Aos 45 anos, David Greig é já o mais aclamado dramaturgo escocês da atualidade e dos mais aplaudidos na cena britânica. O seu teatro está ligado à vida quotidiana, aos anseios e frustrações de uma certa geração que perdeu gradualmente as ilusões e, se por um lado é vincadamente universal, por outro são reconheciveis os destroços da sociedade britânica após o thatcherismo.
Cantigas de uma noite de verão, a comédia musical sobre dois trintões às voltas com muitos assuntos sérios, foi a primeira incursão dos Artistas Unidos na dramaturgia de Greig. Agora, em registo mais negro, o coletivo liderado por Jorge Silva Melo propõe duas peças que espelham a necessidade de uma ideia de comunidade que nos proteja do mundo de violência em que vivemos: Os acontecimentos (estreia a 11 de fevereiro) e Frágil (estreia a 20 de fevereiro).
Os acontecimentos, peça musical encenada por António Simão, inspira-se na personagem de Anders Breivik, o militante de extrema-direita que, em 2011, assassinou a sangue frio 68 pessoas. Greig parte do acontecimento terrível para fazer ecoar outros, como os massacres ‘escolares’ de Columbine ou Dunblane. A protagonista é uma mulher que escapou ao massacre e, perante os traumas, decide encetar uma busca para entender o que se passou naquele dia. O coro em cena é a representação da comunidade onde nos podemos encontrar, “onde nos juntamos e cantamos” e onde, provavelmente, podemos encetar o caminho para levantar as questões para as quais parece impossível descobrir respostas.

Em Frágil, Greig reflete sobre a violência que as decisões políticas exercem sobre o individuo. Apesar de escrita para dois atores, o autor reconheceu estarmos a viver em ‘austeridade’, e propôs que a personagem Carolina, psicóloga a recibos verdes, seja sempre interpretada pelo público, seguindo as suas falas através de um power point projetado em palco. Jack, o jovem que necessita de cuidados de saúde mental e, por saber que os perdeu devido a cortes estabelecidos pelo Governo, decide tomar uma atitude radical, é o seu interlocutor.
A intenção de Greig em recorrer a este dispositivo de colocar o público na pele de Carolina é tudo menos inocente. Trata-se de um desafio e de uma provocação para nos fazer pensar enquanto comunidade perante pessoas como Jack, gente que sente nada mais ter a perder, que percebeu que “como está não pode continuar”. E nós? Estaremos nós à altura do papel?
As duas peças de David Greig mantêm-se em cena até 14 de março.
Do centro para a margem. Ou do Cais do Sodré para a Zona J de Chelas. Como foi esta migração?
O objetivo de ir para a Zona J remonta a 2009 ou 2010, consequência do impacto a nível artístico, profissional, e até pessoal, de um trabalho que desenvolvi com reclusos do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus. Simultaneamente, o Cais do Sodré mudou, transformou-se, e começou a deixar de fazer sentido continuar por lá. Quando me apercebi disso, por mais doloroso que tenha sido, procurei a Câmara Municipal de Lisboa no sentido de conseguir um espaço num bairro social da Zona J. Enquanto o processo se ia desenvolvendo, senti a necessidade de parar e de repensar o meu caminho. Foi um par de anos muito duro e difícil, mas absolutamente necessário. Em dezembro do ano passado, fiz um ciclo de espetáculos em vários locais da cidade a partir de Os Sete Pecados Mortais de Brecht. Esses espetáculos traçaram uma cartografia – que me foi necessária para me libertar do Caís do Sodré – e conduziram à Boa Alma que agora inaugura o espaço na Zona J.
Trazer um projeto cultural para uma zona limítrofe, e tão estigmatizada como um bairro social em Chelas, é mais um risco que assume no seu percurso?
O encontro com uma série de pessoas, com quem trabalhei em Vale de Judeus, ligou-me ao bairro. Ali, estabeleci relações de família e amizade. Aos poucos percebi, à semelhança do sucedido no Cais do Sodré há 20 anos, que estava num sítio onde poderia desenvolver um trabalho com consequências. Para mim e para as pessoas em redor. Sinto isso desde que a Casa Conveniente ali chegou; sinto isso no modo como me penso ao nível pessoal e artístico. Se a Casa Conveniente sempre se deixou influenciar pelo Cais do Sodré, esta Casa Conveniente/Zona Não Vigiada está a ser influenciada pela Zona J. É claro que tenho a noção do risco. Sei que nos espera um longo e moroso caminho até conseguirmos inscrever este novo espaço na cidade. Mas quero muito contribuir para dar centralidade à margem, perceber como é que se consegue colocar um ‘bairro-ilha’ nessa centralidade através de um projeto artístico. Vai levar tempo, há que quebrar estigmas, superar medos, e sei que vai ser necessário muita insistência. Mas, vamos conseguir.
A Casa Conveniente/Zona Não Vigiada será, necessariamente, um projeto diferente da Casa Conveniente?
É a Casa Conveniente, é o nosso projeto, mas com novas pessoas e num novo sítio. É recomeçar tudo de novo. A memória e o lastro da Casa Conveniente foram, no fundo, trazidos nesta viagem que fizemos em dezembro passado, e que quebrou um tempo de inatividade. Na Zona J estou a trabalhar em circunstâncias completamente diferentes, logo, sei que o meu trabalho também se vai alterar, se vai transformar, mas olho para esse desafio – e risco – como algo bom.
Entre o Cais do Sodré de 1991, ano em que surgiu a Casa Conveniente, e a Zona J de Chelas, hoje, que diferenças e semelhanças encontra?
Há semelhanças, apesar das muitas diferenças. O Cais do Sodré naquele início dos anos 90 era completamente diferente daquilo que é hoje. Era, também, uma zona marginal. Houve desconfianças ao início, mas depressa se esbateram quando as pessoas da zona se aperceberam que a natureza do meu trabalho era desenvolver um projeto artístico. Sei que valorizei e dignifiquei a vida de muitas pessoas. O trabalho que vou desenvolver na Zona J vai, por um lado, destruir um rol de preconceitos e estigmas que existem no bairro. É curioso, mas às vezes sinto-me como se estivesse numa aldeia, numa comunidade que cultiva os afetos e a entreajuda. As pessoas estão felizes por estarmos ali, por estarmos a erguer um projeto que pode transformar a ideia que a cidade tem do bairro, e o inverso. Quero, e desejo, criar movimentos que vão de fora para dentro e de dentro para fora, por isso, esta Casa Conveniente/Zona Não Vigiada é, acima de tudo, um espaço de comunhão entre pessoas.
Qual a importância do programa municipal BIP / ZIP no nascer do projeto?
A Câmara apoia-nos de duas formas. Pelo arrendamento por valor simbólico do espaço e através do programa BIP/ZIP, tendo em consideração o envolvimento em diversas atividades desenvolvidas da comunidade local em todas as suas diferentes valências. A reconstrução do espaço, que é uma loja, tem sido feita por pessoas que vivem no bairro, por exemplo. O objetivo é que essas pessoas sejam parte do projeto.
Este novo espaço estreia-se com A Boa Alma que, citando-a, vem na sequência de um percurso inverso de Heiner Müller, a quem dedicou um ciclo, para Bertold Brecht…
Durante o tempo em que tive que fazer esta migração do Cais do Sodré para Chelas, Brecht foi o autor que me acompanhou. Ele é o autor do teatro absolutamente total. Através dele, e com ele, estou a conseguir recomeçar. O Müller conduziu-me ao Brecht, porque foi o dramaturgo a quem dediquei um ciclo, que me acompanhou durante o trabalho em Vale de Judeus e, consequentemente, me conduziu até Chelas. Simultaneamente, foi o Müller que me fez descobrir, Brecht. Müller continuou-o, transformando-o.
Porquê fazer esta peça a solo?
Como é um recomeço, preciso de me recolocar enquanto intérprete. A Boa Alma permite-me falar do passado, do futuro, do sítio onde estou. Estreei-me no Cais do Sodré com A Virgem Doida, um solo, e quero estrear-me na Zona J também com um solo.
Optou por uma versão reescrita (por Luís Mário Lopes) e por novos temas musicais (de JP Simões)…
Mas, seja como for, é um Brecht. Com “a boa alma” da Mónica, do JP Simões e do Luís.
Este é um mundo em que tudo se tornou mais veloz, mais imediato, mais efémero. Ecrãs tácteis ampliam-nos a realidade, comandos de televisão viciam-nos em zapping e quem não está on, está offline, ou seja, é como se não existisse. A troca de informação comanda a nossa vida, provém de todos os lados e de um cem número de fontes. Jorra tão brutalmente que a própria realidade já não é o que era. Nem mesmo a maneira como nos relacionamos com aqueles que amamos e queremos.
Todas estas constatações estão presentes na peça Love and Information, escrita em 2012 por uma das grandes dramaturgas britânicas contemporâneas, Caryl Churchill (n. 1938). Num ilustrativo mosaico composto por mais de cinquenta micropeças e dezenas de intermezzos, a autora coloca para lá de uma centena de personagens às voltas com o amor e os afetos, com as superficialidades e tragédias da sociedade de consumo, com a política e os terrorismos, com a ciência e a tecnologia e com a memória humana que os smart phones que temos nos bolsos parecem fazer substituir.
Fazer caber todo este nosso mundo num palco foi o desafio abraçado por João Lourenço, o encenador que confessa ter apostado nesta peça de Churchill porque gosta de se desafiar com aquilo que julga não conseguir fazer. “A autora não fornece qualquer indicação sobre cada uma das cenas”, sublinha, “e isso permite-nos uma ampla liberdade”. Sabe-se que tudo tem de se passar a um ritmo vertiginoso, ou não fosse esta uma “peça em zapping” onde o espetador parece experienciar a sensação caseira de estar em frente à televisão, deambulando sem norte pelos canais à distância de um toque no comando.
Mas essa velocidade (e aparente simplicidade) que caracteriza Amor e Informação não dispersa o olhar crítico sobre aquilo que nos rodeia. O humor fino das cenas, sempre pautadas pela dose certa de mordacidade e uma profunda e acutilante inteligência, colocam-nos perante nós mesmos, e os outros. A encenação hábil e engenhosa de João Lourenço realça essa leitura, e exponencia as interpretações “caleidoscópicas” do elenco, composto por 13 atores de diferentes gerações.
É teatro, sim. E tem o mundo todo lá dentro.
Perdidas algures na gélida província russa, em torno da mesa da sala da casa de família, as irmãs Olga, Masha e Irina preparam-se para comemorar o aniversário da última. A ocasião é talvez um pretexto, ou um argumento, para falar do passado e sonhar ainda com um futuro noutro tempo e noutro local (Moscovo, ou, porque não, Londres…).
Na verdade, em palco não estão propriamente as três irmãs, mas sim Graça Lobo, Mariema e Paula Só, sendo as suas memórias pessoais, do teatro e da vida, a confundirem-se com as das personagens de Tchèkov. Por isso, Martim Pedroso, artesão deste “espetáculo-homenagem”, se refere a As Três (Velhas) Irmãs como “uma memória de Tchèkov”, carregada de imagens projetadas por três grandes atrizes do teatro português.
Mas, este não é um espetáculo feito apenas de passado. Graça Lobo conta as suas histórias com a jovialidade de quem permanece eternamente jovem, Mariema continua a cantar como se tivesse 20 ou 30 anos, e Paula Só representa uma Irina tão incrivelmente virginal como se o tempo não tivesse passado por ela. Como sublinha Martim Pedroso, “o artista nunca perde a vontade de fazer o seu trabalho, porque sempre emprestou a vida à arte e a arte à vida”. Talvez por isso, “a peça simboliza o querer viver” e deixa um lastro de futuro, mesmo quando se sabe que o tempo não cessa a sua marcha.
Quando passam quase 40 anos sobre o assassinato de Pier Paolo Pasolini (1922-1975), a obra deste vulto maior da cultura italiana do século XX vai marcando o panorama teatral português por estes dias. Depois da KARNART ter explorado o romance inacabado Petróleo, ou do Teatro da Cornucópia ter apresentado a “tragédia clássica” Pílades – e, antes disso, ter permeabilizado o “seu” Íon de Eurípedes com um trecho de Pasolini –, John Romão apresenta, nos próximos meses, duas leituras do díptico Teorema e Pocilga, textos que resultaram em filmes, de 1968 e 1969, respetivamente.
No primeiro espetáculo, Romão regressa ao “ambiente” que já havia contaminado a peça Cada Sopro, uma “reapropriação” de Teorema pelo australiano Benedict Andrews, coencenada com Paulo Castro para a edição de 2013 do Festival de Almada. O encenador (e, neste caso, também ator) apresenta no Teatro São Luiz “uma experiência sensorial e de contemplação”, de certo modo mais próxima do filme homónimo e das problemáticas sobre “o sagrado e a linguagem” que rodeavam Pasolini à época em que o dirigiu.
“A função de ver é essencial no filme, que praticamente não tem palavra”, sublinha Romão. Em Teorema, o espetáculo, respeita-se a tese pasoliniana da “linguagem da ação” associada ao cinema enquanto “realidade tout court” (o espetáculo integra, a propósito, o Festival Temps d’Images). Assim, a cena torna-se “cinematográfica, apesar de a cortina subir e descer recorrentemente”. Dispensa-se praticamente a “língua escrita-falada”, buscando-se uma procura do sagrado (na contemplação do movimento) aqui encarnada por 12 skaters que assumem o papel de “estrangeiros invasores” do conforto e segurança do “palácio burguês”.
Em Teorema “busco uma experiência de sacralização que encontre a graça na suspensão, no salto, na queda”, sublinha o encenador. “Os skaters [que nesta leitura substituem o enigmático ‘visitante’ que surge para colocar em causa a “ordem” burguesa que “perdeu o sentido do sagrado”] funcionam como figuras profanas, móbil para a captação do desejo, representando enquanto grupo, ícones da sociedade capitalista de hoje. Isso dá-lhe um estatuto de entidade divina, iconográfica e fetichista”. Simultaneamente, “procuro neste grupo algum paralelismo com o subproletariado que Pasolini não se cansou de filmar. Também os skaters são marginais, embora filhos da sociedade de consumo e representem, hoje, uma marginalidade que se tornou ‘estilo’, logo assimilada pelos padrões sociais em que vivemos.”
Num espetáculo para skaters e ator (esteve para ser um bailarino, por sinal o antigo colaborador de Pina Bausch, Damiano Ottavio Bigi, que Romão conheceu em 2012, em residência artística na Bienal de Veneza) há ainda outro elemento preponderante em palco: um músico – que está para o filme como a personagem do ‘mensageiro’. O acordeonista Fábio Palma interpreta, ao longo do espetáculo, a peça “religiosa, quase barroca mas muito experimental” Et exspecto da compositora russa Sofia Gubaidulina. “Agradava-me ter a presença do acordeão, um instrumento conotado com a música de raiz popular; e essa sonata de Sofia tem muito ar, esse ar que ela trabalha exemplarmente e que eleva os protagonistas em cena”, frisa.
Em janeiro, Pocilga
Se Teorema é “uma peça visual e sonora, feita em função do movimento”, Pocilga é uma peça para atores com a palavra no epicentro da ação. Aos olhos do desfecho dessa vida violenta que Pasolini viveu, reforça-se a ideia de os dois textos/filmes formarem um díptico. “Ambas parecem antecipar a morte do autor. O modo como leio Teorema sublinha, dentro das suas múltiplas camadas, as circunstâncias em que morreu; Pocilga era assumido pelo próprio como um texto autobiográfico, no sentido em que as práticas privadas do protagonista eram tão reprovadas socialmente como a homossexualidade do autor. Mas, o final vai ainda mais longe e olha sobre o modo como o desejo devora o homem”, sublinha Romão.
Na sua aparente simplicidade, Pocilga é uma peça sobre identidade e política. O encenador conjuga elementos saídos das duas narrativas paralelas do filme (uma ambientada numa comunidade canibal do século XVI e a outra na Alemanha dos anos 60 do século passado) para contar a história do filho de um candidato a primeiro-ministro que tem como segredo as visitas regulares à pocilga para manter relações sexuais com porcos. Quando o pai descobre que o seu adversário político teve um importante papel nos crimes do nazismo, é confrontado com o vício privado do filho, e enceta um jogo de ocultação que culmina num desfecho trágico.
Pela primeira vez encenada em Portugal, a peça conta com atuações de Albano Jerónimo, João Lagarto, Ana Bustorf, Cláudio da Silva, Pedro Lacerda, Mariana Tengner Barros e Paulo Pinto, no papel de Espinoza, o filósofo, encarnado num porco. Como diria Pasolini, “a burguesia é só verborreia” e Pocilga, nesta versão de John Romão, faz-lhe efetiva justiça.
Pasolini, 40 anos depois
Crime político, ou “o desejo que devora o homem”? Pasolini foi assassinado a 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia, a alguns quilómetros de Roma. As circunstâncias da morte permanecem até hoje por esclarecer, sabendo-se que terá sido espancado e, depois, atropelado com o seu próprio carro. As rodas de skate que rolam em palco no Teorema de Romão cercam o protagonista (o próprio Romão). Projetam essa morte, mas ao mesmo tempo parecem fazer viver uma obra e um pensamento que parecem irresistíveis aos dias de hoje. Será pelo teor anticonformista? Será pela importância de voltarmos ao político?
Romão confessa ter sido absolutamente casual esta aproximação a Pasolini. “Terá acontecido em 2012 esta fixação na sua obra. Começou, penso, numa sugestão do Jorge Silva Melo que selecionou algumas peças enquadráveis no trabalho que vinha desenvolvendo, nomeadamente uma de Genet e, precisamente, a Pocilga, de Pasolini”. Mas, compreende “o fenómeno que alguém designou como Pasolini renaissance”, e que até tem filme a estrear brevemente [Pasolini, de Abel Ferrara, com Willem Dafoe no papel principal]. “Fazer Pasolini é inevitavelmente um ato político, e a sua obra e pensamento, até porque era um marxista empenhado e envolvido, mantêm-se profundamente atuais e urgentes”. Porém, nestes dois espetáculos, confessa, “não senti a necessidade de ser tão político quanto Pasolini foi.”
Como justificar então este apelo? “Sinto um eco constante de Pasolini. Encontro-me enquanto criador no trabalho dele, que é complexo e desafiante. Há muito, mesmo muito para descodificar…” E estas duas peças são isso: “nada do que se diz é, tão só, aquilo que se disse”. Tal qual a realidade que Pasolini fixou, pensou e legou aos vindouros.
Em tempos como os que vivemos, porquê escolher como tema para esta nova criação um movimento tão vincadamente romântico?
O projeto começou por nascer de um desafio da Luísa Taveira [diretora artística da CNB] para criar uma peça com orquestra, que envolvesse músicos e bailarinos de uma forma não convencional, ou seja, não ter uns no palco e outros no fosso de orquestra. Com o Pedro Carneiro, e após muitas conversas, chegámos a este movimento e às ideias que ele preconiza. Apesar de pertencer a uma época e a um contexto muito específico, a essência do sturmismo ultrapassa a questão da emoção versus razão e a oposição ao classicismo vigente no século XVIII. Este movimento está profundamente ligado à essência do ser humano, do homem em crise por apego à forma. A forma é uma recorrência humana do ser gente, que cada um de nós assume para se sentir mais seguro no mundo. Para nos libertarmos, precisamos de renunciar às formas existentes e criar outras. É essa a dinâmica do acontecer, logo todos os tempos são tempos para abordar esta temática.
Mas, aos olhos do sturmismo, essa libertação das formas que conduz a novas formas é deveras emocional…
Por isso optei por tratar a peça a partir das emoções básicas dos seres humanos, estabelecendo quatro ciclos: o do medo, o da alegria, o da tristeza e o da raiva. Através destas emoções criei uma forma coreográfica que se destrói a partir de cada uma dessas mesmas emoções. E, ao criar uma nova forma, estabelece-se um ciclo contínuo de destruição e criação.
Pedro Carneiro foi o parceiro ideal para um projeto como este?
O Pedro é um músico especialmente intuitivo e criativo. Neste espetáculo, a partir das sinfonias de Haydn, sobretudo a partir das sinfonias n.º 44 e reminiscências da 45, temos elementos de uma enorme capacidade dramatúrgica que o Pedro reajusta e recompõe de um modo extraordinário. Sinto que em Tempestades estamos a viver um momento único de plenitude criativa.
Independentemente de Haydn ser o grande compositor deste movimento, a sua música foi uma escolha inteiramente consensual?
Absolutamente. Trata-se do compositor mais representativo do sturm und drang, foi um visionário e alguém que mudou a história da música. As suas composições têm a marca do movimento…
Como é trabalhar a partir da sua música?
O coreografo não precisa de trabalhar a música tal qual aquilo que ela nos transmite. O desafio é, precisamente, não cair nessa armadilha. Por natureza, uso a música mais como ambiente do que como suporte para criar movimento. Aliás, todo o material coreográfico de Tempestades foi criado sem música para evitar contaminação. Os bailarinos trabalharam quase sempre no silêncio, ou, pontualmente, com música que nada tem a ver com aquela que vamos usar no espetáculo.
Para além da CNB, nos últimos anos tem coreografado para outras estruturas, nomeadamente as companhias de dança de Angola e Moçambique. De que modo é que estes trabalhos têm marcado a sua perceção da dança e o seu percurso enquanto coreógrafo?
Se estiver confinado a trabalhar sempre com as mesmas pessoas vou ter a tendência de afunilar as minhas ideias. Lá está aquele conforto da forma que é o mote de Tempestades. Trabalhar com pessoas de outros locais, com outras vivências e noutros contextos é extremamente enriquecedor. As pessoas têm resposta física em função da sua latitude e isso tem-me ensinado muito. Quando chego a África não vou com a pretensão de impor uma maneira de estar e de fazer. Em Moçambique, por exemplo, percebi que as pessoas pensam com o corpo, ou seja, o gesto é integralmente uma extensão do pensamento que, incrivelmente, já sai organizado em dança. Nesse sentido, quando me deixo contaminar por estes ambientes, sinto que acrescento mais-valias à minha condição de criador. Se há medo que tenho é o de achar que “já sei”. O que tal implica são riscos que não tenciono correr porque, aquilo que me move, é conseguir reinventar-me, seja como coreógrafo, seja como pessoa.
Como é que avalia o estado da dança em Portugal tendo em conta o seu passado enquanto bailarino da CNB?
Tudo é diferente. Na época em que dancei, a companhia teve um papel importante enquanto museu vivo da dança. Porém, durante anos, fechou-se quase por completo no repertório. Só para se ter uma ideia, ao longo dos quase 20 anos de carreira como bailarino fiz apenas um papel de criação, tudo o resto eram reposições. Hoje, tudo é diferente. Na CNB, por exemplo, tudo se altera com a entrada do Jorge [Salavisa] que abriu portas a novos coreógrafos. Algo que a Luísa continuou e aprofundou, trazendo para a CNB pessoas de todas as áreas. Hoje, Portugal tem um leque de criadores extraordinários, gente com outra visão, com uma formação que lhes dá uma perspetiva mais ampla da dança. E a minha geração também está a aprender com eles.
Ainda sente vontade de dançar?
No estúdio ainda me perco um pouco, mas subir a um palco não. Confesso que não dei conta de ter deixado de dançar, porque um dos meus maiores prazeres é transmitir com o meu movimento aquilo que estou a sentir. E ver o movimento nascer no corpo de outra pessoa é algo que me dá uma enorme adrenalina. Tal qual como quando os meus bailarinos sobem ao palco para fazerem o espetáculo.
Há pelo menos três razões incontornáveis que levam Luís Castro e a KARNART a reincidir na obra de Raúl Brandão (1867-1930): o universo das personagens, a marca daquilo que poderíamos designar como “portugalidade” e as potencialidades performativas dos seus textos. A Farsa, romance datado de 1903, conjuga-as na perfeição. As personagens são um “espelho social”, tão particulares como universais; “os lados sociológico, antropológico e telúrico” vincam uma certa ideia de portugalidade, que se encontra mais próxima dos nossos tempos do que supomos; e o modo como a palavra “humaniza as coisas do mundo” oferece um amplo campo de experimentação ao nível performativo e plástico.
Para adaptar o texto de Brandão à linguagem criativa da KARNART, Castro procedeu a um intenso trabalho dramatúrgico que conduziu à expressão cénica de duas partes distintas no espetáculo. Numa primeira, o móbil é sobretudo performativo, com Sara Carinhas a entregar-se à corporalização das várias personagens do romance, sendo o movimento e o gesto partículas materializáveis do caráter dessas mesmas personagens e da sua imanente ligação ao mundo, à paisagem e à terra (o “lado telúrico” da obra de Brandão que muito seduz o diretor do espetáculo). A atriz é peça de museu, “objeto instalado”, até substituir a narração em off e humanizar-se ao ser ela mesma a assumir a palavra. Segundo Luís Castro, um trabalho como este requer “a capacidade técnica e o rigor de uma atriz como Sara Carinhas [que trabalhara com a KARNART em 2010, em Húmus], tão eficaz no campo performativo e plástico como enquanto atriz no sentido mais ‘clássico’.”

Na segunda parte do espetáculo, a “materialização” da atriz encontra um novo desafio. Tal qual objeto vivo (uma boneca, talvez) de olhos vazos, cega como uma sombra, percorre sete mesas, cada uma com três níveis, construindo 21 pequenas instalações, num processo que o público é convidado a assistir bem de perto, enquanto a narrativa e a excelente paisagem sonora criada por Adriano Filipe nos conduzem pelas tortuosas fragas do humano. Para Sara Carinhas, “apesar da exigência e da meticulosidade requerida, a construção dos objetos em tempo real assemelha-se ao trabalho sobre os textos. É necessário dominá-los, senti-los e saber como os manipular.”
A Farsa, que estreia a 25 de setembro na Sala-Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, é mais do que um espetáculo de teatro. É uma experiência sensorial de luz e sombra pelos trilhos das palavras e das imagens, onde somos livres de desfragmentar contextos e emoções a cada momento. Um processo que não se esgota na última récita no D. Maria II. A partir de 29 de outubro, o espetáculo continua no Gabinete Curiosidades Karnart, onde, como esclarece Luís Castro, será apresentada “uma variável perfinst de reflexão sobre este mesmo objeto”.
É para lá que uma parte importante da humanidade deseja ir quando chegar o seu tempo. Desde tempos imemoriais, é tido como a morada dos deuses e é fonte de assombro e reverência. Não é de estranhar que a arquitetura monumental aponte para o céu, de uma maneira muito mais exagerada do que a funcionalidade ou prudência justificariam. Menires, torres sineiras ou de menagem e minaretes dominaram a paisagem de fabrico humano até muito recentemente, quando a arquitetura civil conquistou as alturas.
Fomos visitar uma seleção destas estruturas religiosas de maior relevo em Lisboa, algumas das quais oferecem acesso público para vistas únicas da cidade. Os Urban Sketchers de Portugal, um grupo com formações heterogéneas, unido pelo gosto do desenho, oferece-nos a uma visão mais pessoal e artística destes monumentos.
Igreja de São Vicente de Fora. Desenho de Eduardo Salavisa
A visita ao mosteiro inclui o acesso ao terraço.A sua localização única oferece uma visão imperdível da cidade e do estuário do Tejo.
Largo de São Vicente
Tel. 218 244 400
Mosteiro dos Jerónimos. Desenho de José Louro
Está ao nível do mar mas é um dos pontos altos da arquitetura religiosa portuguesa. A sua nave, com colunas de 16 metros de altura, é também das mais impressionantes do país.
Praça do Império
Tel. 213 620 034
Sé de Lisboa. Desenho de Pedro MB Cabral
A Sala do Tesouro da Sé tem uma sacada virada para o rio, onde se podem apreciar os telhados de Alfama.
Largo da Sé
Tel. 218 866 752
Igreja de Santa Engrácia / Panteão Nacional. Desenho de João Catarino
O guardião da nossa memória e identidade, exemplar destacado do barroco português, oferece um miradouro privilegiado da cidade e do rio.
Campo de Santa Clara
Tel. 218 854 820
Basílica da Estrela. Desenho de Rosário Félix
O acesso à Basílica contempla a possibilidade de subir ao zimbório, ainda que apenas do lado interior.
Praça da Estrela
Tel. 213 960 915
“Não há dias sem morte”, constata Luzia no quarto fechado onde remexe em papéis, faz ginástica compulsivamente e exaspera, enquanto persente estar no caminho para o esquecimento, o que a faz estar só e cada vez mais perto do fim. Foi uma enfermeira dedicada, colecionou nomes, muitas histórias e muitos homens. Foi, diz a momentos, o que a tornou “uma puta dos mortos”.
Luzia sabe que vai morrer. Sabe, porque o deseja. O quarto onde a encontramos é a sua cabeça, uma prisão; o corpo, o rasgo da sua libertação. É assim que Gonçalo Amorim vê a personagem do monólogo original de Cecília Ferreira, texto vencedor do Grande Prémio Teatro Português Sociedade Portuguesa de Autores/Teatro Aberto, em 2013.
Para interpretá-lo, conferindo-lhe uma densidade que extravasa (no melhor sentido) os limites das emoções e da fisicalidade, está Mónica Garnel. “Sendo um monólogo e não havendo contracena, era importante ter uma atriz com as suas capacidades”, sublinha o encenador. “Até aos 12 anos, a Mónica fez ginástica de competição, e há muito tempo que desejava encontrar no teatro um papel a que desse uso aos recursos físicos que adquiriu em criança”.
Quanto ao texto, Amorim considera-o de uma enorme riqueza, tanto pela complexidade de uma personagem “esquizoide como Luzia”, como pela “sua inequívoca teatralidade”, não descurando um “humor apurado e desconcertante”. A música de Joana Sá e Luís Martins estabelece “as três temperaturas” (como “andamentos”) que a encenação definiu para o espetáculo: a primeira “em que se mergulha na depressão”, a segunda de “euforia e violência”, e uma terceira em que se cumpre a ritualização da morte, “a lembrar a simbologia do Dia dos Mortos mexicano”.
Uma vez que o julgamento de Flaubert é ponto de partida para este espetáculo, pode presumir-se que Bovary seja muito mais do que a adaptação do romance?
Para ser rigoroso, diria que Bovary é também uma adaptação do romance. Interessou-me pegar no julgamento de Flaubert, sob acusação de atentado à moral, como partida para esta adaptação. Como tal, parti da relação íntima que cada um de nós estabelece com um grande romance, como é Madame Bovary, fazendo-a acontecer paralelamente com o material histórico provindo do julgamento. Ao invés do encontro estrito com o romance, interessa confrontar essa mesma obra de arte com a sociedade, a lei e o Estado, à procura de descobrir como eles se relacionam com uma forma de arte que é simultaneamente crítica e intima. Esta mesma relação é avivada nos dias de hoje, tornando-se um assunto sobre o qual importa refletir.
É, então, através do julgamento que se conta a história?
É curioso constatar que, mais do que o próprio Flaubert, quem estava a ser julgado era a protagonista do romance, Emma Bovary – uma mulher em busca da embriaguez da felicidade, que a procura fora de todas as convenções sociais da época. Durante o julgamento, tanto a acusação como a defesa tratavam as personagens como se fossem pessoas reais, culpadas ou inocentes. Daí, o romance ir sendo constantemente citado, através das palavras e dos atos dessas mesmas personagens, como uma maneira de contar a história a partir do ponto de vista dos advogados de acusação e defesa. É, já em si, um debate dramatúrgico.
A tua admiração pelo romance foi determinante para o adaptar ao teatro ou pesou igualmente o facto de ter existido um processo legal contra ele?
A genialidade de Flaubert é ser lido hoje com a mesma intensidade e intimidade com que era há 150 anos. É muito estimulante lidar com uma obra de arte genial e preciosa na forma como usa a palavra e, ao mesmo tempo, abordarmos aquele processo que levanta questões prementes. Mas, se há algo que se sobrepõe a tudo é o mistério e “a inquietação injustificada”, para citar o romance, da personagem Emma. Esse é o verdadeiro motor da nossa adaptação.
Como é que este projeto nasceu e se desenvolveu?
Como em todos os meus projetos, o primeiro passo é descobrir o vocabulário que vou desenvolver. Bovary começou com uma conversa com a Carla Maciel, que pretendia fazer qualquer coisa em torno desta personagem. Como gostávamos tanto do romance, desafiámo-nos mutuamente. Depois, encontrámos cúmplices (o Pedro Gil, o Gonçalo Waddington e a Isabel Abreu). Formada essa família de atores, sem pensar ainda em papéis, preocupou-me o conceito de adaptação – iríamos deixar inspirar-nos pelo romance? Iríamos ser-lhe fiéis? Ou, quem sabe, iríamos subverte-lo? Até que surgem as atas do julgamento, e percebemos que seria aí que iríamos encontrar o mecanismo pretendido para o espetáculo.
Como é que descobriste essas atas do julgamento?
Apesar de haver alguma literatura sobre o caso, e ai ter começado por me basear, por mero acaso encontrei uma versão integral do julgamento em língua portuguesa. Foi quando estava a preparar o By Heart [espetáculo apresentado por ocasião dos 10 anos do Mundo Perfeito], e onde atuo com caixotes cheios de livros que tinham pertencido à minha avó. Num deles descubro uma edição de Madame Bovary dos anos 60, com o julgamento integral em apêndice.
Para quem desconhece a história do julgamento, qual foi o veredito?
Flaubert é absolvido, mas o julgamento serve como aviso. Assim, apenas uns meses depois, o mesmo advogado de acusação consegue condenar Charles Baudelaire pela obra As Flores do Mal, entretanto proibida. É curioso constatar como a França daquela época parecia esquecer os valores da revolução e assumia uma tendência conservadora, marcadamente instituída pela “boa moral cristã”.

Por falar nessa tendência conservadora, podemos considerar que Bovary surge na continuidade de um projeto como Três dedos abaixo do joelho, concebido a partir dos textos dramatúrgicos censurados pela ditadura portuguesa?
Podemos considerar que sim, mas não é um espetáculo semelhante. Acho que no meu percurso há questões que se repetem, há uma preocupação latente em relacionar-me com temas sociais e políticos. Se por um lado me interessa procurar mecanismos para contar histórias em palco, por outro não alimento um teatro de ilusão. O espetáculo tem de estar em aberto para o público criar, se assim o entender, as suas próprias ilusões. Em muitos dos meus trabalhos, parto de documentos reais que digerimos e manipulamos descaradamente para inventar um espetáculo. Não me interessa o rigor de um teatro documental que imite a realidade. O meu teatro é da ficção e da imaginação. Porém, quero que ele se relacione com o mundo…
Como um teatro de intervenção?
Não no sentido de intervir politicamente. No teatro que faço, e com as pessoas com que o faço, procuro uma expressão pública da minha intimidade. É no encontro entre a intimidade e o espaço público que se opera aquilo que podemos considerar intervenção. O mais político que creio existir nos meus espetáculos é assumir que quando nos expressamos surge uma relação direta com a política. No fundo, a minha intimidade (e a de todos nós) tem uma relação com a vida pública.
Este espetáculo encerra o Alkantara Festival , que pode muito bem ser o último devido aos cortes de financiamento na área da cultura. Sentes ser uma responsabilidade acrescida?
Sinto que é uma honra, mas também uma tragédia se assim for. O Alkantara é um festival de dimensão europeia que significou, ao longo dos anos, um enorme investimento em novos artistas e criadores. Faz parte de Lisboa, parte do país, e não pode ser visto como um custo. É lamentável que se condene um projeto desta importância à mera sobrevivência, por isso respeito a decisão de quem o dirige de acabar, caso se mantenham os atuais quadros de financiamento.
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