“Sempre que um nómada digital chega a Portugal 2 golfinhos saltam do oceano para fazer a forma de um coração.” A frase, em inglês, é acompanhada por uma imagem a condizer e está num dos autocolantes espalhados pelas paredes dos Coruchéus – Um Teatro em cada Bairro. São reproduções daqueles que Wasted Rita criou em 2022 e que batizou assim: I don’t know how to manifest, so passive aggressiveness and cynicism are my favorite forms of living [Não me sei manifestar, por isso, a agressividade passiva e o cinismo são as minhas formas de vida favoritas]. O título podia servir de resumo à sua obra e à exposição que inaugura este sábado, a que deu o nome de works from before hang out with works from now and works from between before and now, in the same room [trabalhos de antes juntam-se a trabalhos de agora e a trabalhos de entre antes e agora, na mesma sala].

No dia em que se celebra o primeiro aniversário dos Coruchéus, abrem-se as portas, às 16 horas, desta pequena exposição onde a artista reúne 37 peças (“algumas nem lhes chamaria peças, são só escritos que costumo ter na parede do meu ateliê”) e um vídeo. Um arquivo de trabalhos criados entre 2012 e 2024, que achou pertinentes para esta exposição. De fora, ficaram alguns mais antigos, sobretudo sobre relações interpessoais, que Rita Gomes considerou já não serem “apropriados”, e também “as peças boas, porque foram todas vendidas”, acrescenta, a rir.

Em cada uma, reconhecemos o seu tom característico, inundado de sarcasmo, de ironia, de niilismo e de acidez. Tal como tinha acontecido na exposição na galeria Underdogs, no ano passado, Wasted Rita volta a sublinhar a crise da habitação em Lisboa. “Penso que acaba por ser uma mostra da frustração de viver numa cidade com tanta especulação imobiliária. Mas aconteceu sem querer, sem eu pensar nisso. E até tem graça porque estão aqui trabalhos da época em que me mudei para Lisboa e em que ainda estava encantada. Pelos vistos, nunca me consigo ver livre da minha acidez!”, diz. “É o revisitar do meu processo de desencantamento com Lisboa. Neste momento, o que me liga à cidade é apenas o meu ateliê”, nota, congratulando-se por ter um espaço, que lhe foi atribuído, há quatro anos, no Complexo Municipal dos Coruchéus, o conjunto de edifícios em Alvalade, criado em 1970 para artistas plásticos.

Da angústia ao escapismo

misfortune messages (mensagens de infortúnio) foi a primeira peça que escolheu para expor agora: dois mupis cor de laranja, feitos a convite da GAU – Galeria de Arte Urbana há quase 10 anos, para um projeto que não chegou a avançar. Nunca foram mostradas neste suporte, apesar de terem feito parte da sua primeira exposição, impressas em pequenos papéis guardados dentro de bolas de plástico que se tiravam de uma máquina a troco de uma moeda: “Always be yourself unless you want to have some friends, then always be someone else” [Sê sempre tu próprio a não ser que queiras ter alguns amigos, se não, sê sempre outra pessoa]; “All you need is a nice-loooking ass and a cool pair of sneakers” [Tudo o que precisas é um rabo bem-parecido e um par de ténis cool].

Quase nenhum dos trabalhos é inédito, aponta Rita, uma vez que vai mostrando as novas peças no Instagram. No entanto, apenas três delas estiveram expostas antes. A tela T.I.R.E.D. – “All my friends are tired and underpaid” [Todos os meus amigos estão cansados e mal pagos] –, por exemplo, foi criada este ano e muito partilhada nas redes (por esta altura, o post soma mais de 15 mil gostos). Já o desenho de Gil, a mascote da Expo 98, em cima de um golfinho, sobre um fundo amarelo néon, com a frase “There’s nothing left to romanticize here [Não resta nada para romantizar aqui] esteve na galeria AINORI, em Lisboa, em 2023.

Numa vitrine, estão muitos dos “escritos” vindos das paredes do seu ateliê. “São coisas que tenho lá porque me fazem sentir mais sana e que quis trazer para aqui”, conta. Alguns são apenas rascunhos de ideias reunidas durante os processos de criação, folhas de vários tamanhos e de vários cadernos diferentes, uma delas pisada, outras rasgadas – mas todas com mensagens que não nos deixam indiferentes, sempre entre o riso e o amargo de boca.

Da angústia literal à “vontade de escapismo e de procurar outras oportunidades e outros caminhos”, Wasted Rita instalou num canto dos Coruchéus, pintado a amarelo, um ecrã onde passa, em contínuo, um vídeo da instalação cure my SAD, apresentada em Eindhoven, nos Países Baixos, no ano passado. Duas espreguiçadeiras e dois chapéus de sol num pedaço de areia era o cenário para um dispositivo de realidade virtual onde se via um outro areal só com toalhas de praia e vibradores. Aqui, retemos o vídeo dentro do vídeo de um pôr do sol sobre o mar onde corre um texto com reflexões existenciais sobre golfinhos e cachalotes. Este trabalho, descrevia na altura, “convida toda a gente a relaxar em relação ao presente e a preocupar-se com o futuro”. A acompanhar, um desenho “a pensar nos dias bons, de praia com os amigos, a beber água de coco”.

‘Do It Yourself’

Sempre ácida, como se reconhece, Rita Gomes vai fazendo das frustrações incentivos de criação – da aflição de se aperceber sem casa numa cidade cada vez mais gentrificada às estranhas realidades que vê em volta ou aos comentários que ouve na rua. Na vitrine dos Coruchéus expõe uma das peças mais causticas: um anúncio em forma de banda desenhada que inventou depois de, em Nova Iorque, ter sido seguida ao longo da rua por um homem que, do carro, lhe repetia que devia ter deixado o rabo em casa por ser demasiado distrativo e poder causar acidentes. “É isso que vou tentando fazer: transformar todos esses sentimentos em estímulos”, conclui.

works from before hang out with works from now and works from between before and now, in the same room não está numa grande galeria, como aquelas por onde têm passado as obras de Wasted Rita, no entanto, isso não a inibiu. “Comecei em modo Do It Yourself e em espaços pequenos e agora voltei a aceitar expor num lugar que, para mim, faz todo o sentido existir”, afirma. É quase um regresso ao início, mas cheio de bagagem, esta mostra de arquivo, que tem entrada livre e pode ser visitada até 25 de janeiro de 2025, de terça a sábado, das 13 horas às 19 horas. No dia 7 de dezembro, a artista faz ainda uma oficina de desenho para crianças dos cinco aos nove anos, e estão marcadas três visitas guiadas por Lénia Loureiro, da Divisão de Ação Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, a 30 de novembro, 21 de dezembro e 11 de janeiro (tudo requer marcação prévia).

Inspirando-se no seu trabalho, da poesia à publicidade, passando pelas peças de teatro, canções e filmes, a sala de teatro de Lisboa que se assume como um lugar para as crianças, os jovens e as artes, criou um pequeno programa a várias vozes, intitulado Ciclo O’Neill.

Susana Menezes, diretora do LU.CA, diz que quando se decide a fazer um ciclo temático é porque acredita que existe “um lugar de fala” e que se vão “acrescentar experiências várias e conhecimento” a quem visita o teatro. “Neste caso escolhi Alexandre O´Neill, porque é um sujeito singular na produção literária portuguesa do século XX, para além da comemoração, no final deste ano, dos 100 anos do seu nascimento. Talvez seja um tema pouco óbvio quando se trata de programar para as crianças, mas considero que esta é também a nossa função e objetivo, apresentar propostas artísticas que são alternativas, contextualizadas e na língua adequada, apontando para novos ou reinventados assuntos, para que as crianças e jovens de hoje possam conhecer outras leituras e descobrir o que ainda não conheciam”, diz.

Pensado em diferentes formatos, tempos e linguagens, a criação do ciclo contou com a colaboração determinante de Luís Leal Miranda, que escreveu o espetáculo central (a peça Um Poeta em Forma de Assim: visita guiada à cabeça de Alexandre O’Neill), cocriou a exposição e ainda preparou uma playlist. “Quando me convidaram para escrever um espetáculo sobre o O’Neill, percebi que não queria fazer uma biografia chata sobre o seu nascimento, onde estudou, o que fez, etc. Percebi que queria fazer uma coisa um bocadinho diferente”, adianta Luís. Na peça, cocriada por Malu Vilas Boas, contextualiza-se O’Neill numa viagem ao interior da sua cabeça, da sua vida e obra, um guia do Museu do Pensamento Poético leva o público numa visita guiada pelos objetos desta invulgar “cabeça-museu”, que permite conhecer de perto a forma de ser e escrever do poeta.

O espetáculo “Um Poeta em Forma de Assim” é uma viagem ao interior da cabeça do poeta. ©Enric Vives-Rubio

 

Além deste espetáculo, o Ciclo O’Neill compreende outros eventos para que os mais novos fiquem a conhecer este poeta português um pouco melhor. Entre eles, Tomai lá de O’Neill, uma playlist também criada por Luís Leal Miranda com músicas e poemas inspirados pela obra do escritor, uma espécie de banda sonora para um filme que não existe, mas que todos podem ir fazendo na sua cabeça. E há ainda Poemas para Estes Dias, uma programação online de poesia, interpretada por Miguel Fragata e Pedro Mourão, que levam ao site e às redes sociais do LU.CA poemas-vídeo do universo de Alexandre O’Neill. Porque não há hora certa para nos cruzarmos com palavras que nos despertam.

A exposição “A Loja a fingir do Museu Imaginário” é de entrada gratuita

 

Imperdível, A Loja a fingir do Museu Imaginário, uma exposição de Lavandaria e Luís Leal Miranda, disfarçada de loja de souvenirs, memorabilia ou recuerdos relacionados com a vida e obra do poeta. A mostra surge como complemento à peça de teatro Um Poeta em Forma de Assim, transformando-se numa delegação do Museu do Pensamento Poético. Nenhum dos artigos expostos está à venda, porque esta é, literalmente, A Loja a Fingir do Museu Imaginário.

A completar o ciclo, AlfabetO’Neill é uma oficina de Ana Ribeiro que tem como inspiração os poemas-comentários conhecidos como Divertimentos com Sinais Ortográficos, que Alexandre O’Neill escreveu para a revista Almanaque. Esta oficina convida os mais novos a divertirem-se fazendo desenhos com letras e brincando com o alfabeto mesmo que ainda não saibam ler.

Ao espectador, o único elemento entregue à partida é um título, “que se quer impactante”, e, depois, “um texto poético, cheio de paisagens e imagens”. A jusante, pretende Marta Lapa, “cada pessoa deverá fazer a viagem, incorporando e reconhecendo cenários numa leitura” guiada pelos corpos de quatro mulheres. O movimento coreográfico que protagonizam situa-se num espaço amplo e vazio, ocupado, num primeiro instante, de um modo quase harmónico, logo “mais confortável para o espectador”. Com o evoluir da “viagem”, dá-se uma espécie de “libertação” rumo ao “agradável abismo” em que os corpos de cada uma delas se reinventam e libertam.

A origem da peça remonta ao início deste século, quando uma pessoa que muito amou lhe legou a frase “este corpo já não me serve”. “Veio de um lugar trágico, mas também sublime, e colou-se-me desde então, sabendo que um dia conseguiria libertá-la do meu contexto biográfico e afirmá-la num objeto artístico”, esclarece Marta Lapa, salientando a vontade de prosseguir com esta peça a pesquisa em torno da “reinterpretação do movimento pelo corpo do outro”. Aliás, esta “investigação” coloca as suas criações, de novo, muito mais próximas da área da dança, de onde é oriunda, do que do teatro.

Através de audições, Marta Lapa chegou às atrizes Gracinda Nave, Catarina Rabaça, Júlia Valente e Teresa Moreira, selecionadas entre um último grupo de 12 que a encenadora afirma, “se tivesse orçamento”, gostar de ter integrado no projeto. Sobre as escolhidas, acrescenta: “é a primeira vez que estou a trabalhar com elas e tem sido absolutamente extraordinário a sintonia e a cumplicidade que estabelecemos entre todas”.

Na fase inicial do trabalho, “pretendi que estes quatro corpos e almas se apropriassem de códigos que eram meus, mas que depois viriam a tornar-se delas. A seguir, entre muita improvisação, muita troca de ideias, muita liberdade, dá-se a apropriação de um vocabulário coletivo, e daí surge esta dramaturgia construída”. Paralelamente, a atriz e autora Ana Sampaio e Maia já havia sido desafiada a escrever um conjunto de textos que acabariam, no melhor dos sentidos, por se revelar “profundamente poéticos”.

“O ponto de partida dado pela Marta foi a frase que dá título à peça”, lembra Ana que começou a escrever ainda antes de saber quais as atrizes que iriam interpretar o espetáculo. “A minha grande dúvida era perceber se aquelas palavras poderiam vir a servir aqueles corpos”. O certo é que o trabalho desenvolvido pela autora se revelou fundamental. “Todos os textos que ia escrevendo foram úteis para trabalharmos, mesmo aqueles que eram meras descrições de situações comuns”. Sendo, como sublinha a encenadora, “uma peça profundamente física, mais coreográfica do que verbal”, muitos deles acabaram por não ter espaço para integrar “vocalmente” a peça, embora tenham tido um papel “essencial” na referida “dramaturgia construída”.

Assumindo Este Corpo Já Não Me Serve como “um objeto artístico difícil, mas muito desafiador”, Marta Lapa sente tratar-se de um espetáculo capaz de “comunicar com o público, permitindo-lhe gozar de liberdade para incontáveis leituras”. Ao mesmo tempo, é “uma peça que se adequa perfeitamente ao contexto atual da companhia”, a Escola de Mulheres, que lidera com Ruy Malheiro desde o desaparecimento de Fernanda Lapa. “Consegui ter condições para trabalhar não com uma ou duas atrizes como vem sendo hábito, mas com quatro [mais Ana Sampaio e Maia, que também está em cena], e ainda continuar a afirmar a Escola de Mulheres como uma companhia assumidamente feminista.”

No Clube Estefânia a partir de dia 6, Este Corpo Já Não Me Serve permanece em cena até 24 de novembro, de quarta a sábado às 21, e aos domingos às 18 horas.

Tem sempre a agenda bem preenchida, adivinhamos. Diz que gosta “de caminhar, cozinhar para os amigos e desenhar elefantes”, mas para Yara Kono também nunca faltam as idas ao cinema, aos museus ou às salas de espetáculos. Acaba de ver chegar às livrarias, quase ao mesmo tempo, dois novos títulos ilustrados por si: As Peças Mais Pequenas, da Planeta Tangerina, e Uma Casa é uma Montanha é um Chapéu, editado pela Trienal de Arquitetura. O primeiro, escrito pela jornalista Miriam Alves, leva-nos a descobrir o invisível, numa viagem científica a células, micro-organismos, átomos, eletrões e quarks… O segundo é um livro táctil, com ilustrações em alto relevo e texto impresso em letras generosas e em Braille – um objeto acessível, de cores vivas, que nos fala de casas em todas as suas dimensões, das suas formas básicas às ruas e às paisagens onde se inserem.

Patrick Shiroishi e PMDS

5 novembro, 21h
Galeria Zé dos Bois

Se não fosse ver a Luana do Bem ao Tivoli neste dia (“não vou recomendar, pois já está esgotadíssimo”), Yara Kono escolheria este concerto. “De tempos em tempos vou espreitando a programação da ZDB e acabo por ir a alguns concertos, à descoberta. Fui espreitar os trabalhos de Patrick Shiroishi e de PMDS e o género musical agradou-me.”

“Algo Que Jamais Tem Fim — Obras de João Hogan da Col. CGD”, no Panteão Nacional ©Raquel Montez

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Alexandre Estrela: A natureza aborrece o monstro

Isabel Carvalho: Editoria Errância

Até 2 fevereiro
Culturgest

João Hogan: Algo que jamais tem fim – Obras da coleção da CGD

Até 1 dezembro
Panteão Nacional, Igreja de Santa Engrácia

Por acompanhar de perto a programação da Culturgest, Yara aconselha estas três mostras. “Costumo ir sempre que há exposições, porque gosto da curadoria do Bruno Marchand. E já que falamos de Culturgest, fã de podcasts que sou, não poderia deixar de mencionar a sua revista sonora, o Projeto Invisível, de que fiz a ilustração da capa do número 1.”

Narrativas do Eu, entre o público e o privado – Livros de artistas mulheres na Coleção da Biblioteca de Arte

Até 12 maio 2025
Átrio da Biblioteca de Arte Gulbenkian

“Gosto muito de ir à Gulbenkian, seja para estar com os amigos, ler, desenhar ou simplesmente passar o tempo no jardim, visitar as exposições e ir a concertos”, conta Yara, que ainda não conseguiu ir ver esta pequena exposição sobre a qual tem muita curiosidade. Deixa ainda uma nota: “Para quem não sabe, a Biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian tem uma incrível coleção de livros de artistas, que estão disponíveis para consulta durante a semana”.

“Tabu”, de Miguel Gomes

LEFFEST – Lisboa Film Festival

Mémoires de Palestine, de Serge le Péron

10 novembro, 16h
Cinema Nimas

Tabu, de Miguel Gomes

10 novembro, 19h
Cinema São Jorge

O filme de Serge le Péron em que Leila Shahid, antiga representante da Autoridade Palestiniana em França e na Europa e voz essencial na defesa da Palestina, partilha as memórias da vida da sua mãe, Sirine Husseini Shahid, é uma das escolhas de Yara Kono no cartaz da 18.ª edição do LEFFEST – Lisboa Film Festival, que começa já a 7 de novembro. A outra, o filme de Miguel Gomes, que integra a retrospetiva dedicada pelo festival ao realizador, com todas as suas curtas e longas metragens: “Já vi e gostei muito”.

O filme narra a vida de três elementos da mesma família que, apesar de estarem em diferentes fases da vida, querem libertar-se do que os atormenta. Qual foi o ponto de partida para esta história?

Independentemente da geração, há sempre algum tipo de descontentamento, é algo transversal a todos nós. O filme como princípio parte um pouco dessa ideia. Mas, o início da história, o enredo propriamente dito, começa quando fui para o Porto escrever o filme. Regressei dos Estados Unidos, onde vivia, e comecei a procurar casa. Contactei um senhorio que me disse que não podia mostrar a casa, mas que o atual inquilino, que estava de saída, o poderia fazer. Toquei à campainha e veio à janela um senhor fardado, um GNR, disse-me que ia gostar muito da casa porque tinha uma vista desafogada sobre o Porto. Entretanto, a vizinha do lado, vem à varanda, interrompe a conversa e, muito simpática, apresenta-se. Acabei por ficar com a casa e uns tempos depois, a tal vizinha vem falar comigo e diz-me que está triste por aquele sujeito se ir embora, mas oferece-se para ajudar caso eu precise de alguma coisa. Então, de repente, achei que havia qualquer coisa de bonito nisto, que de repente estava a ocupar o lugar de outra pessoa, um personagem que não era eu, mas que ao mesmo tempo tinha uma determinada função. Há aqui um equilíbrio, neste jogo de troca de papéis e dentro das nossas fantasias betais. A partir daí comecei a construir a ficção, não há qualquer tipo de relação com o real, nem relativo a ninguém. Comecei a imaginar uma mãe que vive com o filho, que usa a farda do vizinho com quem a mãe fantasia. O princípio era que o enredo criasse um desencontro, mas através da montagem há uma proximidade. Há aqui quase uma estranheza, porque a montagem aproxima e o enredo separa.

Os personagens estão todos ligados a algum tipo de transgressão ou a um desejo oculto. Esta é uma temática que tem interesse em explorar?

Para mim a ideia é mais esta: a transgressão está ligada a um certo imaginário. Tento sempre mostrar nos meus filmes que grande parte dessas limitações e dessas questões são imaginárias. Não sinto que seja transgressivo, o que sinto é que provocamos muitas vezes na nossa cabeça narrativas de transgressão. Por exemplo, acredito que o filme tem qualquer coisa de queer, mas queer é uma coisa muito mais ampla do que aquilo a que se resume o seu significado e que é uma coisa estereotipada, uma espécie de identidade. Tenho uma posição contrária, acho que é importante a quebra das identidades, acho que nos resumem, ficamos presos nelas, são uma farda: eu sou mãe, eu sou mulher, eu sou marido, eu sou gay, eu sou hétero, eu sou bi. Percebo que isto foi necessário para reivindicar direitos, mas o meu instinto é sempre partir essas coisas todas, é essa a minha perceção do mundo. Vamos sendo, não temos de ser sempre a mesma coisa.

Falou da questão queer. De facto, no filme, a sexualidade está sempre ligada a esses desejos ocultos.

Quando digo queer é num sentido de desconstrução do paradigma, porque acho mesmo que tudo o que é paradigma limita e de repente deixa até de fora a possibilidade de se fazer uma viagem de encontros e desencontros. Quanto à história específica da sexualidade, todos as personagens, embora em realidades completamente diferentes, vivem igualmente momentos de confusão e dúvida. O Vítor no fundo está apaixonado por um sujeito, que provavelmente viu no TikTok ou outra plataforma do género, e tem uma relação absolutamente ilusória com um corpo perfeito. A mãe, a Fátima, tem uma ligação com o prédio da frente, em que as janelas podiam ser profiles e, portanto, de repente também há aqui uma interação com o desconhecido, que serve para suprir qualquer coisa. Ao mesmo tempo, temos a avó, a Júlia, que vive num lar e está com uma pessoa que é uma grande amiga, mas que diz ter recebido o espírito do marido. Então, entra numa confusão porque tem dúvidas se é o corpo da amiga ou se é o marido que está ali.

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A história espelha também a sociedade onde vivemos: as frustrações, a mentira, os desencontros, o folclore televiso. Esta visão de desesperança é de alguma forma influenciada pelas suas vivências?

Qualquer objeto artístico, seja cinema, música ou o que for, acho que reflete sempre a sensibilidade do autor. Na altura a minha avó estava num lar e aquela coisa de os utentes estarem todos numa sala, em frente a um megatelevisor, o discurso muito infantil, é uma dinâmica que tem algo de muito redutor. Tive necessidade de trazer isso para o filme.

Os ambientes e décors revelam o estado de espírito das personagens. Foi intencional?

Totalmente, sem querer ser pretensioso, tem tudo a ver com uma visão de cinema. Quando se acredita que o espaço narra tanto quanto aquilo que é dito, tudo acaba por contar alguma coisa. Sem dúvida que o princípio foi esse, que os mundos de cada um refletissem de alguma forma algo que é interior. No filme o exterior, ou seja, o espaço aparece como um espelho do interior.

Há uma estética que lembra o realizador Pedro Almodóvar. É uma inspiração para si?

Sem dúvida, é alguém que inclusive me marcou muito no passado, quando eu era muito jovem. Para mim é quase impossível não fazer cinema dentro de uma determinada família. Há um diálogo com vários realizadores. Vamos aprendendo com quem nos inspira e a partir daí entramos em diálogo. E, sem dúvida, o Pedro Almodóvar é um deles.

O filme tem um elenco com atores bastante conhecidos. Foram as suas primeiras escolhas?

Desde o início, mesmo quando estava a preparar o guião, sabia que os atores iam passar muito tempo sozinhos e isso para um ator, imagino que seja, das coisas mais difíceis. Então o meu princípio foi quem é que eu sinto que são as pessoas, daquilo que vi, que aguentam muito bem no silêncio. Quem são atores que estão mesmo muito bem sozinhos? A Sandra Faleiro para mim era uma evidência. E confirmou-se. Quando está sozinha ou quieta, a pensar, há qualquer coisa de magnético. O Carloto Cotta oferece um lado muito físico e concreto. E a Valerie Bradell é alguém que trabalha há muito tempo com a Sandra, têm uma relação mãe-filha por natureza. Quando conheci a Valerie e vi a dinâmica que existe entre elas, pensei logo, é a pessoa certa.

Em 2017 ganhou, em Berlim, o Urso de Ouro para Melhor Curta-Metragem, com o filme Cidade Pequena.  Qual a importância deste prémio e dos prémios de uma forma geral?

Objetivamente falando, acho que os prémios podem ajudar a que se consiga continuar a fazer filmes. É mais fácil conseguir apoio, porque há ali um voto de confiança. À margem disso tudo, do ponto de vista pessoal, toca-nos, é impossível não nos tocar. Perceber que existem três pessoas ou quatro, num júri, que ficaram particularmente tocados com o filme. É para isso que faço filmes, para tocar as pessoas.

Os simpáticos responsáveis e gerentes de quatro espaços de Lisboa apresentam de seguida alguns dos tesouros da gastronomia nacional.

Paula Mousinho e António Sales Nobre

Pastelaria Condes da Praia

Depois de se juntarem, como sócios, à padaria e pastelaria de fabrico próprio, Saquinho Dourado (localizada em Cascais e Caxias), Fabíola Landeiro e o marido António Sales Nobre quiseram apostar em algo diferente relacionado com a doçaria açoriana.

Escolheram a queijada menos conhecida – Conde da Praia – por ser a preferida de Fabíola e por estar ligada à sua naturalidade (a cidade Praia da Vitória, na Ilha Terceira). Anita Rocha, a confeiteira detentora da receita original, foi outra importante aliada para apresentar ao mundo o delicioso doce.

Foi este o ponto de partida para, recentemente, abrirem uma nova pastelaria em Lisboa que tem como gerente Paula Mousinho e que é o único espaço na capital que vende as queijadas e onde se encontram também outos produtos tradicionais açorianos como os bolos lêvedos (pão doce) ou os licores Abelhinha, feitos com aguardente vínica à base de mel.

Largo da Graça, 98

 

Edgar Marim

Mercearia Alentejano do Bairro

O melhor do Alentejo encontra-se no bairro de Benfica, numa mercearia que existe há vários anos e que tinha como proprietário um alentejano. Em 2021, quando o antigo dono quis deixar o estabelecimento, Edgar Marim, também ele alentejano, natural de Mina de São Domingos, resolveu pegar no negócio e investir num sonho antigo: vender produtos da sua terra natal.

A clientela é muito variada, há até quem venha de propósito do Barreiro para comprar produtos que já não encontra “nem no Alentejo de origem”. Neste pequeno, mas muito acolhedor espaço, o difícil é escolher entre as muitas especialidades: empadas alentejanas, torresmos do rissol, bolos da massa do pão, costas de torresmos, bolêma de gila, sericaia, queijos, compotas caseiras, enchidos, vinhos e pão, que chega todos os dias de diferentes partes do Alentejo.

Estrada de Benfica, 522B | T.933 836 478

 

Sara Lopes e João Martinho

Charcutaria Pitéu Transmontano

Situada numa zona movimentada, esta charcutaria tradicional, especializada em carnes curadas e embutidos feitos com ingredientes locais e métodos artesanais seculares, já existe há mais de uma década. Sara Lopes e o namorado João Martinho são, no entanto, os proprietários mais recentes do espaço que pertencia a um primo.

Sara tem raízes familiares na aldeia transmontana de Macedo de Cavaleiros e João sempre esteve ligado à agricultura. Este facto, aliado à vontade de ajudar pequenos produtores e a região de Trás-os-Montes e Alto Douro, levou-os a investir no projeto.

Das muitas iguarias à venda destacam-se os produtos de fumeiro – alheiras, butelos, azedos e presuntos de Mirandela, Vinhais e da Região do Barroso -, a carne mirandesa, os pastéis de Chaves, os covilhetes de Vila Real, as cascas ou casulas e ainda pão, azeites, vinho, queijo, castanhas e licores de ginja e cereja transmontana.

Largo Dona Estefânia 6A | T.910 947 215

 

Tiago Milheiro

Mercearia Poncha LX

Depois de muitas viagens à Madeira, Tiago Milheiro e Ricardo Costa, amigos de longa data, resolveram trazer até Lisboa as melhores iguarias madeirenses. O recente espaço, aberto desde maio deste ano, oferece uma seleção de doçaria tradicional, como broas de mel e manteiga, paciências, palitos de cerveja, diferentes variedades de mel, rebuçados de funcho, o icónico bolo de mel, saborosas queijadas e, claro, vinho da Madeira e poncha.

Quando a gerente Joana Pires se juntou à equipa, a ementa foi enriquecida com os “dentinhos”, petiscos gratuitos que acompanham as bebidas: tremoços temperados e amendoins, linguiça picante, saladinha de feijão ou queijo temperado. Há ainda pregos de vaca e de atum fresco com cebolada e vinho da Madeira e Nikitas, uma bebida refrescante que combina gelado com maracujá ou ananás.

Aqui, todos os produtos têm origem na “ilha das flores”, desde a água engarrafada aos refrigerantes, até à cerveja Coral.

Largo do Terreiro do Trigo, 12 | T.968 440 474

Mário Cláudio
Diário Incontínuo

Mário Cláudio iniciou a escrita deste diário aos 16 anos, e esses primeiros anos de escrita diarística impressionam logo pela segurança no estilo e pelo desassombro de algumas observações: “Só quando desacompanhado me sinto estável e seguro, e temo a cada passo a perfídia de um amigo. Quero-lhes bem, mas importunam-me por vezes.” [30.01.1959] A 7 de fevereiro de 1999 liga-se pela primeira vez à internet: “… o antecipado fascínio das viagens folheantes, o receio de me converter no abominável consumidor que nada retém”. Desse ano, até 2005, deixa aparentemente o diário em pousio e, no regresso, em julho de 2005, declara: “Será que é desta vez que encarreiro na escrita de um diário (…) Um diário alimenta-se das horas que fabricam a mocidade, quando tudo é escavação, ou das que pertencem à velhice, quando resta o inventário. Em nenhum destes lugares corresponde o diário a um exercício artístico”. Mas talvez nada traduza tão fielmente o propósito deste diário como a citação que Mário Cláudio retira de A Letra Escarlate de Nathaniel Hawthorne: “Sê verdadeiro! Mostra livremente ao mundo, se não o teu pior, algum traço pelo qual se possa inferir o pior”. [Ricardo Gross] Dom Quixote

Lionel Shriver
Vamos ou Ficamos?

Kay, enfermeira, e o marido Cyril, médico de clínica geral, felizes e enérgicos profissionais na casa dos 50, professam uma opinião pouco entusiástica sobre o aumento da esperança de vida: “Não estamos a viver durante mais tempo. Estamos é a morrer durante mais tempo!”. Acabaram de passar por uma experiência traumática: o pai de Kay esteve totalmente dependente ao longo de uma década e meia, numa condição de senilidade irreversível (“O facto de criaturas sobrevivem num estado avançado de decadência é antinatural”). Na noite do seu funeral, decidem que não querem viver uma situação semelhante e estabelecem o pacto de suicidarem-se juntos, assim que cumprirem os 80 anos. A partir desta premissa, a escritora e jornalista Lionel Shriver, vencedora do Orange Prize, concebe 12 imaginativos universos paralelos que correspondem a diferentes hipóteses de futuro para o casal. O romance Vamos ou Ficamos?, eleito Melhor Livro de Ficção (2021) pelo The Times, explora temas delicados como a mortalidade, a incapacidade física ou a demência, de forma por vezes provocatória e controversa, mas sempre original, inteligente e divertida. Minotauro

William Golding/ Aimée de Jongh
O Deus das Moscas

William Golding (1911-1993), Prémio Nobel da Literatura de 1983, foi professor primário e combateu como oficial da marinha britânica durante a II Guerra Mundial. O sucesso obtido com O Deus das Moscas (1954) permitiu-lhe abandonar o ensino, retirar-se para o campo, na sua amada Cornualha, e dedicar-se exclusivamente à escrita. As suas novelas alegóricas centram-se nas questões fundamentais do Bem e do Mal (exprimindo uma visão de que a humanidade tem uma tendência natural para o mal) e da possibilidade de redenção espiritual num mundo caracterizado pela ausência de Deus. O Deus das Moscas é uma alegoria, um romance profundamente pessimista escrito na sequência dos horrores da II Guerra Mundial, sobre a fragilidade da civilização. Um grupo de rapazes, colegas de escola, são os únicos sobreviventes de um avião que se despenha numa ilha deserta. As suas tentativas para se organizarem de forma civilizada colapsam gradualmente à medida que regridem ao estado selvagem, culminando com a morte sacrificial de um deles. Aimée de Jongh, premiada autora de novelas gráficas que vive e trabalha em Roterdão, adapta o célebre romance de William Golding, umas das obras fundamentais da literatura do século XX. ASA

Toni Morrison
Deus Ajude a Criança

Sweetness, uma negra de pele clara, é incapaz de amar incondicionalmente a sua filha que nasceu “negra como a noite, negra do sudão”. Apesar disso, Bride cresce e torna-se uma mulher belíssima e aparentemente segura, diretora de uma empresa bilionária de cosméticos. Contudo, quando é abandonada pelo homem que ama, a sua vida sofre uma mudança tão radical que lhe altera o próprio corpo: perde os pelos púbicos e a menstruação, desaparecem os furos nas orelhas e o peito trona-se raso como o de um rapaz. Bride regride implacavelmente em direção à criança assustada que fora na infância. Naquele que viria a ser o seu último romance, publicado em 2015, Toni Morrison (1931-2019), a primeira escritora afroamericana e a oitava mulher a receber o Prémio Nobel de Literatura, retoma a meditação sobre os temas da raça, género e beleza centrando-se nos temas dos traumas de criança e da cor da pele. Será que os golpes da infância infetam e nunca cicatrizam completamente? Presença

Isabel Lucas
Conversas com escritores

Gustave Flaubert tinha o entendimento de que a obra literária se bastava a si própria, acreditando mais na objetividade do texto escrito e menos na relevância da personalidade do escritor. Pelo contrário, há quem considere que a biografia do autor ajuda a entender a obra. Isabel Lucas, jornalista e crítica literária, que conduziu entrevistas modelares a vários escritores de renome, refere, entre muitas outras, da curiosidade que a move “pelo pensamento que [o escritor] é capaz de produzir a partir de determinada pergunta ou interpelação. É este um dos momentos mais fascinantes para quem entrevista: sentir que a pessoa que tem à frente está a ser criativa fora de escrita literária”. Este conjunto de 15 entrevistas aos escritores Lydia Davies, Elena Ferrante, Paul Auster, Zadie Smith, Teju Cole, Patti Smith, Javier Marías, Salman Rushdie, Jennifer Egan, Peter Handke, Don DeLillo, Julian Barnes, Jonathan Franzen, Rachel Cusk, Enrique Vila-Matas, Ludmila Ulitskaya e Edmund White, quase todas publicadas no Ípsilon, o suplemento do jornal Público dedicado às artes, está repleto desses momentos criativos. Entrevistas, realizadas por uma profissional ciente de que “o entrevistador é mediador, não protagonista”, que ajudam a moldar a imagem pública destes grandes autores contemporâneos. Companhia das Letras

David Machado
Os Dias do Ruído

Vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura, em 2015, com Índice Médio de Felicidade, David Machado está de regresso ao romance com Os dias do ruído, livro que explora as complexas dimensões do mundo contemporâneo. Fotojornalista de guerra, dois anos depois de ter matado um terrorista islâmico num café em Paris, Laura corre o mundo a promover o livro onde conta esse marcante episódio, enquanto prepara uma obra sobre mulheres que fizeram algo heroico. Admirada por muitos e odiada por tantos outros, Laura começa a receber ameaças de morte à medida que nas redes sociais se intensifica o debate em torno de questões como o feminismo, racismo e xenofobia. No início, a fotojornalista, que aparentemente vivia num pedestal mas no seu íntimo enfrentava uma incessante busca para saber quem era, desvaloriza as ameaças, porém, o ruído virtual torna-se avassalador. Decide então regressar a casa, a um sossego do qual não sabia precisar. É já sob a “proteção” do pai, com quem não fala há muitos anos, que relaxa, que cuida da mãe e resolve quezílias antigas. Contudo, a calma depressa se transforma em tempestade: Laura é atacada por três homens e o instinto de sobrevivência volta a apoderar-se dela. “Matar não é uma questão de certo ou errado mas de sermos ou não capazes.” [Sara Simões] D. Quixote

Pedro Prostes da Fonseca
Dependência Digital

O novo milénio assistiu à emergência da primeira geração globalizada que cresceu com a tecnologia digital, familiarizada desde a primeira infância com os telemóveis, os tablets e os smartphones. Pesquisas recentes mostram mudanças dramáticas nos comportamentos, atitudes e estilos de visa desta geração millenium. O problema atingiu uma tal gravidade que a Organização Mundial de Saúde resolveu integrar a compulsão para os videojogos na classificação internacional de doenças, na categoria de perturbações associadas ao uso de substâncias ou comportamentos aditivos. A caminho estará o reconhecimento oficial da dependência das redes sociais como patologia. A ausência do estigma associado às drogas ou ao álcool leva muitos pais a acordarem tarde para o vício digital dos filhos. Por vezes, ficam até satisfeitos pelos jovens preferirem ficar em casa a saírem à noite com os amigos, por uma ideia de segurança. Este livro retrata os vários tipos de dependências provocadas pelo uso excessivo da internet. Procura apresentar soluções relativamente aos desafios da era digital para governantes, técnicos de saúde, professores, mas, sobretudo, para as famílias. Dá voz a terapeutas, apresenta casos e testemunhos e sugestões de como lidar com a internet de uma forma saudável. Fundação Francisco Manuel dos Santos

Três metros e meio por dois – são grandes, as telas pintadas a óleo por Joana Villaverde, para a exposição My pleasure, patente no Pavilhão Branco das Galerias Municipais a partir de 31 de outubro e até 9 de fevereiro de 2025. Apenas uma obra, um pouco mais pequena, não é totalmente abstrata. Vigia representa a vista a partir do ateliê da artista plástica, instalado no Mosteiro de São Bento, em Avis, um espaço cedido pela Câmara Municipal e onde Joana fundou, em 2018, a sua Officina Mundi, lugar de portas sempre abertas. Foi ali que criou todas as peças que mostra agora em Lisboa e apenas por ali estar nasceu esta exposição, na qual apresenta, pela primeira vez, trabalhos sem qualquer expressão figurativa ou iconográfica. “É por ter este espaço e este tempo que fiz estas pinturas. Há um caminho que jamais podia ter feito se não estivesse em Avis, neste espaço e com este tempo. Artisticamente, cheguei a um lugar a que nem sabia que era possível chegar”, afirma. Por isso, chama a My pleasure “o retrato do privilégio de poder fazer em liberdade”.

Atelier de Joana Villaverde, em Avis @cortesia da artista

 

Nas pinturas espelha a sensação de plenitude e infinitude que tem por poder trabalhar num ateliê assim, mas também uma vontade de partilha e de relação com o mundo à sua volta, através de pinceladas feitas de gestos largos e fortes. “Como são abstratas, fui livre de me mover diante daquelas telas, foi um movimento físico importantíssimo. Sou pequena e as telas muito grandes, portanto, tive mesmo de usar força física. Foi como se fosse uma dança ou um desporto”, conta. “Neste processo de fazer, vislumbro a infinitude. Para mim um mundo novo. (…) É a enorme ambição de encher o vazio de silêncio”, escreve na folha de sala.

Reflexos do quotidiano

Olhando pela janela do ateliê, começou por pintar céus e apontamentos de terra no fundo da tela. No entanto, a realidade do mundo impôs-se e Joana Villaverde, revoltada com os ataques em Gaza, acabou por cobrir uma tela de vermelho. “Quando acabei estava mesmo maldisposta. Acho que era aquilo que precisava de pintar, era o que tinha de fazer perante o massacre em curso na Palestina, um lugar que já visitei três vezes e ao qual me sinto muito ligada”. Chamou-lhe simplesmente Vermelho.

Estar em Avis, diz, traz-lhe, afinal, uma maior consciência do mundo à sua volta. Longe de se sentir isolada, constata que tem mais tempo para ouvir e prestar atenção ao que vai acontecendo. Também por essa razão criou a Officina Mundi e a abre a outros artistas e à população, organizando residências, exposições e encontros com frequência. “A partilha deste lugar revela-se essencial, porque é demasiado belo para só eu usufruir dele. Tenho a noção do importante que seria termos todos este direito. Não me pertence, é público e assim deve ser.” Para a artista plástica, tudo se resume numa ideia: “Estarmos juntos, abertos, de forma honesta e darmos o melhor que temos uns aos outros”.

Atelier de Joana Villaverde, em Avis @cortesia da artista

 

Ao mesmo tempo e pensando naquilo que a levou a pintar Vermelho, Joana Villaverde escreve na folha da exposição: My pleasure acaba por ser “a contradição entre a liberdade e a asfixia, a minha liberdade e o colapso da humanidade”. São talvez reflexos do seu quotidiano, expressão que usa nesse texto, e obras que descreve como “céus verticais” com as cores que foi experimentando e misturando nas telas. Numa das outras pinturas, horizontal, confessa que se entregou a tonalidades que antes rejeitava: o roxo e o lilás. Deu-lhe o nome de A cena dos violinos, porque foi também um instrumento com que não simpatizou durante muitos anos… até se ter disposto a ouvir com mais atenção. “Estou mais apaziguada agora”, admite.

My pleasure tem curadoria de António Pinto Ribeiro. De entrada livre, pode ser visitada de terça a domingo, das 10 às 13 horas e das 14 às 18 horas. Joana Villaverde dá as boas-vindas: “Foi com prazer, faça o favor de entrar.”

25 anos de carreira é um número bastante respeitável. Como é que isso te faz sentir?

É muito raro olhar para trás, acho que não faz parte da minha personalidade. Portanto, quando penso que faço isto há 25 anos, isso é uma coisa meio abstrata, não sei exatamente o que isso quer dizer. De facto, são muitos anos a fazer uma coisa específica, mas mesmo assim acho que o meu pai foi mais tempo bancário do que eu músico, o que eu acho muito mais difícil [risos]. Tem sido uma viagem incrível de conhecer muitas pessoas e de fazer muitas loucuras, o que me leva a achar que ainda quero fazer isto, pelo menos, mais 25 anos…

Portanto, não és uma pessoa nostálgica?

Não, muito pouco. A maioria das pessoas da minha idade, ou ainda mais novas, ainda ouvem a mesma música que ouviam quando tinham 20 e tal anos. É muito raro eu ouvir uma canção que tenha 20 e tal anos. Diria que 90% da música que ouço hoje foi feita na semana passada. Portanto, não tenho mesmo dentro de mim aquela ideia de relembrar uma coisa antiga. Interessa-me muito mais o que vai acontecer. E por isso é que eu tenho sempre dez planos, dos quais não cumpro nem oito porque não tenho tempo, mas gosto muito de olhar para a frente e perceber o que ainda posso fazer que seja interessante. Vivo muito no momento do presente.

Still ’25 é o nome da digressão atual. Se voltasses a ter 25 anos, farias tudo igual?

Faria melhor, espero eu, porque demorei muito tempo até entender o que é que efetivamente queria fazer no mundo da música. Nos primeiros dois anos de concertos dos Silence 4, lembro-me que subia ao palco, dizia boa noite, tocava, dizia obrigado no meio das canções e no final dizia “boa noite e até à próxima”. Não tinha mais nada para dizer, não fazia ideia do que era suposto fazer, o que é que as pessoas esperavam. Também acho que tem a ver com o facto de nunca ter sonhado ser músico, não era isso que queria fazer, foi um acidente na minha vida. Ao longo dos anos comecei a gostar mais de estar em palco, percebi que era uma oportunidade que tinha de extravasar o meu pensamento e começou a surgir a ideia de montar, não necessariamente um personagem, mas um espetáculo de duas horas e meia fabulosas, de sonhos, de loucuras. Isso atraiu-me, fez com que eu começasse a trabalhar cada vez mais na forma da apresentação, depois nos vídeos, e isso demorou uns bons sete, oito anos para arrancar, para chegar até aí. Por isso, se voltasse atrás, começava logo assim.

O que vai acontecer no palco do Coliseu nos dias 16 e 17 de novembro?

Vai ser uma espécie de súmula de uma coisa que andamos a fazer há algum tempo na estrada, uma abordagem mais multimédia de um espetáculo. Não é só uma pessoa a tocar canções ou a contar histórias. Engloba tudo isso e ainda algumas coisas inusitadas que já entram no campo da performance. Gosto muito da ideia de fazer um espetáculo que não pareça necessariamente um concerto de música pop. Quero fazer uma coisa que vai um bocadinho mais para um território das artes, que é, na realidade, o meu background. E isso foi uma das coisas com que lutei muito tempo. Porque é que eu queria fugir tanto do meu background, se era daí que vinha? Estive em Belas Artes e em Cinema, portanto é natural que, quando subo ao palco, queira trazer essas experiências também. Por isso é que o espetáculo acaba por ser uma surpresa para as pessoas, porque não é uma coisa muito normal. Às vezes não quer dizer que seja melhor, honestamente. Faço estas coisas porque estão mais próximas de quem sou, e acho que é isso que as pessoas querem ver: a personalidade de quem está em palco…

Até porque é tudo feito com muito rigor, desde as letras, à música, à parte visual, guarda-roupa, fotografia… controlar tudo isso deve ser muito cansativo…

É muito cansativo, concordo totalmente [risos]. Controlo tudo, mas não queria nada. É um traço da minha personalidade, há muito tempo que é assim; já tentei que não fosse, mas depois não corre tão bem. Se eu fizer o jantar em casa, é como se estivesse num restaurante. Cada coisa tem a sua tacinha, que tem uma cor… sujo muita louça, mas quando chegar à mesa quero que seja bonito, mesmo que me dê muito trabalho. Por exemplo, podia fazer um vídeo onde só apontasse a câmara e tocasse. Mas, não vejo interesse em fazê-lo. Para isso prefiro não fazer. Quando me lanço numa coisa, ela acaba sempre por ser um bocadinho mais difícil do que esperava. Posso pensar numa ideia relativamente fácil de concretizar, mas depois acabo por estar, às vezes, três semanas à volta de um pormenor que nem tem assim tanta importância. Penso que as pessoas entendem o que estou a fazer, mas depois esperam que faça sempre assim, o que não é bom [risos]. Às vezes, sinto que estou sempre a tentar tirar um coelho da cartola, o coelho está cada vez mais gordo, a minha cartola mais pequenina, e ele já não consegue sair tão facilmente. É o que sinto quando inicio tournées, ou tenho um disco novo. Mas isso é o que me faz ter ainda mais foco. Já fiz muitas coisas diferentes e tento sempre manter o nível de imaginação, de conceção. Não tem de ser necessariamente uma coisa muito complicada, mas tem de ser algo que eu acho que tenha a ver com esse projeto, com uma espécie de universo que criei e quero que continue assim.

“Estive em Belas Artes e em Cinema, portanto é natural que, quando subo ao palco, queira trazer essas experiências também”

Sendo um perfecionista, é-te difícil lidar com a falha?

Não, muito pelo contrário. Diria que em cada dez coisas, falho nove, mas acho que a grande vantagem – que talvez seja geracional – é que as gerações mais novas não conseguem lidar bem com isso e eu consigo. Até consigo lidar melhor com isso do que se algo correr muito bem. É uma coisa meio sueca. Quando corre muito bem, fico quase embaraçado. Mas quando corre mal, acho ser normal. Quando estou com a minha banda, seja a fazer uma fotografia ou um vídeo, tudo está a falhar quase sempre. De vez em quando, aquilo acerta e é essa parte que eu agarro. E por isso é que às vezes parece que está tão bem feito. E não é porque eu seja particularmente bom a fazer o que quer que seja, nem a tocar instrumentos, eu escolho é muito bem e não tenho problemas com a ideia de falhar. Inúmeras foram as vezes que passei dias no estúdio a gravar uma coisa que não coloquei na mistura final porque não me pareceu boa o suficiente.

Isso não é frustrante?

Não, porque acho que o que faz uma música boa não é o tempo que uma pessoa gastou nela. Já fiz canções que adoro em cinco minutos e outras que demoraram três meses. Não acho que uma seja melhor do que a outra por ter demorado mais tempo. As pessoas dão muita importância a essa ideia de subir a montanha e depois não beber água. Às vezes subo a montanha toda e só vejo a vista. Não bebo água nenhuma, não há nada. A expectativa é uma coisa terrível. Prefiro não ter expectativa nenhuma e depois o que acontecer pode ser que seja surpreendente. Não sou médico, não sou professor, portanto, não acho que seja assim tão importante. E isso é de uma liberdade gigantesca, porque assim faço as minhas maluquices e não tem problema nenhum, se correr mal, corre mal, pronto.

Já há material para o próximo disco?

Tenho muitas maquetes. Costumo fazer quatro vezes mais músicas do que aquelas que um disco tem. Isso é um truque que aprendi há muitos anos. Se eu tiver dez canções, são as dez canções que tenho no disco. Se eu tiver 40, as dez que estão no disco são as dez melhores. E esse ponto de comparação é muito positivo. Porque, para já, me põe logo num sítio muito crítico. Estou na fase de fazer canções, odiar umas e gostar mais ou menos de outras. Também acontece gostar muito de uma canção e no dia seguinte achá-la horrível, ou achá-la horrível e no dia seguinte achar mais ou menos. Há umas que vão e vêm assim a vida toda, e algumas nunca saem da prateleira por causa disso. Estou a tentar perceber qual é o caminho a seguir e como é que elas todas se juntam e que história é que contam.

É importante que cada disco tenha um conceito?

Gosto muito da ideia do conceito do disco e consigo identificá-lo em todos os que faço. Para chegar aí é preciso atirar muito barro à parede e a maior parte dele não cola. Mas é um processo um bocado caótico, não há uma receita. Acho que as músicas vêm do mesmo sítio que basicamente toda a arte vem, que é de nenhures. Vêm de um sítio meio secreto que tem a ver com um certo tipo de emoções. Depois tento traduzir isso para algo que outra pessoa consiga entender. A única coisa que faço com método é o tempo que uso no meu trabalho, como se estivesse num escritório. Isto foi um conselho que um professor me deu. Na faculdade tive uma disciplina de escrita de argumento, a que eu era péssimo, e um dos primeiros trabalhos era fazer uma curta-metragem. Na aula seguinte disse que não tinha tido ideia nenhuma e perguntei o que havia de fazer. Ele disse-me que eu tinha de arranjar um horário para escrever. E eu perguntei “o que é que acontece se eu não tiver ideia nenhuma na mesma?”, ao que ele respondeu “então ficas lá sentado”. Foi o melhor conselho que já ouvi porque ele tinha razão. Se eu estiver lá sentado, há uma grande probabilidade de, se acontecer alguma coisa, estar preparado. Se durante esse período eu estiver a fazer outra coisa, mesmo que a ideia chegue, não vou ter capacidade nenhuma para a agarrar. Portanto é um conselho que sigo à letra há muitos anos e que me tem ajudado a escrever muitos discos. Tudo o resto é um caos total, não faço ideia do que estou a fazer [risos]. Passo muito tempo em frente aos instrumentos, às vezes só a olhar para eles.

E deves ter muitos, não é?

Por acaso não tenho. Quando vou a casa de músicos amigos meus, a conclusão a que chego é que todos eles têm pelo menos cinco vezes mais instrumentos do que eu. Todos os músicos são loucos, adoram instrumentos. Cheguei a um ponto em que acho que já os tenho todos. Se tenho uma guitarra acústica, uma guitarra de nylon, uma elétrica, um baixo e dois sintetizadores, do que preciso mais? É que depois a casa parece um museu. Atualmente tenho a seguinte regra: se comprar um instrumento dou logo outro.

“O melhor elogio que se pode dar a alguém que fez uma canção é o artista desaparecer e a música ficar para sempre”

Em 2015 lançaste Futuro eu, um disco em português. É um processo criativo muito diferente do que estás habituado?

Na realidade, de vez em quando volto lá, mas não é assim tão fácil. Quando fiz esse disco não tinha prática nenhuma em escrever músicas em português, o que fez com que tivesse uma preparação muito melhor para esse disco do que para os outros, porque não tinha a mesma agilidade. Na altura passei três meses a escrever à máquina letras em português, textos, prosas e pequenas histórias, porque queria habituar-me à ideia de escrever na minha língua e saber como é que isso soava cantado, porque é completamente diferente. Passei meses a escrever, gostava do som da máquina, então escrevia, depois punha na parede, depois lia, depois tentava fazer pequenas músicas e odiava tudo. Portanto, levou um bocadinho de tempo até entender o meu lugar nessas canções. Mas, foi dos discos que mais gostei de fazer. Honestamente gostava de voltar a repetir essa experiência, mas tinha de ter um conjunto de canções que eu olhasse e pensasse que faz sentido. Gostava de fazer tudo em português, não queria misturar, no mesmo disco, músicas em português e inglês. Quero que sejam universos específicos. Talvez o próximo seja assim, ainda não sei.

Se pudesses escolher qualquer pessoa, com quem farias uma colaboração?

O Tom Waits. É um dos meus músicos favoritos, que ouço muito, adoro. Também gosto muito da PJ Harvey e da Roisin Murphy. Sou mesmo fã, adoro-a. Vou ver os concertos e grito muito. Ela tem um sentido de humor muito parecido com o meu, meio autodepreciativo, acho isso muito curioso. Em Portugal já trabalhei com muita gente com quem queria muito trabalhar, mas ainda falta gente de certeza… Talvez gostasse de participar em coisas com pessoas mais novas do que eu. No início da carreira, as pessoas têm uma vontade maior de fazer coisas um bocadinho mais fora da caixa e eu identifico-me mais com essa ideia do que com uma coisa um bocadinho mais confortável.

Até conseguiste convencer o Bruno Nogueira a entrar num vídeo…

Foi muito giro, porque quando o convidei para o concerto no Coliseu, disse-lhe que era para cantar e ele ficou um bocado nervoso. Eu disse-lhe que não podia ser só chalaças, que as pessoas iam adorar e adoraram, porque foi maravilhoso. O Bruno também sabe muito bem brincar com a persona dele. Quando fizemos o vídeo, uma das coisas mais impressionantes foi o quão bem ele fazia o playback. Fazia melhor do que eu [risos]. Havia pessoas que estavam completamente convencidas que era ele a cantar.

No próximo ano, os Silence 4 regressam aos palcos, com alguns concertos já esgotados. É apenas para matar saudades ou há alguma possibilidade de um regresso?

Os Silence 4 existiram num momento muito específico. Nem consigo imaginar o que seria agora juntarmo-nos todos outra vez, porque aquilo que nos levou a criar aquelas músicas tem a ver com uma fase em que nenhum de nós está. O que fizemos naquela altura foi uma coisa muito rara de acontecer, nem eu sabia o quão rara era enquanto acontecia. Foi um daqueles momentos onde se cria algo que vem de um sítio muito pessoal e muito emocional e nunca na vida se pensa se vai chegar a alguém ou não, e depois torna-se um verdadeiro caso de sucesso. E de repente aquelas canções já não nos pertencem, nada daquilo tem a ver connosco. As pessoas partilharam aquelas canções porque se lembravam da namorada ou de um encontro quando eram miúdos nos escoteiros ou num acampamento… e o número de histórias absurdamente bonitas que ouvi ao longo dos anos que têm a ver com os temas dos Silence 4 fazem com que eu ache que as canções ultrapassaram muito aquilo que levou à sua criação. Nem acho que a reunião seja muito acerca de nós. Acho que vamos lá tocar e as pessoas estão-se a borrifar para nós. O que mais querem é estar lá junto daquelas canções e relembrarem-se de um tempo, de uma coisa específica, de uma pessoa, de uma sensação. Acho que é isso que faz com que aquelas canções sejam tão absolutamente mágicas.

Como é que lidas com o impacto que as tuas músicas têm nos outros?

Honestamente, não acho que tenha muita responsabilidade nisso. No caso dos Silence 4, estávamos no sítio certo no momento certo e naqueles dois anos tivemos a sorte de as pessoas agarrarem aquelas canções como se fossem suas. Isso é algo que para mim ainda hoje parece absurdo. Há uma música no primeiro disco que se chama Angel’s Song, que escrevi por causa de um desamor qualquer. Na altura escreviam muitas cartas à banda, não havia emails nem redes sociais. Uma das cartas que me mandaram falava exatamente sobre essa música específica. Era de uma mãe cujo filho tinha tido um acidente de automóvel e tinha ficado em coma. A banda favorita dele eram os Silence 4. Então, os médicos, a certa altura, deixaram a mãe pôr a música a tocar ao pé dele baixinho, e ela punha sempre o nosso disco. O miúdo acordou do coma enquanto tocava essa canção. Então, a mãe atribuía o facto de ele ter acordado àquela canção. E eu lembro-me de pensar que aquela história era incrível. No fundo, as pessoas é que deram uma oportunidade para que tudo acontecesse dessa maneira nas suas vidas. Não acho que tenha sido eu, especificamente, ou a banda. E eu acho que isso talvez seja o mais bonito de tudo. Espero sinceramente que toquem estas músicas daqui a 30 anos e que ninguém saiba muito bem quem é que as fez. Isso é de longe a melhor coisa que pode acontecer a uma música, é o melhor elogio que se pode dar a alguém que fez uma canção: é o artista desaparecer e a música ficar para sempre. Isso é algo raríssimo de acontecer, mas quando acontece é absolutamente mágico. Era algo que tinha de ser, não acho que seja possível perseguir esse tipo de sucesso. Lançámos o disco em junho de 1998 e em dezembro estávamos no Pavilhão Multiusos [atual MEO Arena]. Isso não faz sentido nenhum, uma banda totalmente desconhecida de repente estar a tocar numa sala dessa dimensão. Isso faz perceber que era um fenómeno um bocado descontrolado. Confesso que só percebi o sucesso que tínhamos nesse concerto. Até aí, achava que havia uma data de miúdos malucos atrás de nós nos concertos, mas que eram sempre os mesmos. Quando se marcou o Pavilhão Multiusos eu disse que era melhor não porque era muito grande e que não ia aparecer ninguém. Foi aí que percebi que realmente a nossa música tinha chegado a muita gente.

Foi difícil para vocês, tão novos, gerir esse sucesso repentino?

Não é fácil gerir o sucesso e ninguém está habilitado para lidar com isso de forma repentina. Lembro-me de uma vez, no supermercado, só haver uma caixa aberta e quando chegou a minha vez as empregadas correram para a caixa para me atenderem. Tive momentos assim deste género, muito absurdos, de pensar, “mas porquê?”. Na minha cabeça, não fazia sentido aquele tipo de comportamento. De facto, passado dois ou três anos, deixamos de ser novidade e as pessoas já não ligavam tanto. Faço uma vida perfeitamente normal. Ando muito de metro e não sinto sequer as pessoas a olharem para mim. Acho que em Portugal as pessoas estão-se a borrifar para essa ideia da fama. A não ser os miúdos mais novos que gostam de outros miúdos famosos. Acho isso normal. Mas até acho ridículo que uma pessoa em Portugal – que é um país tão pequeno – se sinta importante. Sempre achei muita graça às pessoas que se acham muito importantes porque têm uma profissão que as torna conhecidas. Acho genuinamente piada porque não vejo onde está essa importância.

A rainha D. Maria II faz 27 anos e Eugénia Maurícia, camareira-mor de Sua Alteza Real, está decidida a fazer-lhe um bolo de agrião para comemorar. É um dia mesmo muito importante, até porque, por ocasião do seu aniversário, a rainha vai receber o maior de todos os presentes: vai ter um Teatro Nacional com o seu nome! Mas a tarefa não se afigurada nada fácil, especialmente porque a rapariga não se consegue lembrar da receita.

Enquanto tenta descobrir os ingredientes necessários, Eugénia, personagem aqui interpretada por Joana Brito Silva, vai percorrendo a exposição e, fazendo uso do seu espólio, vai contando a história do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II), desde a ideia da sua construção até à atualidade.

Joana Brito Silva interpreta Eugénia Maurícia, camareira-mor da rainha D. Maria II | ©Filipe Ferreira

 

“Neste percurso, passamos por vários espetáculos que foram encenados no D. Maria, falamos de várias pessoas que trabalharam no teatro, lembramos vários momentos políticos e da história do nosso país, e mostramos como é que o teatro nacional se foi moldando ou reagindo a esses mesmos eventos políticos. E, claro, como é que foi, também, influenciado por eles”, diz a atriz.

A Joana Brito Silva junta-se, adiante na visita, Mariana Fonseca, com quem divide a criação do espetáculo. A dupla é fundadora da Lobby Teatro, uma companhia que tem como propósito fundamental promover criações e textos originais de artistas emergentes, contribuindo para a renovação do tecido artístico, e que se destaca pelos seus projetos multidisciplinares e pelo trabalho que desenvolve no seio de comunidades que vivem situações vulneráveis, em locais com acesso diminuto à cultura.

Neste espetáculo, Mariana assume várias personagens, que vão aparecendo durante o percurso. “Interpreto a Dona Amélia Rey Colaço, que foi responsável pela Companhia do Teatro Nacional durante 45 anos; entro também como uma bruxa de Macbeth, a peça escocesa de Shakespeare; depois volto a entrar como uma capitã de Abril, e por último, sou a Dona Maria II, a menina dos anos”, adianta.

Algures durante o percurso, Mariana Fonseca interpreta uma Capitã de Abril | ©Filipe Ferreira

 

Na visita dirigida aos mais novos, além da história do teatro e da história do país, são abordadas uma série de questões importantes, como o racismo, a igualdade de género ou a importância da democracia e da liberdade. “A empatia deve ser cultivada desde pequeninos. Se os temas forem normalizados, eventualmente deixará de ser uma questão e isto é o cenário ideal”, acrescenta Mariana.

Precisamente por ser criado para crianças, O Bolo de Aniversário de Agrião revela-se um verdadeiro desafio para as atrizes. “A peça pede um diálogo quase constante e muitas vezes não se conquistam as crianças de forma imediata. Mas normalmente mantêm-se agarradas, até porque os adereços pedem isso. Há agriões a voar, panelas a arder, extintores para apagar o fumo… portanto achamos que o desafio está cumprido. Mas sim, é difícil”, admite Joana.

A exposição Quem és tu? — Um teatro nacional a olhar para o país reflete sobre a história do D. Maria II nos últimos 100 anos e a sua relação com Portugal. A partir de fotografias, trajes, maquetes, desenhos, filmes, objetos de cena e arquivo administrativo e criativo, é uma viagem que começa com a instauração da ditadura militar pelo golpe de 1926 e que explora as muitas realidades de quase um século de história, cada uma delas procurando o que existe de comum entre a memória coletiva e a identificação pessoal. A mostra pode ser visitada no Museu Nacional do Teatro e da Dança até ao próximo dia 29 de dezembro.

O Bolo de Aniversário de Agrião, a visita encenada a esta exposição, acontece nos dias 3 e 17 de novembro, e 1 e 15 de dezembro, às 10h30. A participação é gratuita, mediante inscrição prévia para se.mnteatroedanca@museusemonumentos.pt. Há também sessões para escolas agendadas de 27 a 29 de novembro, às 10h30 e às 14h30.

 

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