedia-se, ainda, que se apresentassem ideias positivas. A cenógrafa de 36 anos, mais habituada a espetáculos de teatro, estreou-se na criação de uma instalação artística com a ideia de pôr de pé um labirinto que fosse imperativo de movimento e colocasse o visitante no centro da ação. “O espectador aqui tem de ser o protagonista”, sublinha. “Hoje, o público está num lugar de conforto e de distância e, nesta peça, queria que estivesse mais implicado, que se aproximasse e que se conduzisse a si próprio através de estímulos, mas decidindo por si. O lugar é potenciador e explorativo, para cada pessoa o ir descobrindo, conduzindo-se a si própria e escolhendo o caminho e a interação que quer fazer”.
Trabalhar para o deslumbre
Entremos, então, neste labirinto coberto de pelúcia cor de rosa. Lá dentro, esperam-nos caminhos apertados, como se estivéssemos numa espécie de lavagem automática forrada de fogo de artifício luminoso e chão espelhado. Imersos num ambiente sonoro criado por Miguel Raposa Lima, há caminhos que nos levam a portas, há um que nos leva a um beco sem saída onde nos espera um coração (quase) capaz de explodir. A ideia é tocarmos sem medos, encostarmo-nos por onde passamos, interagirmos com o que vamos encontrando, experimentarmos as diferentes texturas e ir descobrindo que nem sempre o que parece se confirma ser. “Gostaria de trabalhar para aqueles segundos de deslumbre, em que ainda não nos pomos a pensar sobre o que são as coisas nem a catalogar. Para mim, esses momentos são bolsas de oxigénio e acredito que estamos mesmo a precisar disso”, diz Ângela Rocha, que, numa lógica colaborativa, convidou os artistas plásticos Diogo Costa e Telma Pais de Faria para pensarem, cada um, numa das saídas do labirinto, concebendo obras para ali.
A instalação, que na Quadrienal de Praga ganhou o prémio do público, o PQ Kids, e já esteve em Évora, na Fundação Eugénio de Almeida, está agora no ambiente de trabalho da cenógrafa: um palco. No entanto, concebê-la foi um desafio, confessa. “Mas gosto de desafios e gostei deste formato em que o público tem acesso ao que faço sem a intermediação dos atores. É uma relação direta com o objeto. Sempre me atraiu a verdade dos materiais, que têm todos a sua força específica. O que me fascina é conseguir escolher o material certo para cada coisa”, acrescenta Ângela, que começou como assistente de cenografia e figurinos nos Artistas Unidos e trabalhou, como cenógrafa e figurinista, para encenadores como Cláudia Gaiolas, Guilherme Gomes, Gonçalo Waddington, João Pedro Mamede, Maria João Luís, Raquel Castro, Ricardo Neves-Neves, Tiago Guedes e Tiago Rodrigues, entre muitos outros. Em 2025, voltará a fazer uma instalação, encomenda de um teatro fora de Lisboa, mas não revela ainda mais pormenores.
Na Culturgest, Metade dos Minutos começa ainda antes de descermos ao Pequeno Auditório. À entrada, encontramos um objeto que nos lembra a bola de cristal de uma cartomante, mas que é uma daquelas máquinas de onde podemos tirar uma surpresa a troco de uma moeda de 50 cêntimos. Inspirada pelo tema da Quadrienal de Praga e querendo tornar a Representação de Portugal num gesto coletivo, a artista plástica convidou quem quisesse a deixar a sua “visão rara de futuro” numa biblioteca perto de si, de norte a sul do país.
Os contributos foram recolhidos e fazem parte desta segunda instalação dentro da instalação. Mirabolante, assim se chama, leva “a voz dessas pessoas” a quem queira tentar a sorte e comprar uma bola de plástico com recheio. Do seu interior, saem as mensagens deixadas para o futuro, que podem assumir várias feitios: confetis em forma de estrela, uma música que se ouve através de um qrcode (como The Future’s So Bright, dos Timbuk 3), um desenho, uma chave-surpresa de uma fechadura que não sabemos o que abrirá, sementes que alguém pode ou não plantar (partilhando a responsabilidade de um futuro comum), flores como o amor-perfeito, uma frase escrita num papel (“É preciso que todos deem as mãos o mais rapidamente possível para solucionar os problemas graves.”).
“O futuro quer-se plural e não de voz única”, acredita Ângela Rocha, “e o primeiro passo para construir algo é imaginá-lo”.
paginations here