Natural de Viana do Castelo, a atriz e criadora Sara Inês Gigante é um dos valores mais seguros da nova geração do teatro português. Formada na ACE- Teatro do Bolhão, no Porto, e na Escola Superior de Teatro e Cinema, soma no currículo colaborações com Jorge Silva Melo e Artistas Unidos, Bruno Bravo, Nuno Nunes, Raquel Castro ou Pedro Frias, com quem se estreou há pouco mais de uma década a representar Tchékhov. Em 2021, a atriz assinou a sua primeira criação, YOLO, e apenas um ano depois Massa-Mãe, onde esfarelava sem rodeios as suas raízes e identidade minhotas. Logo a seguir, Sara venceu a Bolsa Amélia Rey Colaço com um novo projeto: Popular. O espetáculo estreou em 2024 em Guimarães, fez temporada no Teatro Meridional, em Lisboa, e correu o país, sempre com salas cheias. Contudo, como o público pode confirmar a 4 de janeiro, no Teatro Variedades, numa récita única que será gravada para a RTP, Sara Inês Gigante continua muito longe de se sentir uma artista Popular.

Metade dos Minutos

Instalação de Ângela Rocha

Até 5 de janeiro na Culturgest

Sugiro vivamente a instalação Metade dos Minutos da Ângela Rocha. Trata-se de um desafio olharmos para um objeto artístico de uma forma que não estamos acostumados: através do tato, do toque. A Ângela é uma artista incrível e muito completa com quem já tive o prazer de trabalhar, e oferece-nos aqui um mergulho muito especial e sensorial em que não basta ver e ouvir, é preciso tocar, mexer, entrar num espaço e ocupá-lo, investigá-lo também com as mãos. É preciso estar presente, e acho que isso traz em si uma mensagem provocadora, mas pertinente.

Dores Crónicas

de Bruno Nogueira

Dom Quixote, 2024

Sugiro o livro que estou a ler, Dores Crónicas do Bruno Nogueira. Já tinha lido o anterior, Aqui Dentro Faz Muito Barulho, e encontro sempre uma inquietação nas crónicas do Bruno que me agrada. Sinto-lhe uma rara inconformidade e uma constante procura pela reflexão, seja nas coisas mais mundanas ou nas mais difíceis de olhar de frente. Numa primeira instância, a crónica é um estilo de escrita e de leitura que aprecio bastante. E depois, porque efetivamente o Bruno é um artista que me inspira. Nas suas crónicas ora traz uma lufada de ar fresco leve e irónica sobre determinado tema, ora me incita a um pensamento ou a um novo ponto de vista sobre algo. Não ter medo do questionamento contínuo ou de não fechar uma ideia ou uma opinião é um exercício que aprecio, por acreditar que seja esse o caminho evolutivo, e é uma característica que encontro neste livro, e que por isso também me ajuda a pensar ou a repensar, o que é sempre bom, a meu ver.

Inside

de Bo Burnham

disponível na plataforma Netflix

Num contexto mais caseiro, sugiro Inside do Bo Burnham, que está disponível na Netflix, e é talvez a coisa que mais vezes vi repetidamente. Este Especial foi feito durante a pandemia e, para mim, a destreza com que o Bo Burnham alinha a música, o humor, e também a sátira e a crítica a muitas das coisas trágicas do mundo, da atualidade e da humanidade é uma característica que me move, e acho inovadora e muito única a forma como o faz. Armadilha-nos através do humor e do entretenimento, e logo a seguir tira-nos o tapete, e esse vaivém é desarmante. Sempre que estou em processos criativos da minha autoria, vou a muitos materiais do Bo Burnham tentar buscar inspiração.

O Americano

de Ivo M. Ferreira

disponível na RTP Play

Outra sugestão: O Americano, série realizada pelo Ivo M. Ferreira. É inspirada numa das maiores fugas prisionais que tivemos em Portugal, nos anos 80, no Algarve, e foi criada a partir do livro autobiográfico Vida e Mortes de Faustino Cavaco. É protagonizada por um grande amigo meu, o João Estima, que brilhantemente dá vida a Faustino Cavaco na série. Obras inspiradas em factos verídicos, ou que tenham materiais biográficos, atraem-me particularmente, há qualquer coisa na tensão entre a realidade e a ficção que acho avassaladora, e esta série, para além de ter esse carácter, está muito bem conseguida, sobretudo no que toca às interpretações dos atores.

©Pedro Ivan

Malva

Álbum vens ou ficas

disponível nas plataformas digitais

Uma sugestão musical, de uma artista e amiga com quem já tive o privilégio de trabalhar, a Carolina Viana com nome artístico Malva. Fez a música do meu espetáculo anterior, Massa Mãe, e é uma artista musical maravilhosa. Tem lançado músicas da sua autoria, e é sem dúvida uma forte recomendação. As músicas de Malva são especiais, não só pela voz incrível que tem, mas porque todas elas têm mesmo a capacidade de nos tocar. São tristes, melancólicas, e ao mesmo tempo belas e inquietantes. Malva está disponível nas plataformas habituais (Spotify, YouTube, etc) e tem feito vários concertos, é uma questão de estarem atentos que o concerto vale muito a pena.

Pequeno Urso Gosto de ti

Benjamin Chaud

Orfeu Negro

É a terceira saga do Pequeno Urso e continuamos sem nos cansar de correr atrás dele. Desta vez, seguimos no encalço de uma guaxinim e do para-raios dourado que levou emprestado. Será que os descobrimos por entre as árvores e os animais da floresta? As ilustrações pormenorizadas de Benjamin Chaud passam-nos rasteiras e fazem-nos sorrir nesta perseguição. E, no final, temos uma surpresa pop-up à espera, mas, já se sabe, os finais não se revelam…

 

O Pai Natal Não Vive no Polo Norte

Afonso Cruz

Fábula

Ainda é possível acreditar no Pai Natal? Afonso Cruz escreve palavras bonitas, mas ilustra-as com desenhos que nos remetem para uma realidade bem diferente. Será a fábrica de brinquedos um lugar colorido ou um sítio negro e poluidor? Será que lá trabalham duendes ou crianças subnutridas? Os brinquedos vêm de trenó para as chaminés ou de avião para os centros comerciais? Porque, nesta altura do ano, talvez valha a pena despertar consciências e, mesmo entre os mais pequenos, contar histórias menos encantadas.

 

Explosão na Fábrica de Poemas

Kyle Lukoff e Mark Hoffmann

Lilliput

Pode a poesia atrair os mais novos? Esta é uma história divertida de uma fábrica onde se operam manivelas de metricómetros, se esvaziam caixotes de lugares-comuns e se limpam cântaros de ideias feitas. No dia em que a fábrica explode, fica em crise a indústria lírica, mas a poesia, essa, continua sempre imensa e livre. No final do livro, um glossário ajuda a descortinar algumas palavras que pareciam mais difíceis de entender.

 

Onde é que nós íamos?

Isabel Minhós Martins, Dina Mendonça e Madalena Matoso

Planeta Tangerina

As conversas são como um jogo de pingue-pongue ou, como se diz logo no início deste livro, “conversar é ir andando”. Onde é que nós íamos? explica-se com o subtítulo: Sobre a importância e o prazer de conversar. Ao longo destas páginas, as autoras vão conversando com o leitor sobre o assunto, falando dessa satisfação (que é como a das cerejas), sugerindo como fazê-lo cada vez melhor, imaginando as infinitas maneiras e formas que assumem e também propondo atividades e experiências para as pôr em prática. Pelo caminho, fazem várias perguntas – para nos pôr a pensar e a conversar.

 

Como criar uma biblioteca

Inês Fonseca Santos e André Letria

Pato Lógico

Não há retorno, quando se abre um livro. E depois outro e depois mais um. Livro a livro se faz uma biblioteca. E, como dizia Manuel António Pina, os livros também são para ter. Por perto, ao alcance, à mão de semear, para ler do princípio ao fim ou apenas folhear. Este presta homenagem a isso mesmo: ao prazer de construir uma biblioteca e de estar rodeado de livros que guardam inúmeras possibilidades, e dão largas à imaginação. Aqui, são muitos os que se acumulam até ocuparem quase as páginas inteiras, numa história contada com frases curtas e ilustrações simples e carregadas de afeto. Uma edição integrada nas celebrações dos 141 anos da Biblioteca de São Lázaro, a mais antiga biblioteca pública de Lisboa, que também vale a pena descobrir.

 

Irmãos

Marie Le Cuziat e Hua Ling Xu

Orfeu Negro

Um livro em que cada página é uma pintura e que nos leva pelos encantos de ter e de ser um irmão – mesmo com todas as diferenças e algumas lutas pelo meio. Uma história simples e bonita, que nos remete para os dias de verão, passados em família, no campo e junto ao mar.

 

Gaspar, com os pés bem assentes na Lua

Rita Taborda Duarte e Sebastião Peixoto

Caminho

Rita Taborda Duarte conta as aventuras de Gaspar, um menino sonhador, de cabeça na Lua e ideias cintilantes. E escreve esta história sem evitar palavras mais difíceis ou menos conhecidas. Ao longo do texto, vai assinalando esses termos mais “esquisitos”, mas que “estão só à espera” de ser descobertos – é a palavrodiversidade, como lhe chama. Um livro para descobrir os encantos da Lua e das palavras que não sabíamos que existiam.

 

Stop

Ricardo Henriques e Pierre Pratt

Orfeu Negro

Há quanto tempo não vemos um polícia sinaleiro na rua a orientar o trânsito? Neste livro, o agente Simões é o último exemplar da sua espécie, gesticulando entre carros e peões e salvando situações de vida ou morte ou orientando manifestações e choques ideológicos. O que lhe acontecerá quando, como todos os outros que deixámos de ver, for substituído por um semáforo? Com muito humor no texto e nas ilustrações, esta história talvez guarde um final feliz e a certeza de que um “stop”, bem gritado e gesticulado, pode mesmo salvar o mundo.

 

Tantos Insetos em Todo o Lado

Britta Teckentrup

Lilliput

Tão bonito quanto informativo, este é o livro que fala de todos aqueles “bichos” com que nos cruzamos por aí e em que não pensamos muitas vezes: os insetos. Com um “poder invisível que mantém o mundo a funcionar” e as cores mais incríveis da natureza, merecem ser conhecidos à lupa. Onde anda o besouro-tartaruga-dourado e como faz para sobreviver? Quais os recordes batidos pelo moscardo e pela cigarra? Onde vivem todos eles e como se alimentam? Um livro com muitas informações e muitos desafios para os mais curiosos.

 

Como Assustares um Monstro

Tânia Correia e Tiago M.

Oficina do Livro

Uma história para ajudar os mais pequenos a ultrapassar os medos característicos da idade e a enfrentar os monstros que imaginam escondidos por aí. Tudo começa quando Mimi ouve um barulho vindo do armário, mas acaba por perceber que, afinal, os monstros dentro dos armários também têm os seus medos. Com uma linguagem acessível e ilustrações simples, é um livro bom para ter na cabeceira, que pode contribuir para gerir emoções antes de apagar a luz.

 

A História Fora da Caixa

Sofia Fraga e Patrícia Figueiredo

Editora Minotauro

Apresenta-se como “uma carta de amor a uma mãe”, o novo livro de Sofia Fraga, ilustrado por Patrícia Figueiredo. Entre dragões, princesas, um ogre, sete anões, a Bruxa Má e a Branca de Neve e outras personagens dos contos infantis, narra a história de Xavier, que, um dia, desce do alto do seu castelo para procurar um remédio para a tristeza da mãe. Um conto com muitas caixas e muita imaginação, que acaba num abraço apertado.

 

Onde está o livro que estava aqui?

Telma Guimarães e Jana Glatt

Caminho

Do Brasil chega um livro que é quase uma lengalenga contada ao passar das páginas. A história desafia-nos a encontrarmos vários animais por entre as ilustrações coloridas, onde se descobrem também muitos outros seres e objetos que merecem um olhar atento. É também uma homenagem aos livros e ao que trazem dentro.

Com 21 anos de carreira, João Tordo é um dos mais profícuos escritores da atualidade. Em novembro, lançou o seu 21.º livro, Dias Contados, que volta a centrar-se na subcomissária Pilar Benamor. Uma excelente notícia para os seus leitores mais fiéis, já que este novo policial (o terceiro da série) explica a origem dos fantasmas de uma das suas personagens mais marcantes. Vencedor do Prémio José Saramago 2009 com o romance As Três Vidas, e do Prémio Literário Fernando Namora em 2021, com Felicidade, o autor também conta no currículo com a participação, enquanto guionista, em diversas séries de televisão, como o sucesso da Netflix Rabo de Peixe. Este ano, a sua ficção saltou do papel para os ecrãs com o filme Dulcineia, estreado em setembro, adaptado do romance O Ano Sabático. No próximo ano, está previsto o início das filmagens de uma série baseada num dos seus bestsellers, Águas Passadas (o primeiro sobre o universo Pilar Benamor).

Coro Gulbenkian

Oratória de Natal

19 de dezembro, às 20h
20 e 21 de dezembro, às 19h
Fundação Calouste Gulbenkian

Obrigatória nesta quadra festiva, a Oratória de Natal é um dos momentos altos da temporada da Gulbenkian. Escrita entre 1734 e 1735 por Johann Sebastian Bach, é uma das grandes obras-primas corais do período Barroco. O escritor já assistiu a duas oratórias, que considera serem “sempre momentos muito bonitos de celebração nesta época festiva”. A Oratória de Natal será interpretada no palco do Grande Auditório, de 19 a 21 deste mês, sob direção da nova maestrina titular do Coro Gulbenkian, Martina Batič. Para João Tordo, é “uma ocasião para ver a Orquestra Gulbenkian e o Coro Gulbenkian em palco com solistas convidados”. As sessões deste ano já estão esgotadas, mas fica a dica para comprar com muita antecedência no ano que vem.

A Origem dos Dias

romance de Miguel d’Alte
Editora: Suma de Letras (setembro, 2024)

Um livro é sempre uma excelente opção para companhia nos dias outonais, e não podia faltar nas escolhas de João Tordo. O escritor sugere a mais recente obra de Miguel d’Alte, A Origem dos Dias. “Já tinha lido o primeiro livro dele, Os Crimes do Verão de 1985, e identifiquei-me. Acho que o Miguel tem coisas muito parecidas comigo e com os meus livros, por isso gostei bastante”, confidencia. Este é o terceiro romance de Miguel d’Alte, e segue a vida de Tomás Franco, um escritor falhado que se muda para o Porto em busca do significado do passado e da literatura. “Um nome a registar para o futuro” e que o autor de Dias Contados não quis deixar de partilhar com os leitores da Agenda Cultural.

©Paulo Azevedo

Fora de portas…

Trilho da Peninha, Sintra

Às portas de Lisboa há um sítio mágico para descobrir. Trata-se do trilho da Peninha, que tem início junto do Santuário da Peninha, em Sintra, “um sítio muito bom para se caminhar, com dezenas de rotas individuais”. Esta sugestão do escritor é um apelo ao usufruto da natureza e ao exercício físico. Há passeios para vários tipos de ‘atletas’, mas as caminhadas “são longas, com uma duração mínima de uma hora”, explica. A paisagem, diz o autor, “é muito bonita, especialmente durante o inverno porque a floresta tem um ar meio transcendente, parece um cenário do Senhor dos Anéis”. Se quiser ir passear por lá ao fim-de-semana, não se admire se der de caras com João Tordo, já que este é um dos seus locais de eleição (e quem sabe se fonte de inspiração para algum dos seus livros).

 

Em cena, rodeados daquilo que o encenador Bruno Bravo define como uma “orquestra do lixo” (e não é que é mesmo, como explicaremos adiante), temos Guilherme  e Guilhermina, um casal praticamente imóvel, ele numa cadeira de rodas, ela numa de braços. Tal como aparentam, no início são “jovens namorados, velozes, sexuais e impetuosos”. Atrás deles, uma sucata de carro ganha vida e empurra-os para a vertigem do sexo e do risco. Há um acidente, mas também há um casamento e há um filho que nasce e que morre.

O tempo parece saltar dos eixos, no entanto, o local permanece o mesmo, “tão concreto como distópico”, considera Bruno Bravo. O lixo que os rodeia continua ganhando vida – é toda a “orquestra do lixo” na qual explodem lâmpadas, onde um cavalo de madeira galopa sem criança, em que música antiga se escuta através de um vetusto rádio de sala –, mas estamos já noutro ponto das suas vidas, numa espécie de velhice interminável onde ambos interpretam “um jogo de linguagem que os desloca do drama para um território mais surrealista e irónico”.

Não Vos Arrancarei A Língua/ Momentos Há Em Que As Palavras Nos Abandonam recupera o “absurdo existencialista” de Beckett, citando mais concretamente Dias Felizes (“Até nos nomes das personagens, Guilherme e Guilhermina e Willie e Winnie…”, lembra o encenador), conjugando “o trágico e o cómico, como se fossem um só verbo”. Este casal parece estar condenado à circularidade da existência, num “tempo suspenso, que não avança, preenchendo o espaço entre a juventude e a velhice em que se encontram com emoções e memórias que nunca saberemos se efetivamente viveram”.

Ao mesmo tempo, talvez a circularidade se quebre um dia e se consiga vislumbrar o futuro. Como se pode escutar na locução de um programa televisivo que, a dado momento, fixa o olhar de Guilhermina no ecrã de um velho aparelho de televisão, “belos dias são os dias de amanhã”.

Talvez, “um estranho musical”

É a primeira vez que o encenador Bruno Bravo, diretor da companhia Primeiros Sintomas, trabalha no Teatro Aberto. “Tratou-se de um convite do João Lourenço e da Vera San Payo de Lemos para encenar um texto novo, vencedor do Grande Prémio de Teatro Português, que achei, assim que o li, muito estimulante.”

Explica o encenador que, a par da “musicalidade aliciante dos diálogos”, o texto de Patrício Torres começou por conquistá-lo com as “didascálias impossíveis de materializar em palco, que incluem carros desportivos que caem do céu, incêndios descontrolados ou pernas que andam desatarraxadas do corpo, tão desafiantes para a imaginação e estimulantes para interpretações metafóricas capazes de serem exploradas dramaturgicamente”. Em parceria com Nídia Roque, Bruno Bravo iniciou esse trabalho tendo como foco “aquilo que o texto poderia sugerir”, daí afirmar que “não será a peça do autor que levamos a cena, mas a peça que o autor escreveu”, sendo isso “diferença fundamental no exercício de encenação”.

Com o cenário de Stéphane Alberto, a sonoplastia de Sérgio Delgado, o desenho de luz de Diana dos Santos e, claro, a vivacidade dos atores André Pardal e Rita Correia, esta aventura cénica vai para além das verosimilhanças da vida quotidiana, parecendo cumprir-se num sonho onde tudo parece estar imbuído de música. Ou, como escreve Bruno Bravo a concluir o texto da folha de sala, “às vezes, durante os ensaios, cheguei a pensar, é um musical. Estranho musical”.

Em 1912, Arthur Schnitzler escreveu Professor Bernhardi, um retrato impressionante e devastador do antissemitismo vigente na sociedade austríaca da época. A peça narra a história de um destacado médico judeu que nega a extrema-unção prestada por um padre católico a uma jovem paciente moribunda, após um aborto malsucedido. Professor Bernhardi acabou impedida de estrear em Viena (por isso, a estreia aconteceu em Berlim nesse mesmo ano), sendo que nenhuma explicação plausível foi dada pelos censores, embora a proibição se tenha mantido até à queda dos Habsburgos, em 1918. Pelas temáticas abordadas, é suscetível presumir o que não agradou à censura, e o certo é que a peça de Schnitzler acabou, muito pelas vicissitudes do curso da História, por se tornar um clássico da literatura dramática europeia do século XX.

Embora frequentemente representado, um interesse renovado pelo texto surgiu em 2019, quando o dramaturgo e encenador britânico Robert Icke, especialista em novas abordagens de grandes textos da literatura (os Artistas Unidos têm, atualmente em digressão pelo país, a sua visão, a meias com Duncan Macmillan, de 1984, de George Orwell), estreou em Londres, com enorme sucesso de público e de crítica, A Médica, um reboot da peça de Schnitzler. Com originalidade e agudeza, Icke impregnou o drama de alguns dos temas mais suscetíveis de gerar debate na atualidade, nomeadamente os conflitos raciais e as questões de género e de classe, e ainda apostou em introduzir um jogo dissonante entre o género e a etnia de alguns dos atores e das personagens que representam. Um exemplo dessa dissonância: o padre católico impedido pela médica de origem judaica (papel aqui interpretado por Custódia Gallego) de prestar a extrema-unção à jovem de 14 anos é negro. Ora, na versão portuguesa, respeitando as indicações de Icke, esse personagem é encarnado pelo ator Pedro Laginha.

O encenador Ricardo Neves-Neves vê o “desencontro” como um desafio do próprio teatro enquanto arte. Afinal, “quando o ator ou a atriz está em placo é aquilo que diz ser, não aquilo que efetivamente é”. Aqui, Icke usa a dissonância do género ou da raça como “uma espécie de laboratório para perceber o que é que o público realmente vê. Enquanto vemos um ator a representar uma personagem, será que estamos a ver o ator ou a ver a personagem”, questiona.

De certo modo, neste jogo teatral, parece estabelecer-se entre A Médica e o anterior espetáculo que Neves-Neves e o seu Teatro do Eléctrico apresentaram no Teatro da Trindade, uma relação não discernível à partida. “Em Noite de Reis recorria à regra do teatro isabelino e todas as personagens, femininas ou masculinas, eram representadas por homens. Aqui, tenho um elenco definido na sua diversidade, contudo a distribuição dos papéis não obedece à regra lógica” do género ou da raça, explicita o encenador.

Vale a pena, assim, recuperar a ideia de que “a representação tem como ponto de partida a ilusão, palavra essa muito ligada ao teatro”. Isso já acontecia em Noite de Reis, com o género, mas A Médica (e esse jogo da dissonância começa, desde logo, ao colocar o protagonista no feminino quando, na peça original, o Professor Bernhardi era um homem) leva o desafio para outro nível. Este texto não se resume a mexer com o espectador pelos temas que aborda, mas também por lhe puxar o tapete ao desafiá-lo a pensar de que modo é que se deixa “iludir” quando, por exemplo, uma atriz negra como Vera Cruz interpreta uma personagem “que diz ser negra porque teve uma avó negra, mas aparenta, segundo nos dizem as outras personagens, ser uma pessoa totalmente branca.”

Doenças modernas

O incidente inicial em A Médica, aquele em que a doutora Piedade Lobbo impede o padre de entrar no quarto da jovem adolescente moribunda, acaba por despoletar uma reação que ultrapassa os corredores do hospital quando a discussão entre os protagonistas surge difundida na internet, tornando-se viral. Inúmeras questões começam por ser levantadas, como o facto de Piedade Lobbo ter negado a visita do padre devido à sua origem judaica, ato agravado não só pelo conflito entre fés professadas como por racismo.

Acossada, primeiro, pelos seus pares que duvidam das suas explicações clínicas, segundo, pelas redes sociais que aclamam por uma condenação sumária pelas mais diversas (e simplistas) razões, Piedade acaba por se ver no epicentro de um furacão mediático que alimenta petições online, debates televisivos e até decisões políticas. Com a carreira profissional ferida de morte, a abordagem tóxica em torno do incidente resvala para a dimensão identitária e pessoal da vida de uma mulher branca, judia, privilegiada e profissionalmente bem-sucedida.

À visão crítica do antissemitismo da peça de Schnitzler, Icke prolonga o olhar na direção das nefastas doenças modernas que, na sua essência, as redes sociais, “em que se fala muito de coisas que se desconhecem”, propagam. Observa Neves-Neves que, a dado momento da peça, assistimos a um programa de televisão onde Piedade decide falar, pela primeira vez publicamente, do caso. Nele, antes de passar a palavra à médica, o apresentador resume o contexto ao dizer “vocês já terão de certeza a vossa opinião formada”. Portanto, após tanta “gente a gritar na internet, diga o que disser, aquela mulher já está julgada, condenada a ser trucidada pela opinião pública. E mesmo que, daí a uns dias, já o caso esteja esquecido, tudo aquilo fica como uma constante na vida de quem o sofreu”.

Para além de Custódia Gallego, Vera Cruz e Pedro Laginha, A Médica conta com um elenco de luxo constituído por Adriano Luz, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Rita Cabaço e Sandra Faleiro. A cenografia é de Fernando Ribeiro, o desenho de luz de Cristina Piedade e os figurinos de Rafaela Mapril. O espetáculo está em cena até 16 de fevereiro, com récitas de quarta a sábado às 21 horas, e aos domingos às 16h30.

Margarida Campelo é uma das mais interessantes artistas do panorama musical atual e alguém a ter debaixo de olho. Membro dos Cassete Pirata (que, no mês passado, esgotaram o Musicbox em duas datas), é também colaboradora assídua de Bruno Pernadas, Joana Espadinha, Minta & the Brook Trout ou Julie & the Carjackers. No ano passado, estreou-se a solo com Supermarket Joy, cuja sonoridade viaja pela pop, dance music, R&B ou jazz experimental. Este mês, podemos vê-la em modo natalício no palco do Musicbox quando, no dia 21, a cantora apresentar um espetáculo inédito rodeada de convidados, como Femme Fallafel, Filipe Melo, Samuel Úria e a família Isabel, Guilherme e Joana Campelo.

Fay Victor e Sam Newsome

13 de dezembro, às 19h30
Teatro do Bairro Alto (TBA)

Sendo a música o seu habitat natural, Margarida não podia deixá-la de fora das suas escolhas. A primeira sugestão musical é um concerto que acontece no próximo dia 13, no TBA, e que junta Fay Victor (cantora e compositora americana de free jazz) a Sam Newsome (saxofonista de jazz experimental). “O TBA é um sítio onde gosto muito de ir porque tem sempre uma programação de exploração e free jazz que não desilude. Não conheço Fay Victor e Sam Newsome, vou completamente à descoberta neste concerto, mas confio que vá ser um espetáculo interessante de música exploratória”, declara.

Superbox (Blu & Exile + DJ Spot + Sam the Kid dj set)

14 de dezembro, às 00h
Musicbox

A outra sugestão musical de Margarida acontece no Cais do Sodré. “Adoro o Musicbox, tem sempre uma programação disruptiva”, diz. No próximo sábado, é aqui que decorre o encerramento da temporada Superbox, uma festa dedicada à música de dança em ambiente intimista. À meia-noite, sobe ao palco a dupla norte-americana de hip hop Blu & Exile, que se estreia no nosso país com a apresentação do terceiro disco, Love (the) Ominous World. A noite conta ainda com atuações de DJ Spot e de Sam The Kid (em formato DJ set), que Margarida não quer perder: “Sou muito analfabeta no que toca ao hip hop, por isso comprei bilhetes para assistir a estas atuações, que saem da minha zona de conforto musical”. Como nota final, será nesta mesma sala que a multi-instrumentista irá apresentar o seu concerto de Natal, a 21 de dezembro.

Janela Indiscreta (1954, de Alfred Hitchcock)

15 de dezembro, às 19h30
Cinema Nimas

Inserido no ciclo Prendas de Natal, o Cinema Nimas recebe o clássico de Alfred Hitchcock  Janela Indiscreta, uma das mais aclamadas obras do realizador britânico. A ação acompanha o fotógrafo L. B. Jeffries que, por estar imobilizado com uma perna engessada, decide passar o tempo a bisbilhotar a vida dos vizinhos através da janela das traseiras do seu apartamento. “Janela Indiscreta é um filme que adoro e que me fez muita companhia durante a pandemia, mas que nunca tive oportunidade de ver em grande tela. Gosto muito de Hitchcock e das bandas sonoras dos seus filmes, e adorava ir a esta sessão no Nimas, que é um espaço de que gosto muito”, refere.

William Klein – O mundo inteiro é um palco

Até 3 de fevereiro de 2025

Anthony McCall – Rooms

Até 17 de março de 2025
MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia

Para Margarida, “o MAAT é um sítio lindo”, e, por isso, lamenta nunca ter “muitas oportunidades para ver exposições”. Fã confessa de fotografia, a artista sugere uma visita à exposição de William Klein (1926-2022), um dos fotógrafos mais influentes da segunda metade do século XX. A mostra inclui fotografias de rua, moda, cinema e produção editorial que transportam o público até Nova Iorque, Paris, Roma, Moscovo e Tóquio. Ainda no MAAT, Margarida aconselha a exposição do artista britânico Anthony McCall. Chama-se Rooms e inclui quatro instalações fílmicas que fluem no espaço como esculturas imateriais de luz e fumo, mas aparentemente tridimensionais. “Uma exposição de luzes é uma coisa pouco comum, e deixou-me muito curiosa”, confessa.

As mudanças começam a notar-se ainda na rua. O Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, na Praça das Amoreiras, voltou a ganhar o amarelo original com que foi pintado há 30 anos e tem agora o nome em grandes letras na fachada. Neste aniversário redondo, já sob a direção do curador Nuno Faria, nomeado em fevereiro deste ano, o museu repensa-se e reinventa-se, seguindo a história do lugar onde nasceu, a antiga Fábrica de Tecidos de Seda, e também a história de amor que lhe deu origem.

É com o projeto expositivo 331 Amoreiras em Metamorfose, que se estende até ao final de 2025, que as salas do Arpad Szenes – Vieira da Silva ganham nova vida. O título remete para o número de árvores mandadas plantar pelo Marquês de Pombal para abastecer o processo de transformação e produção das fábricas de seda construídas na zona entre 1760 e 1770, no âmbito do plano de renovação urbanística de Lisboa, posterior ao terramoto de 1755. A ideia de “metamorfose” que inspirou Nuno Faria reflete-se tanto nas obras escolhidas, como na forma da mostra, que se vai mutando várias vezes ao longo do ano. “Será a mesma exposição, mas com cinco momentos diferentes, como se fossem uma gradação cromática”, descreve o diretor.

Depois de passada a loja do museu, agora logo à entrada e com um novo design assinado por Fernando Brízio, as escadas levam-nos àquilo a que Faria chama “uma ampla constelação de artistas, portugueses e estrangeiros, contemporâneos ou não de Maria Helena Vieira da Silva e de Arpad Szenes, cujas peças dialogam num espaço comum”. 331 Amoreiras em Metamorfose pretende propor novas leituras dos universos artísticos do casal e convocar outros autores a tecer diálogos com as obras e o lugar. “A ideia é contar histórias – não propriamente a história da arte, mas outras: sobre este edifício, onde se aprendia o ofício da tecelagem, sobre as 331 amoreiras, um número poético porque estranho, que alimentavam todo o ecossistema dos têxteis… É desse ecossistema que queremos falar, da solidariedade entre as espécies vegetal, animal e humana. Acredito que olhando para essas outras espécies, aprendemos sobre nós próprios”, explica o curador.

Sem perder o fio à meada

À entrada, no patamar das escadas, uma escultura de Frida Baranek, artista brasileira que vive em Lisboa, ocupa um espaço que, a partir de agora, terá, não pintura, mas intervenções escultóricas. É ali que há de estar, depois, uma peça de Sara e André, criada no ateliê de Vieira da Silva propositadamente para esta exposição, e, mais tarde, um trabalho de Vera Mota. Na sala principal, tiraram-se divisórias e destaparam-se as janelas, deixando entrar a luz natural, para dar outro conforto à visita. “O museu abriu-se à luz. É literal, mas acho que resume bem o que aqui quisemos fazer”, nota Nuno Faria. Nas paredes, as pinturas de Vieira e de Arpad convivem, lado a lado, como desejava a pintora, mas agora também com as de outros artistas. Nesta primeira fase, são quase três dezenas os nomes que se reúnem: Álvaro Lapa, Ana Hatherly, Ângelo de Sousa, Dominguez Alvarez, Fernando Marques Penteado, Lourdes Castro, Mário Cesariny, Sonia Delaunay, entre outros.

Logo ao início, duas crisálidas de Bruno Pacheco dialogam com Le Retour d’ Orphée, quadro que Vieira pintou depois da morte de Arpad. Mais à frente, havemos de descobrir desenhos e pinturas do artista húngaro, que teve nas borboletas um dos temas recorrentes da sua obra. Ou aquele desenho em que retrata a mulher no meio de tecidos, transformando-a quase num “bicho”, nome carinhoso pelo qual a chamava. “O tema da metamorfose é intemporal”, afirma Faria, sublinhando o interesse, nesta mostra, pelas mudanças dos corpos, de Ovídio aos dias de hoje.

O têxtil revela-se outro dos temas que vai atravessando a exposição, em obras como as de Robert Rauschenberg, Ana Jotta, Fernanda Fragateiro, Mumtazz, Tomba ou os estudos para tapetes de Vieira da Silva (uma das raras vezes em que assina com o apelido do marido, MH Szenes) ou, ainda, o vestido bordado a seda, oferecido pela pintora a Lourdes Castro (também encontramos uma serigrafia de Lourdes Castro oferecida a Vieira, em 1974). “A perceção de que as coisas têm uma textura parece-me fundamental. O material é muito importante para nos ligarmos à vida. Acredito que as realidades virtuais nos museus são desviantes e podem pôr em causa a apetência para apreciar uma pintura. O museu tem de ser político, não podemos ficar só no plano do estético”, defende o diretor.

“O museu convoca uma ideia de escuta muito forte e isso liga-nos aos outros”, continua Nuno Faria, enquanto fala, entusiasmado, de cada uma das peças expostas nas paredes. Montada “como um poema com rimas”, 331 Amoreiras em Metamorfose permite fazer cruzamentos de artistas, mostrando alguns dos seus trabalhos mais conhecidos e simultaneamente possibilitando inesperadas descobertas. Também por isso, em todos os cinco momentos da exposição, haverá visitas guiadas por alguns dos que aqui estão representados – para que, nesta trama, ninguém perca o fio à meada.

CICLOS

São cinco, os momentos da exposição 331 Amoreiras em Metamorfose

Até 9 fevereiro
[ I ] O Tecido do Mundo
Lançamento dos temas principais do projeto expositivo: “a metamorfose, a árvore, a ressonância do arcaico no contemporâneo ou o arcaico como contemporâneo, a fusão entre humano, vegetal e animal, a transmissão oral (e o papel das mulheres nessa tarefa de transmissão e de poetização da memória), a tematização do têxtil na pintura e no desenho, assim como a forma como o têxtil é cada vez mais assumido como central na produção artística contemporânea”.

13 fevereiro a 4 maio
[ II ] Uma Estreita Lacuna
A relação, por vezes metamórfica e fusional, entre a palavra e a imagem, a relevância do texto e a relação texto-têxtil: “A importância crucial do poético para as nossas vidas. O mesmo é dizer: da escuta. Estar à escuta do mundo e dos outros”.

8 maio a 13 julho
[ III ] Histórias de Bichos da Seda
Variações de metamorfoses: “a magia, os transformismos, os romantismos e o animismo”.

17 julho a 28 setembro
[ IV ] Notas sobre a Melodia das Coisas
São três, os motes: oralidade, auralidade e coralidade (de coral e de coro), ou “a cor, o silêncio dos objetos compostos em natureza-morta”.

2 outubro a 31 dezembro
[ V ] Ascensão: Vers la Lumière
“Uma montagem ao branco”, com pinturas alvas, muitas dos últimos anos de Vieira da Silva. O título, evocativo da sua última pintura, dá o tom para “um momento marcado pela litania, o lamento, mas também a beleza do reencontro para além da vida”. “A condição póstuma da arte é uma das suas mais fortes vocações e condições. Embora, muitas vezes, o esqueçamos”, aponta o diretor do museu, Nuno Faria.

Muitas pessoas defendem que a liberdade é o valor supremo da vida humana. De que forma a dança pode ser um exercício de liberdade, e em concreto nesta sua nova coreografia?

O que sinto é que esta coreografia surge num contexto de liberdade, mas é sobretudo uma dança de libertação. Uma celebração da libertação. A nossa liberdade está sempre condicionada numa relação espaço-tempo. O que pretendo com estes 17 intérpretes é que eles se sintam livres enquanto decorre o espetáculo. Gosto muito de falar da palavra “jogo” quando crio uma coreografia. Acho que tem a ver com o meu percurso no teatro. O que pretendo, além de todas as coisas fixas, é que exista um espaço onde eles possam jogar. Não no sentido de liberdade total: hoje fazem uma coisa, amanhã outra. Na realidade, existe uma estrutura, e dentro dessa estrutura podem ir jogando de forma diferente. Foi muito importante para mim perceber com os bailarinos que estávamos a fazer uma peça cujo tema era a liberdade e que eles tinham de ter esse espaço.

O título desta nova criação glosa um verso de José Mário Branco no tema Inquietação. Este sentimento de desassossego não será uma condição intrínseca às nossas vidas com os outros?

É sempre, mas há contextos mais propícios a isso que outros. Sinto que vivemos um momento politicamente difícil. Essa inquietação está hoje muito mais presente, porque vivemos sob uma forma de ameaça, o mundo todo. Acabámos de ter eleições, e Trump volta à Casa Branca.

Um leigo dirá que coreografar uma massa de corpos representa um maior desafio do que fazê-lo para um grupo mais restrito. Qual é para si o grau de verdade desta generalização?

É mais difícil coreografar para mais gente, porque acima de tudo trabalho com pessoas, com bailarinos, que não são máquinas. Aqui, são 17 pessoas com especificidades muito distintas; com egos muito distintos; gerir uma equipa de 17 pessoas ou gerir três é muito diferente. É um grande desafio gerir este grupo de bailarinos, também pela condição em que estão: uma peça que tem por ponto de partida trabalharmos através da nudez como ponto máximo de libertação, em que existe uma enorme generosidade de todos eles: tem sido incrível todo o processo de criação, o pulsar deste coro em cena, essa presença e a sua expressão.

©João Octávio Peixoto

O corpo nu é uma figura de estilo há muito empregue pela dança. Em Há qualquer coisa prestes a acontecer surge “um corpo de baile” despido em palco. Esta opção também se liga ao conceito de liberdade que pretende explorar nesta coreografia? Um corpo nu é uma figura mais livre porque despida de signos que aprisionam a sua identidade específica?

Acho que é isso. A opção foi a de tirar tudo o que é acessório; tudo o que pudesse dar indicações de classe social, de estatuto, de tudo. Pormo-nos num plano igualitário: somos todos feitos de carne, ossos, veias, sangue, cabelos. Criar esta massa humana sem que houvesse outra camada por cima, outras informações. A nudez é usada na dança há muitos anos, mas nas artes plásticas existe desde sempre. Isso tem sido também uma fonte de inspiração para mim, pois sou licenciado em pintura. A nudez faz parte da pintura e da escultura há séculos e séculos, e apeteceu-me voltar a esse lugar.

De trabalho em trabalho procura coisas diferentes nos bailarinos que traz para as suas criações, ou passaram a existir componentes específicas que se repetem?

Em cada projeto tento encontrar os intérpretes ideais para ele. Tenho feito projetos muito distintos, desde ter trabalhado com adolescentes (Margem, 2018) porque deviam ser eles a ter voz sobre o tema; ou recentemente no Corpo Clandestino (2022), em que trabalhei com corpos não-normativos, ou seja, que não correspondiam ao meu lugar de fala, e em que encontrei pessoas para quem aquele era, justamente, o seu. O que não quer dizer que não existam intérpretes frequentes nas minhas peças. No caso específico de Há qualquer coisa prestes a acontecer foi o momento de trabalhar com cúmplices com quem não colaborava há muito tempo. Para além de ter feito uma audição, em que escolhi grande parte do elenco, tenho esses intérpretes com os quais já havia trabalhado.

O que explica a centralidade de cidades como o Porto e Guimarães na produção e apresentação de dança contemporânea no nosso país?

Existe no Porto uma estrutura muito importante que é a Companhia Instável, que apoia muitos jovens criadores, e que antes se denominava de Núcleo de Experimentação Coreográfica, que foi de onde eu surgi. Sinto que existe uma comunidade muito forte da dança no norte do país. O festival GUIdance já tem um peso muito grande no panorama artístico nacional e o festival Dias da Dança veio trazer um fôlego gigantesco à dança, criando uma rede de espetáculos a norte.

O facto de a dança ser como a música, uma linguagem universal sem palavras, facilita a sua circulação pelo mundo?

Acho que facilita bastante e a prova disso é que a dança circula mais que o teatro. Mas também não considero que a dança seja uma linguagem universal. Entre Ocidente e Oriente os códigos são muito diferentes culturalmente. Mas sim, é mais global e chega a muito mais gente. A palavra assume um peso e uma importância determinante. A partir do momento em que não existem palavras há muito mais espaço para o espectador construir a sua própria narrativa, para se relacionar com aquilo que está a ver.

Quais são os requisitos mínimos no seu trabalho para começar a ensaiar com os bailarinos? Existe um momento do processo criativo em que se considera pronto para tal?

Toda a produção inerente a um projeto é um trabalho gigantesco e por vezes muito invisível, ao ponto de algumas pessoas que trabalham na área não terem consciência dele. Depois de conseguirmos os financiamentos, as condições logísticas, as salas de ensaios, penso que estou pronto quando chego ao estúdio, quando me encontro com os bailarinos. Estou disponível para aquelas pessoas, mas depois tem de se dar esse encontro. Para mim, é muito importante construir o coletivo. Trabalhar em cocriação com os intérpretes. Não chego com uma linguagem e começo a passar o movimento ou frases coreográficas. Lanço ideias ou temas e a partir daí começamos a construir. Inicialmente, eu com eles a trabalhar fisicamente, porque me interessa perceber a energia dos próprios bailarinos. Dançar com eles, não ser um outsider que se limita a ver de fora. Depois lentamente começo a afastar-me e começo a vê-los. Acho que nesse momento começo a estar pronto.

Consegue extravasar do circuito fechado que o trabalho artístico e intelectual determina, para retirar do mundo e do quotidiano um conhecimento empírico?

Confesso que sou um workaholic. Sou viciado no meu trabalho e vivo numa ânsia de aprender coisas. Vivo na angústia de não conseguir aprender tudo, de estar nos sítios todos, de responder a todas as solicitações. Acabo ficando circunscrito às pessoas com quem me vou relacionando. Mas tenho tido a felicidade de encontrar projetos que me vão abrindo mundos. Quando faço um projeto de três anos num contexto social em sítios de Almada, Moita, Barreiro ou Marvila, aqui em Lisboa, vou para esses territórios e confronto-me com aquelas realidades. Quando trabalho com miúdos de instituições. Quando trabalho com pessoas não-normativas que me colocam todas as questões, não só de locomoção ou do olhar do outro. De certa forma vou alargando o meu mundo. E quando estamos a trabalhar não estamos só a dançar. Trocamos ideias, discutimos conceitos, ouvimos outros pontos de vista. Tenho tido a sorte de poder decidir que projetos quero fazer, com que realidades me quero cruzar. Tenho-me forçado a alargar o meu universo, estando mais consciente do que se passa no mundo em geral. Se queremos espelhar o mundo através da dança, temos de o conhecer. Se quero ter uma dança com humanidade, tenho de perceber que humanidade é esta que me rodeia.

A leitura da sua biografia artística deixa a ideia de que aproveitou todas as oportunidades que se lhe apresentaram. Foi mesmo assim que aconteceu?

Tentei aproveitar todas, mas algumas não consegui, embora não tenha arrependimentos. Nem sempre no meu percurso tudo foi facilitado. Ouvi muitos nãos. Algumas coisas não consegui fazer, também por não ser o momento certo. Gosto muito de trabalhar porque tenho muito prazer a fazer o que faço. Estar a criar este espetáculo, Há qualquer coisa prestes a acontecer, faz com que me sinta um privilegiado. Poder estar todos os dias num estúdio com mais de 17 pessoas (19 bailarinos no total, contando com os dois estagiários), a sentir a sua entrega diária.

Que tipo de inquietações pairaram sobre a estrutura de produção que fundou, a Nome Próprio, em mais de 20 anos de existência?

Ao nível do trabalho tem sido muito regular e contínuo, com vários convites como no caso deste espetáculo que partiu de uma proposta do Centro Cultural de Belém, apesar da estreia não ser em Lisboa, mas em Aveiro [a 6 de dezembro], por se tratar da Capital Portuguesa da Cultura. Mas houve momentos em que não recebemos apoio da Direção-geral das Artes e sentimo-nos um bocadinho desamparados. Nessas alturas foi mais complicado persistir e resistir. Não por falta de trabalho, mas pelas condições em que certos trabalhos foram feitos. Este projeto com um total de 19 bailarinos é gigantesco para uma estrutura independente. A logística que implica é imensa para uma organização que tem três produtoras, sendo que uma é estagiária. Os recursos humanos são escassos para o volume de trabalho que tenho. Gostava de poder ter mais gente a colaborar, podendo dar-lhes as condições necessárias.

Havia o Oslo, o Copenhaga, o Liverpool, o Roterdão, o Hamburgo, o Tokyo e o Jamaica. Cada bar e discoteca do Cais do Sodré estava batizado com o nome de uma cidade ou país – até que, em 2006, debaixo do arco sobre o qual passa a rua do Alecrim, o Texas deu lugar ao Musicbox. Naquele armazém do século XIX com paredes e teto de pedra, abria-se uma caixa de música, com concertos e sets de djs. Nestes 18 anos muito mudou por ali, mas no número 24 da Rua Nova do Carvalho, o espírito mantém-se o mesmo: organizar encontros entre pessoas, promovendo a música ao vivo e trazendo talentos emergentes e nomes consagrados nacionais e internacionais.

Este ano, a celebração é feita com cinco dias de concertos e clubbing, de 4 a 8 de dezembro. Por lá passam B Fachada e Romeu Bairos; Fidju Kitxora e Elida Almeida; Suzana e Mynda Guevara; Dealema e Azia; Black Bombaim e Pedro Alves Sousa; Jasmim, A Sul e Gorjão; e o Conjunto Cuca Monga; assim como o DJ Fantasia, o DJ set da Tabanka Records com Mama Demba, o DJ set de Hip Hop Sou Eu e o DJ set de Lovers & Lollypops, com artistas como Xavbeatz, Soundpreta, João Gomes, Lady G Brown, Mike Stellar, King Kami e A Missa do Papi. Uma programação feita de cruzamentos por este ser um espaço que sempre os incentivou. “É o que fazemos há 18 anos: proporcionar encontros. E encontros ao vivo, o que é muito importante. Tem sido a nossa história e, por isso, pegámos nesta lógica para a celebração”, explica Gonçalo Riscado, diretor da CTL – Cultural Trend Lisbon, a estrutura de produção por detrás do Musicbox.

Quando há um ano lhe perguntaram se a sala do Cais do Sodré estaria preparada para a maioridade, Gonçalo disse que não. Hoje, ri-se quando voltamos à mesma pergunta. “Continuamos a não estar prontos, porque se a maioridade significa responsabilidade, o Musicbox deve continuar a ser irresponsável e a ser irreverente, deve continuar a arriscar. Isso é que faz sentido e também é isso que traz esta longevidade. Fomo-nos mantendo fiéis àquilo em que acreditamos, sem ir em modas ou sem nos rendermos a soluções que nos descaracterizassem. E isso, se calhar, é um anti-maioridade, não é? No sentido de não pensarmos que fizemos uma construção e que agora podemos viver à sombra do que fizemos ou tornar as coisas muito sérias. A nossa luta é manter o Musicbox irreverente e sustentável.”

Aldeia gaulesa

Longe vão os tempos em que, num Cais de Sodré de má fama, Gonçalo Riscado e Alex Cortez, músico dos Rádio Macau, passaram em frente à porta fechada do Texas Bar e tiveram a ideia de ali criar um lugar de música ao vivo, no espírito dos saudosos Rock Rendez-Vous e Johnny Guitar. Em dezembro de 2006, o Musicbox abriu, pela primeira vez, com um concerto dos 1 Uik Project, de Lil’ John e Kalaf, e começou a atrair os amantes da música e todo um público que antes se ficava pelo Bairro Alto.

Aos poucos, as ruas foram ganhando outros ritmos e vivências, muito por causa da programação quase diária que era organizada. “Desde o início, havia a ideia de poder ter uma estrutura que fizesse vários projetos em diferentes áreas artísticas, tendo o Musicbox como o pulmão que sustentava e unia as coisas. Muito rapidamente fomos fazendo outras coisas, como os Musicbox Club Docs para a RTP, o Lisboa Capital da República Popular, o Festival Silêncio, que era um acontecimento de partilha a partir da palavra e que criava uma união entre quem frequentava, vivia e trabalhava na zona do Cais do Sodré”, recorda Gonçalo Riscado, sublinhando o quão importante é existir uma estrutura sólida por detrás da sala de espetáculos que se financia através de vários projetos e sem apoios públicos – um deles, há de voltar a nascer no próximo ano, no Beato: a Casa do Capitão, pensada para ser um espaço com atividade regular em várias áreas artísticas, de dia e de noite.

Ao longo destes 18 anos, o Musicbox conseguiu resistir às contrariedades: sobreviveu à pandemia, graças à solidez da CTL e ao posterior aumento do turismo, tal como tem sido imune à especulação imobiliária, uma vez que o edifício pertence à produtora. “Em 2006, conseguimos um bom crédito bancário e adquirimos o prédio. É a única razão pela qual não tido pressão para sair, como tem acontecido noutros espaços”, confirma Gonçalo. “Quando fomos para ali, a zona não era habitacional, mas sim de comércio em decadência ou encerrado, de escritórios fechados e de vida noturna. Houve um novo fôlego com o Musicbox e com a recuperação de outros espaços que trouxeram uma movimentação de pessoas muito interessante. Havia uma altura em que a grande maioria das pessoas que trabalhava no Musicbox vivia no Cais do Sodré. Havia tantas casas disponíveis, que passou a ser um bairro habitado e com imensa atividade. Mas, tão rápido foi essa movimentação quanto o processo de gentrificação”, conta.

Hoje, em plena “rua cor-de-rosa”, o Musicbox é uma espécie de aldeia gaulesa em pleno império romano, rodeado de bares e discotecas mais virados para o turismo. “O excesso de turistificação faz com que o Musicbox se sinta como um espaço resistente, mas para nós continua a fazer sentido estar no centro. É com alguma tristeza que assistimos ao que acontece naquele bairro, pensando no que podia ter sido e no que se está a tornar”, afirma Gonçalo Riscado.

“Lisboa não tem conseguido olhar para a animação noturna nem regulá-la para a proteger. Continuo a ter dificuldade em perceber como, nos anos 20 do século XXI, não há um pensamento estratégico sobre a vida noturna de uma cidade. Estes lugares são os pontos de encontro principais das pessoas, são fundamentais para as dinâmicas culturais da cidade, para as comunidades se juntarem, para a cena local florescer. Isto é importante para quem vive na cidade e também para quem está de visita e não quer vir para uma cidade morta ou uma cidade museu ou uma cidade de vida barata como único atrativo. Atualmente há muito mais espaços e muito mais diversidade, mas tudo isso está a ser empurrado para periferias. É como se houvesse uma promessa de que esta cidade pode representar uma série de coisas, mas depois se dificulta a sua concretização. E o Cais do Sodré é um paradigma disto tudo.”

Mesa farta

Quem passa a porta debaixo do arco, encontra, quase diariamente, um cartaz pensado ao detalhe. Para Gonçalo Riscado, é importante não perder essa regularidade. “Acredito que devemos combater a sazonalidade da agenda cultural. Nada contra festivais, mas a cidade não pode estar refém deles. Têm de existir pontos de encontro, de debate, de programação de música, cinema, teatro… Só assim conseguimos construir comunidade ao longo de todo o ano.”

Parte da equipa da CTL – Cultural Trend Lisbon, a estrutura de produção por detrás do Musicbox ©Manuel Rodrigues Levita/CML-ACL

 

O Musicbox tem sempre um calendário preenchido e, lá dentro, tanto podemos encontrar artistas a dar os primeiros passos como outros já consagrados. Devem ser poucas as bandas de música ou cantores e djs que aqui não tenham atuado. Nesta morada, têm cabido todas as pessoas que gostam de música – as que a criam, mas também as que a seguem ou as que vêm à descoberta. Por isso, na newsletter que anuncia estes dias de festa, a jornalista Joana Canela escreve: “O aniversário do Musicbox é como uma mesa farta cheia de amigos. Arranja-se sempre espaço para mais um nesta sala (…). Nesta grande família cabem os primos do hip-hop, o tio do techno, os filhos do rock e todas as futuras e atuais gerações, nichos, coletivos, grupos de amigos e pessoas singulares. Até o turista pode vir jantar connosco. No menu musical, o buffet sempre a escaldar com novos pratos, ora mais modernos e ousados, ora mais tradicionais. E aquela sensação de provar algo nunca degustado: aquelas apetitosas primeiras vezes. A verdade que ninguém conta é que as seguintes são ainda melhores.”

Nestes 18 anos, muito pode ter mudado e muitos de nós podemos ter crescido (e envelhecido), mas o Musicbox continua ali para nos lembrar que podemos ser eternamente anti-maiores.

Chegou às livrarias em outubro, o novo livro de Isabel Lucas. Conversas com escritores, editado pela Companhia das Letras, reúne entrevistas a 15 escritores, conduzidas pela jornalista e crítica literária, quase todas publicadas no Ípsilon, o suplemento do jornal Público dedicado às artes. Elena Ferrante, Paul Auster, Zadie Smith, Patti Smith, Javier Marías, Salman Rushdie, Peter Handke, Don DeLillo, Julian Barnes, Jonathan Franzen e Enrique Vila-Matas são algumas das pessoas com quem se sentou para conversar.

331 Amoreiras em Metamorfose

Até 31 dezembro 2025
Museu Arpad Szenes Vieira da Silva

Na celebração dos 30 anos do Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, Isabel Lucas sugere uma visita à nova exposição. “Evoca-se a memória do edifício e do próprio museu, com obras a remeter para o universo animal e vegetal, e para o amor cantado por Ovídio. São muitos corpos, de muitas espécies, num canto quase inicial”, descreve. “É também o regresso à fachada dos nomes dos dois artistas, da autoria de Pedro Falcão, onde antes de 1994 estavam gravadas as letras ‘Fábrica de Tecidos de Seda’”, acrescenta, lembrando que o museu “fica num dos recantos mais bonitos de Lisboa, o Jardim das Amoreiras”.

Livraria da Travessa

Como não podia deixar de ser, a jornalista elege as suas livrarias preferidas em Lisboa. Da Livraria da Travessa, na Rua da Escola Politécnica, diz: “Os livros bem exibidos, bem organizados, numa seleção cuidada, vasta, que parece resistir a pressões de fluxo rápido que fazem parte da gestão de grandes cadeias, da necessidade de escoar. A Travessa é um exemplo de bem cuidar dos livros e de quem lê. Além disso, traz edições do Brasil, reveladoras de outro cuidado: o editorial, com objetos literários que apetece namorar, mesmo quando não os podemos levar connosco”. A esta, junta, ainda, na sua lista de eleição, a Tigre de Papel, a Snob, a Poesia Incompleta e a Almedina do Rato.

Cinema Ideal

Em Lisboa, não há como o Ideal, afiança Isabel Lucas. “O cinema no meio da cidade é um refúgio com a garantia de não ver maus filmes”, afirma. “Salas como estas foram desaparecendo e as que ficam – poucas – são um benesse, fora de centros comerciais ou de aglomerados ou de pipocas – nada contra, mas prefiro não. Estes lugares ficam na memória, saber onde se viu um filme que marca é um dado que ajuda a retê-lo. Dar o passo para passar a porta do Ideal, ali no Loreto, é um dos gestos que me dão muito prazer enquanto lisboeta adotada.”

Mercado de Alvalade

Isabel Lucas gosta de mercados e conta que, sempre que viaja, vai em busca do mercado local mais próximo. “Os produtos expostos, os aromas, as compras, o ruído dão-me um retrato muito vivo e rápido, uma boa maneira de aproximação. Procuro comprar em mercados e falar com a peixeira do ‘meu’ mercado, o de Alvalade, é uma boa sensação, a de estar em casa.”

Café Fermenta

Também em Alvalade, mais precisamente no bairro de São Miguel, a jornalista frequenta o café Fermenta. “Sobretudo quando dá para estar na esplanada, permite ter o silêncio que vai escasseando em Lisboa. As conversas cortadas de quem passa, o cheiro a croissants frescos, o sol de outono de manhã, um sossego que permite ler enquanto se bebe um bom café, longo, de preferência. E ainda há livros e revistas usados à disposição”, conta. Outra opção, não muito longe, acrescenta, é o Fora do Saco, na Avenida de Roma, “outro bom recanto, sobretudo de porta fechada, com o pão, os cozinhados das manas, a pequena mercearia”.

Caminhar pela cidade

“Nas cidades gosto de caminhar”, revela Isabel, garantindo que, em Lisboa, sempre que pode, é a pé que se desloca. “Os altos e baixos lisboetas levam por vezes a lugares e vistas que surpreendem mesmo quem vive há muito tempo na cidade. Um vislumbre de rio, um beco, a sensação de partilhar alguma intimidade através de um pátio ou de uma janela entreaberta. E isto enquanto se resolvem textos, se pensa, ou simplesmente se anda sem saber muito bem para onde.”

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