“É como estar fechado dentro de um sepulcro a assistir a um conto infantil”, diz Ricardo Aibéo, o ator, agora encenador, que reuniu quatro colegas, “e companheiros ao longo de 20 anos na Cornucópia” – Duarte Guimarães, Rita Durão, Sofia Marques e Dinis Gomes –, sobre o espetáculo que dirige a partir de uma das três peças para marionetas de Maurice Maeterlinck.

Carregado de simbolismo, o texto do nobelizado autor belga, que atingiu a fama com Pelléas et Melisande (peça da qual Debussy fez uma das suas óperas mais famosas), conta a história de Tintagiles (Dinis Gomes), uma criança que regressa à sua ilha natal, ensombrada pelo poder oculto de uma Rainha. Recebido pela irmã mais velha, Ygraine (Duarte Guimarães), depressa o jovem experiencia o negrume que se abateu sobre aquele pequeno mundo e o destino fatídico que o espera, mesmo que Bellangère (Rita Durão) e o velho mestre Anglovale (Sofia Marques) tudo façam para o contrariar.

Como sublinha Aibéo, “a história é apenas um alibi para Maeterlinck promover um exercício teatral”, em que importa mais o que “a imaginação alcança do que aquilo que se vê”. E os atores assumem-se como marionetas, sem género, nem condicionalismos, peças dispostas a serem “movidas” por uma personagem não corpórea, mas omnipresente, que é a Rainha, manipuladora de todas as existências, e até do silêncio, “a música de fundo deste espetáculo”.

Em que momento da tua vida percebeste que irias ser atriz?

Foi uma descoberta que surgiu com o tempo. Em criança nunca me passou pela cabeça que queria ser atriz. Sem que consiga entender muito bem porquê, andava eu na escola secundária, e vejo numa revista o anúncio de abertura de audições para a Escola Profissional de Teatro de Cascais. Decidi experimentar e acabei por ficar. A partir dai, as coisas foram surgindo e, depois da minha formação, acabei por ficar cerca de um ano e meio no Teatro Experimental de Cascais (TEC), com o Carlos Avillez. Posteriormente, decidi-me pela licenciatura e ingressei na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC).

Portanto, não foi a consumação de um sonho de criança…

[risos] Nada mesmo. É verdade que me divertia imenso a fazer teatro na escola, mas nunca pensei que fosse esse o meu futuro.

Em 2010 estreias-te numa produção do TEC…

É verdade, mas, apesar de circular por todo o lado que foi em As Bruxas de Salém [de Arthur Miller], a minha estreia fez-se com A Nossa Cidade, de Thornton Wilder, um espetáculo dirigido pelo Carlos, e que serviu como exercício de conclusão do curso, culminando três anos muito importantes na minha vida, tanto a nível profissional como pessoal.

Seguindo-se esse período no TEC, a tua carreira foi absolutamente vertiginosa, multiplicando-se a presença em produções de algumas das mais conceituadas companhias de teatro independente do país. Foi uma ascensão medida, controlada?

Há dias falava nisso a um amigo e confessava que a maior virtude foi não pensar, foi não tomar consciência de que tudo estava a acontecer ao mesmo tempo. Foram, de facto, muitos projetos em simultâneo, num curto espaço de tempo, e com maior ou menor dificuldade fui dando conta deles. Considero que, acima de tudo, tive sorte: as pessoas conheceram-me e quiseram trabalhar comigo…

Uma atriz afortunada.

Sem dúvida. [risos]

Referente a um trabalho de 2016, foste este ano distinguida com o Prémio da Crítica. O que é que mudou em ti?

Acima de tudo, fico profundamente grata pela Associação Portuguesa de Críticos de Teatro achar-me merecedora do prémio, ainda mais porque sucedo à Cristina Reis, uma pessoa que muito admiro e tenho como amiga. Comoveu-me, emocionou-me, mas não mudou nada na minha vida… A profissão continua a ser instável e não me garante, certamente, que daqui a uns seis meses tenha trabalho. Portanto, o que mexeu comigo foi a felicidade de saber que as pessoas viram ao espetáculo, gostaram e, de certa forma, estive à altura dele.

O espetáculo pelo qual foste distinguida acaba por ficar marcado por ter sido a última produção de palco da Cornucópia, uma casa que, aliás, conheceste muito bem…

Também por isso reconheço que este é um prémio que sabe muito bem. Música foi um espetáculo muito duro, muito difícil, que me marcou e desafiou como nenhum outro. Independentemente da distinção, é um espetáculo que guardarei para sempre na memória.

Também foi na Cornucópia que nasceu o “teu” Teatro da Cidade, uma companhia que fundaste com o Bernardo Souto, o Guilherme Gomes, a Nídia Roque e o João Reixa. Conte-nos um pouco da história desse projeto.

Para mim, continua a fazer sentido estar com essas pessoas: com o Bernardo e a Nídia estou desde Cascais e, depois na ESTC, onde conhecemos o Guilherme e o João. A seguir, na Cornucópia, voltámos a encontrarmo-nos, e nasce a vontade de criar qualquer coisa nossa. Acaba por ser lá que apresentámos a nossa primeira criação, Os Justos, de Albert Camus, um texto sugerido pelo Luís Lima Barreto. Agora, estivemos na Ribeira com Topografia, espetáculo que pretendemos levar pelo país, estando já confirmada a ida ao Festival de Almada, em julho.

“Considero que tive sorte: as pessoas conheceram-me e quiseram trabalhar comigo.”

 

Em maio, sobes ao palco com O Cinema, de Annie Baker. Que olhar tens sobre a peça?

É uma peça sobre três trabalhadores num velho cinema e o modo como eles vivem o dia-a-dia. Acima de tudo, o texto fala de como a necessidade de subsistência interfere no relacionamento entre as pessoas. Durante algum tempo reconhecemos a cumplicidade, e até a amizade entre aqueles personagens. Isso é muito bonito! Até que tudo é posto em causa, porque o que realmente importa é pagar a renda e ter algum dinheiro para comer. Afinal, é por isso mesmo que suportam aquele emprego.

Estas personagens parecem ter uma autenticidade que nos faz mesmo duvidar da ficção.

Acho que é precisamente isso que o Pedro [Carraca] queria ao colocar, literalmente, a plateia do cinema no palco. O texto salta do quotidiano para ali: eles falam da sua realidade e dos seus problemas, com a sua linguagem. E isso é muito, muito autêntico.

Depois de Punk Rock, de Simon Stephens, voltas a ser dirigida pelo Pedro Carraca.

É verdade. São peças muito diferentes, mas é sempre bom trabalhar com alguém com quem temos uma relação muito honesta e de mútua confiança. Sente-se isso no trabalho…

E, por falar em cinema, dentro em breve poderemos ver-te no grande ecrã…

Será no novo filme do Sérgio Tréfaut, baseado no romance Seara de Vento, de Manuel da Fonseca. Foi a minha primeira experiência a sério no cinema e, para mim, foi reveladora – adorei mesmo! E, é engraçado, o Sérgio convidou-me para o papel depois de me ter visto no Punk Rock.

Se recuarmos pouco mais de um ano, a Dessa Carne Lassa do Mundo, peça inspirada em Romeu e Julieta de Shakespeare, os amores trágicos continuam a inspirar o teatro coreográfico e imagético de Daniel Gorjão. Agora, o cofundador do Teatro do Vão parte para outro clássico,  Menina Júlia de Strindberg, fazendo de Jean, o criado, e de Júlia, a jovem aristocrata, instrumentos que permitam “olhar para o fundo de nós.”

Ao colocar no epicentro do espetáculo as variantes do desejo que alimentam a relação entre os protagonistas, Gorjão optou por suprimir a terceira personagem do texto original (a criada). “Interessava-me que o enfoque estivesse apenas sobre Júlia e Jean, sublinhando o que os aproxima e os afasta, o que os faz amar e odiar, quase em simultâneo. Interessa-me mostrar o poder do desejo e o desejo de poder que existe em cada um deles, tal como em cada um de nós numa relação amorosa.”

Mas a obra-prima de Strindberg é rica em abordar outros contextos e conduzir a leituras sobre a ordem social e política da época, afinal, tão marcada pela luta de classes. Gorjão contorna-as, atenua-as através de uma dramaturgia apurada que, “sem mexer no texto, prefere sublinhar as perspetivas que o próprio Strindberg tinha do desejo amoroso.”

Cada espetador torna-se assim um voyeur que, por entre os arbustos do jardim, encontra os amantes num recanto. Eles dançam (é noite de São João!), eles amam-se, eles partilham confidências; mas também discutem, agridem-se, odeiam-se. Afinal, é de tudo isso que é feita a linguagem dos amantes.

O genérico final acaba. Acendem-se as luzes ao mesmo tempo que o velhinho projetor de 35mm se apaga. O público já abandonou a sala e cabe agora a dois trabalhadores deste cinema, situado algures numa pequena cidade do Massachusetts, varrer restos de pipocas, recolher copos e garrafas e dissimular vestígios de lixo indecifráveis. Este é o quotidiano laboral de Avery, o novo funcionário, negro e apaixonado por filmes (ao ponto de o definirem como um “cineasta snob”) e do “veterano” Sam, mais velho, derrotado, sem expetativas, e que, quando confrontado sobre o que gostaria de fazer na vida tanto hesita, respondendo, sem grande convicção, “ser chefe de cozinha”.

Acima, na cabine de projeção, está Rose. Também ela começou a varrer lixo, lá em baixo nas coxias, ao lado de Sam, mas depois foi promovida a projecionista. Goza da fama de ser lésbica, mas nem por isso parece deixar de surtir um enorme magnetismo sobre os homens (que o diga Sam, e também, apesar dos fantasmas, Avery). Gostaria de poder deixar este emprego mal pago, mas, há uma renda de casa para pagar. Aliás, para colmatar tão pouco vencimento, sustenta com Sam um esquema de revenda de bilhetes a que chamam “dinheiro para o jantar”. E no qual Avery terá de alinhar…

”Esta é uma peça que analisa as diferenças sociais a partir das possibilidades de futuro das pessoas.”

 

Escrito no apogeu do digital, numa altura em que os velhos projetores de película se transformaram em peças de ferro velho, O Cinema (The Flick, no original) estreia-se nos palcos portugueses depois de ter valido à dramaturga Annie Baker o Prémio Pullitzer, em 2014, e um Obie Award, um ano antes, e de se ter tornado um dos grandes sucessos recentes off-Broadway.

“É incrível como os autores norte-americanos atuais permanecem praticamente desconhecidos entre nós”, observa o encenador Pedro Carraca ao explicar-nos que o texto lhe chegou às mãos através de Francisco Frazão, programador de Teatro da Culturgest. É, precisamente, a Culturgest que lança aos Artistas Unidos o desafio de o encenar. E Pedro Carraca assumiu-o, ciente que é, “pelos ritmos e pelas tensões dissimuladas, um texto muito diferente de todos aqueles que fiz.”

“Acima de tudo, é uma peça que analisa as diferenças sociais a partir das possibilidades de futuro das pessoas”, refere. “Fá-lo de um modo subtil e melancólico através de três personagens que sobrevivem no inferno que é o seu local de trabalho. Sublinho isso, introduzindo uma outra personagem: o lixo que cai no chão a todo o instante”. Carraca lembra que, em tempos, passou por uma experiência semelhante quando trabalhou numa fábrica de vidro. “Vivia não só a rotina, mas também o medo de falhar e de isso implicar uma penalização no meu vencimento. Tanto o Sam como a Rose vivem esse inferno porque a sua própria sobrevivência depende do que ganham naquele cinema.”

Avery, o afro-americano cinéfilo de 20 anos “é o único dos três que tem reais perspetivas de futuro para lá daquele emprego”. Aliás, o pai de Avery é professor de Semiótica e o que move o mais jovem dos três é, precisamente, o amor pelos filmes e a crença quase romântica de que só existirá cinema se os velhos projetores de película sobreviverem ao digital. Isso justifica que ele ali esteja, removendo lixo enquanto ambiciona subir uns degraus e ocupar a sala de projeção.

Para lá do retrato de uma certa classe trabalhadora, a peça de Baker é também uma homenagem ao cinema, a grande arte popular do século XX. A autora pauta todo o texto com referências e citações a filmes, desde clássicos a sucessos de época, como se Jean-Paul Belmondo em Pierrot Le Fou pudesse dialogar com Samuel L. Jackson em Pulp Fiction, ou Jeanne Moreau em Jules et Jim o pudesse fazer com Kim Catrall em Manequim. Em pleno século XXI, no triunfo do digital, e num cinema que aguarda lentamente pela última sessão.

Quem tem acompanhado o trabalho de Mónica Calle desde os anos da Casa Conveniente, primeiro na Rua dos Remolares, depois na Nova do Carvalho e, mais recentemente, na Zona J de Chelas, notará, em Ensaio para uma cartografia, a falta da palavra dita que toca o corpo e a alma daquele modo muitas vezes dilacerante que fazia dos seus espetáculos experiências únicas, muitas vezes radicais. Neste espetáculo, há palavra mas em off, sendo o essencial o corpo, as suas fragilidades e limitações e, no limite, a sua capacidade de superação. É, aliás, e como refere a atriz e encenadora, um trabalho à sombra da figura de Luna Andermatt, nome maior da dança portuguesa, com quem trabalhou em Iluminações, quando dirigiu a Companhia Maior.

“Esta peça resulta de um tempo estendido marcado pela partilha e pela cumplicidade entre todas estas atrizes”, sublinha Mónica Calle, apontando Ensaio como mais uma etapa numa cartografia que começou a ser traçada após a reencenação, em 2012, de A Virgem Doida, ainda no Cais do Sodré, e com os itinerantes Sete Pecados Mortais, de Brecht, em 2014. São, aliás, essas peças que começam a cimentar um elenco, tornando a chegada à Zona J de Chelas, à atual Zona Não Vigiada/Casa Conveniente, um processo para “a construção de uma família, de uma casa”, à semelhança da odisseia das duas irmãs protagonistas da peça de Brecht.

Assim, “a casa” constrói-se caminhando, e o caminho que em palco Ana Água, Carolina Varela, Cleo Tavares, Inês Vaz, Joana de Verona, Marta Félix, Míu Lapin, Mónica Garnel, Silvia Barbeiro, Sofia Dinger, Sofia Vitória, a própria Mónica Calle, e ainda Carla Bolito e Ana Montereal, percorrem, é marcado pelo esforço extenuante da repetição e da exposição da fragilidade (mais do que a dos corpos) perante aquilo que as afasta de “zonas de conforto”, como a dança em pontas ou a execução de um andamento da Sétima Sinfonia de Beethoven.

Por tudo isto, Ensaio para uma cartografia é um work in progress, onde a falha e o erro penetram a pele, com dor e suor derramado, como parte de um caminho feroz, violento, muitas vezes esgotante, e onde apenas a dedicação e o compromisso à arte, que a dado momento do espetáculo a voz de Leonard Bernstein aponta, parecem poder levar a um sítio que possamos chamar “casa”.

Na sua segunda temporada, o projeto Boca Aberta tem vindo a levar o teatro aos jardins-de-infância da rede municipal de Lisboa, encantando com as suas histórias pejadas de imprevisibilidade e aventura esse público tão exigente que vai dos três aos cinco anos de idade. Integrado na programação infanto-juvenil Cresce e Aparece, do Teatro Nacional D. Maria II, o Boca Aberta convida agora as crianças a virem ao teatro. A 11 de março, estreia Isto Não é um Sonho?, um espetáculo onde “os sonhos são as brincadeiras do sono, e as aventuras de quem sonha acordado”.

“Neste espetáculo criamos um lugar entre o sonho e a realidade e cultivamos a dúvida, dai a interrogação: Isto não é um sonho?”, explica-nos a encenadora Catarina Requeijo que, depois de uma recolha de textos feita pelas escritoras Inês Fonseca Santos e Maria João Cruz, as transforma em aventuras de palco. E quem serão os simpáticos amiguinhos que nos levarão à aventura? Sem quebrar o mistério, Catarina Requeijo desvenda que, neste espetáculo, estará “o Escaravelho, uma deliciosa personagem criada pelo escritor Manuel António Pina, e três carteiros sonhadores que viajam através das cartas que levam a vários sítios do mundo, numa alusão ao filme Escola de Carteiros”, do cineasta francês Jacques Tati.

Posteriormente, a partir de 29 de abril, um novo espetáculo vai pôr os miúdos de Boca Aberta. Chama-se Isto é uma Viagem! e, tal como em Isto não é um Sonho?, as interpretações estão a cargo de Carla Galvão, Lucília Raimundo, Sandra Pereira e Vítor Yovani.

É “um público muito exigente”, afirma Catarina Requeijo, a encenadora do projeto Boca Aberta. Com quase duas décadas de trabalho em teatro infanto-juvenil, crê “que nunca podemos acreditar estar completamente preparados para este público: não faz fretes, quando não gosta desliga e é absolutamente sincero.”

Com Inês Fonseca Santos e Maria João Cruz, responsáveis pela seleção e colagem de textos que integram as histórias do Boca Aberta, a encenadora assume esta experiência em concreto como “um trabalho constante de tentativa e erro, onde não basta haver coisas muito bem escritas, que parecem ser perfeitas e que, depois, não funcionam”. Sublinha, a exemplo, o humor que se aplica nos espetáculos: “nós pensamos saber quando é que os miúdos se vão rir, mas, às vezes, eles acabam por rir onde nós jamais imaginariamos, e isso é um desafio para os atores que têm de ser capazes de se adaptar numa fração de segundo”.

Adaptação é, precisamente, algo a ter muito em conta num projeto como o Boca Aberta, concebido especialmente para se introduzir no ambiente escolar. “Nas escolas temos de ter espetáculos todo-o-terreno, como lhe costumo chamar, capazes de aguentar tudo, como os barulhos da cantina, o movimento nos corredores, as entradas na sala para dar um recado, etc. Ou seja, têm de ser espetáculos aptos a conviver com o dia-a-dia da escola.”

Mas, agora, o Boca Aberta instala-se no teatro e… o espetáculo muda! “Estes dois espetáculos são pensados para um certo aconchego, por isso diria que são mais misteriosos. Afinal, vamos tratar do sonho”, sublinha. E nada melhor do que o conforto de um espaço tão bonito como o do Salão Nobre do Teatro Nacional D. Maria II para esquecer os tablets ou a televisão e vir viver “um tempo suspenso”, o tempo do teatro “onde se pode parar e ouvir uma história”, e se consegue “um foco único”, algo que Catarina Requeijo acredita ser “fundamental para as crianças de hoje.”

Sempre foram, e gostam de ser, um coletivo à margem. Aliás, a marca de marginalidade está na génese do coletivo (hoje liderado por Miguel Moreira com os bailarinos Romeu Runa, Catarina Félix e Sandra Rosado) desde os primórdios, quando sediou a sua atividade no Espaço Ginjal, na margem sul do Tejo. Não será, portanto, surpreendente – apesar de, nos últimos anos, as criações do Útero terem saltado dos “armazéns sujos da cintura industrial e portuária para as grandes salas (não só de Portugal, como do mundo [The Old King marcou a estreia do coletivo no Festival de Avignon, em 2012]) – que, ao apresentar-se pela primeira vez no Teatro Nacional D. Maria II, e logo na Sala Garrett, o Útero aliasse às marcas próprias do seu teatro/dança um autor só aparentemente improvável: Bernardo Santareno.

Miguel Moreira reconhece essa suposta improbabilidade. Mas, na verdade, O Duelo andava na cabeça do encenador e coreógrafo desde há uma década. Porém, “foi preciso o Tiago Rodrigues [atual diretor do Nacional] convidar-nos a celebrar aqui os 20 anos do Útero para pegar no texto do Santareno, rompendo assim a tendência dos últimos anos, com peças mais coreográficas, totalmente, ou quase, despojadas de texto”.

”Considero Bernardo Santareno um autor ultra contemporâneo”, sublinha Miguel Moreira

 

Mas porque é que só na aparência o teatro de Santareno pode parecer improvável no percurso do Útero? Luiz Francisco Rebelo, na sua História do Teatro Português, ajuda-nos a responder à questão, ao caracterizar a obra do autor ribatejano como oscilante “entre polos (de sinal contrário, mas de força equivalente) de uma fascinação do mal e de uma obsessão de angelismo”, capaz de realizar “a inesperada fusão de temas de raiz popular com as preocupações existenciais mais fundamente sentidas na carne e no espírito do homem seu e nosso contemporâneo”. Com as devidas distâncias, o percurso criativo do Útero (do Ginjal às grandes salas) tem tudo para se sentir confortável no universo de Santareno, que Miguel Moreira considera mesmo “um autor ultra contemporâneo.”

À semelhança de tantos espetáculos criados pelo Útero, em O Duelo sente-se a presença do fetichismo, da ambiguidade sexual, da violência sadomasoquista, do prazer, de almas humanas que mergulham no lado mais negro e oculto de si mesmas. “São, todos eles, temas muito presentes na obra de Santareno”, sublinha Miguel Moreira, ressalvando a sua herança bauschiana: “o contacto que tivemos naquele ano de 1994 [Lisboa, Capital Europeia da Cultura] com as criações de Pina Bausch marcou-nos para sempre”.

O magnifico texto de Santareno, “entre o poético e filosófico e uma crueza quase animal”, penetra num “lugar de espanto, irreal”

 

Assim, o magnifico texto de Santareno, “entre o poético e filosófico e uma crueza quase animal”, penetra num “lugar de espanto, irreal”, como o considera o encenador. “Quisemos um ambiente pictórico, impressionista”, onde os sete intérpretes se movem, habitando uma lezíria imaginada, carregada de toda uma simbologia rural que parece pertencer a um Portugal esquecido, mas “ainda tão presente”. E é ali, entre trevas e nevoeiro, água que cai e terra que suja, que os poderosos oprimem os mais fracos, e os homens ganham uma dimensão animal, sombria. Mas, também, a intensa vontade de se libertarem, como que para fugir ao destino inconjurável enunciado nas palavras de Rosária, a mãe amarga e sofrida, para  o filho Ângelo, no primeiro ato da peça: “Eles são os senhores, filho, e a gente os servos, eles podem tudo e a gente nada.”

Como descobriu esta comunidade de mulheres e o que a levou a fazer um filme sobre este tema?

Em 2012, uma amiga minha, a Sónia Batista escreveu um livro de poesia e num dos poemas havia uma referência a estas mulheres, de uma forma poética e muito evasiva. No final do livro havia uma pequena nota que explicava quem elas eram. Lembro-me perfeitamente de estar a ler o livro, à noite, e pensar: Mas isto existe? Não, isto é uma coisa milenar que já desapareceu. Fui imediatamente procurar na internet. Descobri umas fotos dos anos 50, e nada mais. Pensei: Não há um filme? Se não há, vou eu fazer. Concorri, passados dois meses, a uma bolsa da Fundação Oriente. Em 2013 fui pela primeira vez ao Japão. Visitei uma série de vilas perto de Osaka e Tóquio. A última que visitei foi Wagu, uma vila piscatória, muito pequenina. Houve logo uma grande empatia entre mim e as mulheres. Regressei a Portugal, concorri ao ICA e voltei ao Japão, em 2014, para filmar.

Foi fácil obter autorização para filmar a vida destas mulheres?

Em todas as outras vilas era tudo muito tribal e ancestral, as mulheres eram muito fechadas. Nesta vila da Península de Ise, houve de facto uma grande empatia, principalmente com a Masumi. Ela ajudou muito a minha aproximação às Ama.

Como ultrapassou a barreira da língua?

Não falo japonês, mas isso funcionou a meu favor, e a favor da intimidade. A minha assistente é que fazia a ponte com as Ama, através da língua. Como as Ama não estavam habituadas a falar diretamente comigo, durante as cenas em que estava a filmar elas ignoravam-me, porque era uma presença com quem elas não estavam habituadas a comunicar diretamente. Havia de facto uma relação de proximidade, abraçávamo-nos, mas falar nunca. O que acaba por funcionar a favor do filme.

De facto as personagens raramente olham para a câmara, embora o filme seja um documentário há momentos em que parece tratar-se de uma ficção. Qual é para si a fronteira entre documentário e ficção?

O documentário é sempre uma ficção de alguém. A mim interessa-me esbater essas fronteiras. Ainda estou aprender a fazê-lo. Neste filme isso já acontece, mas gostava de ir ainda mais longe. Quero contar uma história, não estou preocupada se manipulo ou não a história, é o meu ponto de vista. Queria muito contar a história destas mulheres, dirigi-as algumas vezes, mas na maior parte do tempo é espontâneo. Houve algumas cenas que pedi para acontecerem, como a cena do fogo-de-artifício, embora seja algo que eles costumam fazer.

O trabalho das Ama-San é algo extraordinário, pela sua dureza e dificuldade. Mas estas mulheres são no fundo iguais a tantas outras que lutam todos os dias pela família. Esta é também uma história universal?

O extraordinário nas Ama-San é que elas conseguiram subverter a posição da mulher. Num país onde a figura feminina é a gueixa, subalterna, submissa, as Ama-San ganharam um poder, que levou inclusive a que os homens, nos anos 40, 50, 60, não tivessem que trabalhar porque elas sustentavam toda a família. Esta é uma tradição que está a desaparecer, mas as que continuam têm um orgulho e um poder quotidiano que lhes dá uma certa liberdade. Isso fascinou-me. Elas são tão frágeis como fortes. Algo que encontramos nas mulheres de uma forma geral. Esta é também uma história universal. Também procuro isso no cinema. O cinema quando é universal comove-nos.

A câmara filma vários objetos tecnológicos e de consumo que nos remetem para os dias de hoje, se não fossem esses elementos (tablet, telemóvel, comando da televisão, karaoke) esta podia ser uma história de há cem anos atrás. Pretende demonstrar que esta é uma comunidade dividida entre a tradição e a modernidade?

Acho que é um retrato extremamente contemporâneo. Embora, se retirássemos esses elementos tecnológicos, de facto, não havia referência temporal. Mas havendo, acho que retrata o momento histórico que todos estamos a viver: Agarramos a tradição ou evoluímos? Seguimos em frente e esquecemos o passado? As Ama-San vivem esta dualidade. Por exemplo, já não mergulham nuas, isso já não é permitido, usam fatos de borracha. Usam o telemóvel para saber como vai estar o tempo, embora as mais velhas ainda se guiem pelo vento ou pelas nuvens. O número de Ama-San está a descer radicalmente, porque é uma profissão sazonal, muito dura e perigosa, muitas morrem. As novas gerações não querem arriscar.

Ama-San ganhou o prémio de melhor filme da competição nacional no Doclisboa este ano, assim como outros prémios em festivais internacionais. O que representam para si estes prémios?

Representam sobretudo que estamos a trabalhar no caminho certo. Às vezes o trabalho no cinema é tão solitário, principalmente para os realizadores, por vezes não sabemos se estamos tolinhos ou a caminhar no sentido certo. Os prémios representam só isso, não à vaidade que se sobreponha a isso, que é: continua. Há um grupo de pessoas, um júri, um público que gostou também, portanto estamos juntos e isso é muito bom.

As Ama-San já viram o filme?

Já viram o filme e escreveram-me, com grande emoção, a dizer que gostaram e que consideram o filme uma celebração da vida. Achei muito bonito.

Sons icónicos das décadas de 80 e 90 do século XX, introduzidos em riffs bem musculados, começam a propagar-se pela sala do Teatro da Trindade ainda antes do abrir da cortina. Vanessa, uma menina de sete anos, com muita, mas mesmo muita personalidade, fã de Dragon Ball e sucedâneos, não se rende ao que a família e a sociedade lhe reservam. E, por isso, vai à luta.

“Mas afinal porque é que não posso ter uma metralhadora de brincar igual à do meu irmão?”, pergunta-se. Mandam as convenções que tal não seja o brinquedo mais indicado para meninas. Mais a mais, existem tantas bonecas, acessórios de moda e baldes com esfregona nas prateleiras das lojas de brinquedos que até parece mal andar a brincar com uma metralhadora, um brinquedo que, de tão viril, só pode mesmo ser destinado a rapazes.

Vanessa vai à luta parece, num primeiro impacto, estar datado (talvez porque, aqui, os bens ainda se transacionam em escudos e são, hoje, raras as mães que não trabalham fora de casa) mas, “no essencial, há muita coisa atual, sobretudo o tema do condicionamento das escolhas pelo género”, refere o encenador António Pires. “Concluímos que não nos interessava atualizar o texto, até porque o considero uma fabulosa peça de teatro de comédia que, nas suas múltiplas camadas promove a opinião, a reflexão e o debate entre as gerações sobre um problema que se mantém: porque é que cada um de nós, independentemente do género, não pode ser aquilo que quiser”.

Para António Pires “o teatro é o reino do faz de conta, e quem melhor do que os mais novos para o perceber”

 

Luísa Costa Gomes vai ainda mais longe. “Reescrevê-la, atualizá-la, significaria escrever uma peça nova porque, de facto, o mundo mudou muito nestes últimos 20 anos”. Porém, “a questão metafísica do género, do ser que somos, a ideia do acaso que no momento da conceção nos torna homens ou mulheres, essa, continua eternamente intrigante”.

E quando os jovens rapazes e raparigas de hoje tomarem contacto com este mundo de Vanessa, como vão reagir? António Pires assume que, sempre que encena um texto para crianças e jovens, não pensa muito nisso. Afinal, “o teatro é o reino do faz de conta e quem melhor do que eles para o perceber”. Por isso mesmo, Vanessa vai à luta não é, de todo, uma peça naturalista. E é, precisamente, por negar esse conceito de teatro com tanta veemência como o da protagonista estar presa ao rótulo da “maria-rapaz”, que, acredita, este é um espetáculo capaz de ser tão eficaz na promoção do “sentido crítico dos mais novos”.

Interpretado por Carolina Campanela, João Veloso, Cátia Nunes, Hugo Mestre Amaro e Julie Sergeant (que tem uma participação especial deliciosa no papel de uma Fada Madrinha chamada Marina), Vanessa vai à luta tem estreia marcada para 19 de janeiro. A partir de 11 de fevereiro, e até 1 de abril, a peça volta a estar em cena no Teatro da Trindade, sempre aos sábados, com sessão às 16 horas.

Como é que surgiu este súbito fascínio pelas peças de Tennessee Williams, autor que até há um par de anos nunca tinha encenado?

Não diria que tenha sido um fascínio súbito, mas, na verdade, nunca pensei em encenar Tennessee Williams. Só quando percebi que os meus atores, e aqueles de quem gosto, estavam aptos a fazê-lo é que tomei a decisão. No fundo, pus-me como que ao serviço desse elenco  – a Maria João [Luís], o Rúben [Gomes], a Catarina [Wallenstein], o Américo [Silva] ou a Isabel Muñoz Cardoso, que ambicionou durante anos fazer Tennessee Williams.

O que é que este autor tem de tão especial para os atores?

São papéis complexos com que muitos dos atores, legitimamente, sonham, e nem sempre é fácil surgir a oportunidade de os fazer.

E para o encenador? Que motivações acrescidas surgiram?

Pensei, desde a Gata, que era importante devolver Tennessee Williams ao teatro. A maior parte das pessoas conhece estes textos através das adaptações ao cinema que, apesar de muito interessantes, são muito, muito distanciadas das peças. Ao mesmo tempo, há esse lado desorganizadíssimo das suas peças, os seus ritmos e pulsares…

Gore Vidal chegou a confessar-se surpreendido pela forma como Williams escrevia e reescrevia constantemente as peças. É essa desorganização a que se refere?

Williams era um permanente indeciso, com muita vontade de agradar. Consta que vivia, antes da estreia de cada peça, um voraz nervosismo que o levava a escrever novas cenas e a impôr alterações momentos antes de os atores subirem ao palco. Margaret Leighton, que faz o papel de Hannah em A Noite da Iguana aquando da estreia na Broadway, conta isso mesmo. Essa desorganização, resultante do homem atormentado que era, acaba, no fundo, por surpreender quando estamos a trabalhar um texto seu.

Falando agora de A Noite da Iguana. Porquê escolher esta peça que, por sinal, nasceu de um conto que Williams escreveu na década de 1940?

De todas as peças que levámos à cena é a menos estudada. E é radicalmente diferente do conto que Williams escreveu numa pensãozinha boémia do México, mergulhado num estado de profunda depressão. Em 1961, ele desenvolve a peça, recuperando a atmosfera descrita e uma personagem, uma puritana que passa férias na pensão, tendo escrito, ao que se sabe, pelo menos quatro versões. A que usamos é a que faz parte do espólio da Library of America.

Em 1964, John Huston adapta a peça ao cinema, num belíssimo filme protagonizado por Richard Burton, Ava Gardner e Deborah Kerr. Apesar de críptico, o filme não revela propriamente essa “desorganização” que parece marcar a maior parte das obras de Williams…

Como já referi, os filmes são sempre muito diferentes das peças e A Noite da Iguana não é exceção. Aliás, esta peça é muito, muito desequilibrada, talvez porque quase todas as personagens estão em exaustão, a começar pelo protagonista, o Shannon, e acabando na galeria de personagens curtas. A ação passa-se em 1940, ao contrário do filme, que a remete para umas décadas depois e suprime o grupo de turistas alemães que Williams usa para fazer o contraponto entre os que vivem uma crise existencial e uma Europa que se destrói – a Noite do título é, precisamente, a do grande bombardeamento alemão a Londres, que aquele grupo de nazis comemora na pensão mexicana à beira-mar. Aliás, o que se torna crucial na peça é essa ideia de um mundo exangue que não consegue lutar contra o fascismo crescente.

Não deixa de ser surpreendente que Williams, tendo escrito a peça quase duas décadas depois da derrota do nazismo, tenha “criado” esse grupo de nazis num texto que parece ser, sobretudo, sobre pessoas em exaustão.

É uma característica do teatro de Williams. Ele adora colocar as suas personagens torturadas e amarguradas ao lado de personagens grotescas (repare-se nas criancinhas da Gata ou nos fascistas do Doce Pássaro). Ele chamava-lhe “caricaturas à Hieronymus Bosch”.

Pensa que essa presença do grotesco, ainda mais nestes dias que vivemos, dá, de certo modo, uma nova atualidade ao teatro de Williams. Ou, para ser mais preciso, Tenessee Williams é ainda um autor atual?

É datado. Mas, eu também acho que Bach não é rock, é datado, e eu continuo a necessitar dele. Mozart, que eu ouço quase todas as noites, também não vestiu jeans e ainda bem… Não sou doido pelo contemporâneo, até porque acredito que todo o teatro é contemporâneo desde que seja representado. Uma das coisas bonitas do teatro é, precisamente, sentarmo-nos numa sala e ouvirmos vozes de antes, de agora, de longe e de sempre.

Como em todo o teatro de Williams, os protagonistas são personagens sempre fascinantes e que, como o Jorge já referiu, fazem as delícias de qualquer ator ou atriz. Aqui, teremos Nuno Lopes, Maria João Luís e Joana Bárcia a interpretar o trio protagonista…

Os atores é que são decisivos para fazer esta peça e, diga-se, são a minha grande motivação para a encenar. O que é mais belo no Tennessee Williams é essa capacidade extraordinária de construção de personagens capazes de serem identificadas por qualquer um de nós fora das peças. Diria mesmo que Williams foi o maior criador de personagens do teatro do século XX.

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