Como surgiu a sua ligação ao jazz?

A música faz parte da minha vida desde que nasci. O meu pai é músico profissional – embora não de jazz – mas sempre fez questão que eu ouvisse jazz desde bebé. Adormecia a ouvir discos de jazz. Acho que sou uma experiência científica de laboratório bem-sucedida [risos]. Mais tarde, quando o gosto pela música se tornou mais evidente, comecei a tocar clarinete numa banda filarmónica. Depois estudei clarinete clássico no Conservatório e na Orquestra Metropolitana de Lisboa. Em casa, tocava saxofone por cima dos discos, a tentar imitar o que ouvia. Nunca senti qualquer pressão do meu pai. Alguns professores de música erudita são pedagogicamente questionáveis (alguns são pessoas traumatizadas por professores que tiveram, o chamado trauma hereditário), apertam muito com os alunos. Mesmo quando eu estava nessa fase, o meu pai nunca me incentivou a estudar contrariado. A música tem de ser algo que faz o instrumentista feliz, temos de nos divertir a fazer isto. A única pessoa que apertou comigo para estudar a sério fui eu próprio. Para termos uma relação saudável com a música, só nós é que podemos ‘apertar’ connosco.

O saxofone foi amor à primeira vista?

Sim. Queria ter aprendido saxofone quando comecei a tocar clarinete, mas era muito grande. Tem esta particularidade de ser o instrumento que o meu pai toca, e os pais são sempre os nossos primeiros heróis. A minha mãe também tem um passado musical e chegou a fazer parte de uma filarmónica, onde também tocava saxofone. Eu podia ter escolhido qualquer outra coisa, mas tem piada esta coincidência.

Esta celebração na Culturgest é uma coincidência feliz: fazem ambos 30 anos este ano. De que forma surgiu a ideia de juntar os dois aniversários?

Já tenho uma relação longa com a Culturgest, já lá dei vários concertos. Desta vez pediram-me para pensar em alguma coisa específica para o aniversário, uma celebração em data dupla que não perdesse as propriedades desafiantes e intelectuais da agenda da Culturgest. Como o meu trio tem disco novo que ainda não foi apresentado em Lisboa, pensámos nisso para um dos concertos [o de 12 de outubro]. Para o outro [um dia antes, a 11], lembrei-me deste concerto de homenagem ao Charlie Parker com a Orquestra de Câmara Portuguesa, que é algo inédito. With Strings é um disco lindo de que toda a gente gosta, mas que não é muito tocado ao vivo. Sempre foi um sonho de infância poder tocar esse disco ao vivo.

Charlie Parker foi um músico à frente do seu tempo?

Todas as pessoas que são vistas como ‘alguém à frente do seu tempo’ eram precisas no sítio e no tempo em que viveram. Acho é que ele percebeu e conectou-se com a música de uma forma que não era muito comum na época.

Ser músico de jazz implica ter esse arrojo que Parker tinha?

Ele não teve outra opção senão ser arrojado. Sempre que criamos alguma coisa devemos dar o máximo sem pensar se é arrojado ou moderno. Isso, têm de ser as outras pessoas a avaliar. Há muita gente que não chega a ter grande reconhecimento pelo que faz, ou que não é assim tão genial ou mediático. O Parker – tal como outros músicos – era claramente genial, estava completamente alinhado com a história da civilização e da humanidade naquele momento para ser tão controverso, brilhante e pertinente.

A seu ver, existem universos musicais que não se podem misturar?

Acho que tudo se pode fazer desde que os músicos tenham bem presente e esclarecido aquilo que têm em comum. Se a mistura dos dois não mexe com nenhum princípio básico – embora possam passar a ser outra coisa juntos – penso que tudo pode ser feito.

Que outros heróis musicais gostaria de homenagear em concerto?

Já fiz alguns concertos destes, um deles ao meu grande ídolo musical – John Coltrane – que é alguém que não me canso de homenagear. Acho que em todos os concertos que damos homenageamos os nossos heróis musicais pelo impacto que tiveram em nós e com o que nos deram. Não preciso de tocar música do Coltrane ou do Charlie Parker para se notar que gosto do trabalho deles.

“Todas as pessoas que são vistas como ‘alguém à frente do seu tempo’ eram precisas no sítio e no tempo em que viveram”

Chasing Contradictions é o primeiro disco gravado em trio (sem o piano). Porquê esta decisão?

Em 2014, o João Pedro Coelho (pianista do quarteto) ainda estava a estudar em Amsterdão por isso passámos a tocar muito em trio, porque não havia ninguém que eu quisesse chamar para tocar piano em vez dele. Fomos desenvolvendo essa cumplicidade em trio, que temos vindo a aprofundar, mas temos conseguido manter estas duas bandas. Eu gosto desses dois sons, porque na verdade são duas coisas completamente diferentes. Durante a pandemia, a atividade musical abrandou um bocado e depois fizemos uma reunião do trio que durou três ou quatro dias. Já em 2021, o consulado português em Washington convidou-me para fazer um concerto gravado para o Dia Internacional do Jazz. Sou muito preguiçoso, mas um preguiçoso focado [risos] e pensei que, se esse concerto corresse bem, podia ficar gravado e fazia-se um disco. Gravámos o concerto no Teatro São Luiz e fizemos um disco com ele, tudo ao primeiro take.

De onde veio o nome do disco?

Todas as pessoas, nas suas vidas diárias, têm de aceitar umas coisas e perseguir outras. Às vezes criticamos uma coisa noutra pessoa, mas permitimo-lo em nós. Isso é uma contradição. Este disco representa toda a nossa herança e ligação à música jazz afro-americana que se faz a um nível elevado em Nova Iorque. Acho que conseguimos reunir esses princípios a um nível bastante simpático – não quero soar arrogante – mas com o nosso som, com sotaque daqui. A piada é conseguir manter tudo isso em tempo real a acontecer. Quando estás a tocar e vais à procura de certas coisas, tens de abdicar de outras, tudo isto são pequenas contradições. Isto dá voltas infinitas na nossa vida diária. É muito simples, abrangente e vago ao mesmo tempo.

Como olha para o jazz que se faz atualmente em Portugal?

Está melhor que nunca. Cada vez há mais jovens músicos a tocar muito bem e cada vez há mais informação. As escolas de jazz têm feito uma diferença brutal, vejo miúdos de 20 anos com um nível bastante bom. Por outro lado, também acho que, cada vez mais, as pessoas aprendem em massa e têm pouca conexão com a história da arte. Não é preciso ir ao Louvre ver a arte sacra toda porque isso pode ser uma seca, mas não deixa de ser lindo. É preciso é que as pessoas saibam que os pintores modernos incríveis conhecem arte sacra. Em todas as áreas da arte, o bom conhecimento faz-nos durar mais tempo porque nos dá fundamento. Hoje, para os jovens – e isto acontece em todas as áreas da vida – é tudo efervescente e fulminante. Vejo poucos a manterem-se porque se desinteressam… acho que a pessoa só se desinteressa quando acaba o assunto. Como é que se acaba o assunto de uma arte que tem séculos de existência e de história antes de mim? Vejo jovens músicos que apareceram depois de mim, que tocavam muito bem e que de repente estão meio estagnados. Quando reflito sobre isso, vejo que mais de metade da minha vida tem sido dedicada a isto. Eu gosto de música e quero tocar sempre o melhor possível – e, de preferência, que as outras pessoas também gostem do que faço.

Ao longo da sua carreira, tem tocado com grandes músicos, como Mário Laginha, Carlos Barretto, Bruno Santos, Júlio Resende, entre muitos outros. Há alguém com quem gostasse de trabalhar?

Até agora, o maior momento que tive na música portuguesa foi ter tocado em trio com o Camané e com o Mário Laginha. Era o melhor concerto de música portuguesa que podia fazer. Tem a parte do jazz de improvisação, tem a parte da música portuguesa – e aí acho que o Camané é o maior de sempre e para sempre. Nunca toquei com a Carminho e gostava de o fazer um dia, mas uma colaboração a sério, não é fazer uns solos num concerto dela. Gostei da forma como o Camané me convidou para tocar um fado tradicional do [Alfredo] Marceneiro em duo num disco dele.

Como correu essa experiência?

Achei incrível. Foi desconcertante, difícil, aliciante. Estar no estúdio a ouvi-lo cantar, fiquei a tremer. É completamente diferente tocar para uma voz em que tu és a banda. Tenho de moldar o caminho das notas à volta da voz dele para que se oiça a canção e os meus “comentários” à voz ao mesmo tempo, de forma minimal.

Como se gerem os egos dos vários instrumentos em palco?

Aí estamos todos em primeiro plano. Embora o saxofone seja um instrumento solista, a forma como tocamos em trio é muito triangular. Mesmo que seja o meu solo, é o solo deles a acompanhar-me. Há confiança e vontade de compreender melhor o outro. Não dá para tocar num nível alto havendo lutas de egos. A partir de um certo nível de seriedade e profissionalismo essas coisas não podem existir, o ego tem de ficar fora do palco.

Qual a maior gratificação que retira do papel de professor?

Neste momento não estou a dar aulas, mas acabo por ter uma presença bastante regular na cena musical dos miúdos mais novos que estão a aprender. No final de concertos ou jam sessions vêm falar comigo, sugiro discos, pedem-me orientações. Tenho todo o gosto em dar esse apoio aos que vejo que têm potencial e interesse genuíno. Se tenho aulas com alguém tenho de conhecer o trabalho dessa pessoa, mostrar interesse, e isso acontece muito pouco com os miúdos atualmente. Eles querem uma poção mágica e isso não existe.

Depois dos concertos na Culturgest, o que se segue?

No dia a seguir à Culturgest vou estrear uma banda nova internacional no Seixal a convite do SeixalJazz. Deram-me carta branca para estrear uma banda à minha escolha, e trago um baixista de New Orleans e um pianista polaco que vive em Copenhaga, mais o João Pereira [do trio]. Depois, vou estar em Castelo Branco, Madrid, Bilbao, Madeira… E espero gravar um disco, ainda este ano, com o quarteto.

Gustave Flaubert

Bouvard e Pécuchet

Dividido entre uma profunda necessidade de lirismo e o desejo de restituir “quase materialmente” o que via, Gustave Flaubert (1821-1880) encontrou no trabalho sobre a escrita, em busca da perfeição formal do estilo, a sua unidade enquanto artista, fascinado pelo verdadeiro e pelo belo. Nesta obra-prima satírica inacabada, o genial escritor empreende mais uma dura análise da vida do século XIX com um romance que pretendia ser “uma enciclopédia da estupidez humana”, como declarou numa carta dirigida a George Sand. Bouvard e Pécuchet reformam-se e começam uma nova vida no campo, dedicando-se, sucessivamente, às várias áreas do saber – agronomia, medicina, química, literatura, geologia, política, filosofia -, sempre com resultados frustrados. Retrato hilariante da fragilidade da sabedoria convencional, denúncia implacável da arrogância do conhecimento superficial e crítica mordaz à vacuidade da vida intelectual francesa. Jorge Luis Borges comparou Bouvard e Pécuchet com as parábolas satíricas de Jonathan Swift e de Voltaire, considerando que a novela antecipava o absurdo de Franz Kafka. E-Primatur

Fernando Namora

Jornal Sem Data

Fernando Namora nasce em Condeixa-a-Nova a 15 de abril de 1919 e morre em Lisboa, no dia 31 de janeiro de 1989. Licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1942, o jovem médico exerce a sua profissão de aldeia em aldeia, nas regiões da Beira Baixa e do Alentejo, antes de se instalar em Lisboa como médico assistente do Instituto Português de Oncologia. Esta experiência inspiraria alguns dos seus romances mais famosos como Retalhos da Vida de um Médico ou Domingo à Tarde. Na mudança para Lisboa, irá afastar-se do médico “para que o escritor pudesse persistir”. Homem do campo e da cidade, conhecedor de diferentes realidades sociais e dos dramas humanos, o escritor, dotado de uma profunda capacidade de análise psicológica a par de uma grande sensibilidade da linguagem poética, contribuiu para o amadurecimento estético do neorealismo e aproximou-se do existencialismo. Jornal sem Data é um notável caderno no qual o autor anotou os mais variados tipos de textos: crítica literária, política, pensamentos e memórias. “A literatura é um processo de libertação e, por conseguinte, aspira à liberdade. (…) Homem livre, pois, o escritor. (…) Tão necessitado de o ser, que nem sequer pode estar de acordo com certas situações para que ardorosamente contribuiu: seja uma sociedade burguesa, seja uma sociedade proletária, ele sempre encontrará razões para a sua insubmissão e para o seu inconformismo.” Caminho

Richard Russo

Um Homem a Meio da Vida

William Henry Deveraux, Jr, tem 50 anos e é diretor interino do departamento de Inglês da Universidade Estadual de Podunk, na cintura industrial da Pensilvânia. Este romance narra os meandros da vida universitária a que está sujeito, numa fase em que a instituição enfrenta pesados cortes orçamentais e despedimentos: rivalidades, traições, intrigas, vaidades e favoritismos. A narrativa segue as peripécias do protagonista durante uma semana particularmente azarada. Quando uma equipa de televisão filma uma reportagem junto ao lago da universidade, William agarra num ganso pelo pescoço e, sem pensar nas consequências, anuncia que mata “um pato” por dia até conseguir orçamento para o seu departamento. A atitude enfurece os colegas que se reúnem com o objetivo de o destituir do cargo e desencadeia a raiva das ligas de proteção dos animais. Nesta obra se lê que o “humor é um mau substituto da verdade”. Contudo, para Richard Russo, o humor afigura-se como o melhor processo de narrar uma verdade muito séria: a realidade de um país que não se interessa pelo ensino superior, em que a prosperidade da classe média pertence ao passado e em que as famílias enfrentam a degradação do nível de vida, o endividamento e o pavor de perder os empregos. Relógio d’Água

Salman Rushdie

Linguagens da Verdade

“Antes de haver livros, havia histórias”, escreve Salman Rushdie em Linguagens da Verdade, obra ensaística onde explora a natureza do ato de narrar como uma necessidade humana. O presente volume reúne textos de não-ficção – ensaios, críticas e discursos – escritos entre 2003 e 2020 que mergulham o leitor numa ampla variedade de assuntos que, em grande parte, se focam na relação do autor com a palavra escrita. Rushdie analisa o que as obras de escritores de Shakespeare e Cervantes a Harold Pinter, Eudora Welty e Philip Roth significam para ele, tanto na página impressa como a nível pessoal. Também a pintura de Francesco Clemente ou de Kara Walker lhe merecem análises perspicazes e inspiradoras. Simultaneamente, procura aprofundar a natureza da “verdade”, celebrando a vibrante maleabilidade da linguagem e das forças criativas que podem unir arte e vida, refletindo sobre temas como a migração, o multiculturalismo, e a censura. Revisitando o tema da natureza da amizade e do amor, rejeita a afirmação de Billy Cristal no filme When Harry Met Sally: “Homens e mulheres não podem ser amigos porque a questão do sexo está sempre no caminho”. Dá como exemplo a sua amizade com Carrie Fisher: “Foi uma amizade. Nada mais. E isso foi bastante.” Dom Quixote

Máximo Gorki

A Mãe

A obra de Máximo Gorki (1868-1936) centra-se no submundo russo. O escritor descreveu de forma vibrante os personagens que integravam as classes excluídas: operários, vagabundos, prostitutas, gente humilde, homens e mulheres do povo. Os autores realistas e naturalistas já tinham incorporado estes setores sociais na literatura, mas sem o sentido de autenticidade de Gorki que conhecia esse universo por dentro – ele próprio nascera na extrema pobreza – sabendo captar o que havia de mais profundo na alma do povo russo. A Mãe, romance publicado em 1907, narra o processo do esclarecimento dialético de uma mulher russa do início do século XX, e da sua transformação ideológica. A pobreza extrema, a violência czarista e a luta política do filho e dos seus companheiros de fábrica em prol de condições económicas mais justas, tornam-na consciente de um novo papel social que a liberta da submissão a que se encontrava sujeita pela ordem arcaica. A obra, que se encontrava esgotada em Portugal, faz parte da coleção Os Livros da Minha Vida do Clube do Autor. A presente edição deste clássico da literatura universal conta com tradução de Dina Antunes e prefácio de José Milhazes. Clube do Autor

bell hooks

Tudo do Amor

“Foi a sua ausência [do amor] que me fez perceber o quão ele é importante”, escreve bell hooks sobre a sua infância traumática. O trabalho de Gloria Jean Watkins (1952-2021), conhecida pelo pseudónimo bell hooks, incide na intersecção da raça, da classe social e do género, e nos modos como estas categorias produzem e perpetuam sistemas de opressão e dominação, reforçando a estrutura capitalista patriarcal. Tudo do Amor, ensaio marcadamente pessoal, repensa o significado do amor na cultura ocidental e propõe uma visão do mundo sob uma nova ética amorosa, procurando desconstruir lugares-comuns e representações que dissimulam relações de poder e de dominação. Contrariando o pensamento corrente, que tantas vezes julga o amor como fraqueza ou atributo do que não é racional, bell hooks defende que, mais do que um sentimento, o amor é uma ação poderosa, capaz de combater o cinismo, o materialismo e a ganância que norteiam as sociedades contemporâneas. Na cozinha de sua casa, a autora tem pendurada uma foto de um grafiti que viu nas paredes de um estaleiro de obras com a seguinte frase, pintada em cores vivas: “A procura pelo amor continua mesmo perante as maiores improbabilidades.” Orfeu Negro

Nadejda Mandelstam

Contra Toda a Esperança

Nadejda Mandelstam (1899–1980) ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Kiev, que cedo abandonou para se dedicar à pintura. Em 1919, conheceu Ossip Mandelstam, com quem casou em 1922, e de quem se tornou a primeira ouvinte, conselheira e crítica literária. Acompanhou o marido durante os três anos de exílio (1934–1937) a que foi sentenciado, e desde então consagrou a sua vida a uma missão: a preservação da obra do poeta. Na década de 1960 conseguiu enviar clandestinamente o arquivo de Mandelstam para ser publicado no estrangeiro. O livro de memórias de Nadejda abre com a frase: “Depois de dar uma bofetada a Aleksei Tolstói, O. M. regressou imediatamente a Moscovo”. O motivo da bofetada nunca será explicado. Dois dias depois do incidente, agentes da polícia secreta batem à porta dos Mandelstam e levam o poeta. Ao longo da obra procura entender a razão dessa prisão e centra a narrativa nos quatro anos que medeiam a primeira detenção, na noite de maio de 1934, e a sua morte, ou os rumores sobre ela, num campo de trânsito próximo de Vladivostok, algures no Inverno de 1938. As memórias constituem um valioso itinerário literário e biográfico dos últimos anos de vida de um dos maiores poetas do século XX e uma fonte imprescindível para sucessivas gerações de investigadores da sua obra e também da poesia modernista russa. Imprensa da Universidade de Lisboa

Se, à semelhança de alguns jornais ou revistas, nos coubesse apontar a quem se destina a mais recente produção dos Artistas Unidos, bastaria apenas socorrer-nos da opinião abalizada de Andreia Bento: Estava em casa e esperava que a chuva viesse é “uma peça para quem gosta de palavras, sentimento e atores.”

Arrebatada pelo texto desde a primeira vez que o leu, há quase 20 anos, a encenadora fala de “uma ligação inexplicável”, e do modo como desde daí lhe “ecoam palavras que parecem tocar no mais íntimo de nós”. A escrita de Jean-Luc Lagarce, classificada por muitos como “delicada, sofrida, dolorosa”, tem o mistério de se tornar “uma espécie de assombração.”

Tal como as “cinco mulheres suspensas, em casa, à espera do filho pródigo”, também Andreia Bento aguardou pelo momento de fazer a peça de Lagarce. Em 2016, para a rubrica Teatro sem Fios da Antena 2, os Artistas Unidos gravaram-na, e Andreia Bento interpretou a Filha Mais Velha (é assim, quase anónimas, que o dramaturgo francês apelida as suas personagens).

Mas, isso não era suficiente. A atriz e encenadora sonhava levá-la para o palco e, honrando uma ideia de casa – a que não é estranha a vontade de homenagear o mestre Jorge Silva Melo, autor de um livro intitulado A mesa está posta –, materializar em cena as figuras da Avó (Antónia Terrinha), da Mãe (Gracinda Nave), da Filha Mais Velha (Maria Jorge), da Filha do Meio (Raquel Montenegro) e da Filha Mais Nova (Sofia Fialho), e da casa que aguarda, algures no tempo e no espaço, a chegada do filho pródigo.

Assim, cumprindo uma vontade adiada, Estava em casa e esperava que a chuva viesse chega ao Teatro da Politécnica como o espetáculo de abertura da temporada 2023/2024 dos Artistas Unidos.

Sentimento e atrizes em estado de graça

Se, em Lagarce, “a ação é a palavra”, o seu teatro é o da “procura do outro, do encontro e do desencontro”, nota a encenadora. O grande mistério desta peça parece estar no porquê das cinco personagens femininas (as únicas em cena, embora se sinta, a cada momento, a presença espectral não só do filho, como do pai defunto) se terem resignado numa espera que parece eterna. Aquilo que sabemos, e que o próprio autor deixou escrito a esse propósito, é que “elas esperavam-no há anos, sempre a mesma história, e nunca pensaram que o voltariam a ver”. Um dia, ele, o Irmão Mais Novo volta a casa, mas é para morrer.

Neste vazio, percetível nos muitos “silêncios que vão pontuando a relação que elas estabelecem entre a vida e a morte”, cada uma partilha, em monólogos intensos e vividos – são episódicos os diálogos ao longo da peça -, a sua relação com a espera e o abismo em que mergulharam quando, por fim, essa mesma espera, que as deixou suspensas no tempo, terminou. E, pergunta-se: ainda haverá tempo para elas?

Na tristeza que atravessa toda a peça, o autor não responde, talvez porque, tal como muitos a entendem, Estava em casa e esperava que a chuva viesse é “a peça-testamento” de um homem que sabe que está a morrer (Lagarce tinha SIDA e faleceria em 1995, um ano após a escrita do texto). Mas, nas brechas de luz que irrompem, amiúde, nos olhares das irmãs, talvez haja um lampejo de esperança no horizonte.

E é, nessa tão notável gestão do tempo da perda e da desilusão com o das boas memórias e da crença, que sobressai o exemplar trabalho das atrizes. Como observa Andreia Bento, “este é um espetáculo no fio da navalha, onde é necessário gerir emoções e ter um imenso rigor emocional e físico.”

A partir da tradução de Alexandra Moreira da Silva, o espetáculo conta com cenário e figurinos de Rita Lopes Alves e luz de Pedro Domingos. Em cena até 21 de outubro.

A expansão da linha amarela do Metropolitano até ao Cais do Sodré, passando pelas freguesias de Campo de Ourique e da Estrela, prepara-se para conferir uma nova centralidade ao Jardim Guerra Junqueiro, comummente conhecido como Jardim da Estrela. No coração deste magnífico espaço verde de Lisboa, reabilitando o velho chalet construído em 1882 – outrora o primeiro jardim de infância do país -, nasce, este mês, um novo espaço para a cultura: a Casa do Jardim da Estrela – Um Teatro em Cada Bairro.

O novo equipamento pretende dedicar-se às questões do ambiente e da sustentabilidade, integrando, paralelamente à programação cultural, uma biblioteca especializada, e por isso mesmo distinta das bibliotecas generalistas vizinhas (a Biblioteca-Quiosque Jardim da Estrela e a Biblioteca/ Espaço Cultural Cinema Europa, em Campo de Ourique).

Contudo, como nos conta a coordenadora do espaço Vanessa Albino, a biblioteca da Casa do Jardim da Estrela terá a particularidade inédita “de vir a integrar uma secção inteiramente dedicada à literatura de ficção relacionada com estas temáticas”. Ao encontro da ficção que possa abordar problemáticas como a das alterações climáticas ou do aquecimento global, “prevê-se abrir todo um conjunto de linhas programáticas, dos clubes de leitura aos ciclos de performances e debates.”

No interior da Casa vai estar patente a exposição O Jardim da Estrela na evolução do espaço público de Lisboa.

 

Outra das novidades previstas para a Casa do Jardim da Estrela – Um Teatro em Cada Bairro é a instalação de uma xiloteca. “Tal como as bibliotecas reúnem livros, as xilotecas preservam e catalogam os diversos tipos de madeiras, sendo um tipo de ‘biblioteca’ que colhe muito interesse entre arquitetos e designers”, explica Vanessa Albino, lembrando que esta é uma valência rara, mesmo a nível nacional. Simultaneamente, é uma homenagem ao malogrado José Pinho que, enquanto diretor do Festival 5L, teve a ideia de dotar uma das bibliotecas municipais de uma coleção deste tipo. 

Uma ponte entre o ambiente e a cultura

Integrando muitas das ideias lançadas e discutidas junto das comunidades locais, tendo sido essencial o papel desempenhado pela Junta de Freguesia da Estrela junto da população e parceiros locais, a Casa do Jardim da Estrela propõe também “estabelecer uma ponte entre as áreas do ambiente e espaços verdes e a cultura”. Aliás, é da responsabilidade da Direção Municipal de Ambiente, Estrutura Verde, Clima e Energia a exposição inaugural O Jardim da Estrela na evolução do espaço público de Lisboa. A mostra procura desvendar a história do jardim, “desde a sua génese aos nossos dias”, destacando alguns segredos sobre o famoso coreto.

Antecedendo a inauguração oficial, agendada para as 15h30 do próximo domingo, a Casa do Jardim da Estrela – Um Teatro em Cada Bairro promove, já a partir de dia 21, um recital de poesia e música (Eis quando me ensinou a voz do vento, no coreto, às 18h30). Nos dias seguintes, à mesma hora e no mesmo local, a banda Mauger embala-nos ao ritmo da bossa nova, do jazz e da pop (dia 22), e os músicos do Hot Clube de Portugal ao ritmo dos standards.

Na programação de domingo, destaca-se uma oficina sobre a importância vital das abelhas nos ecossistemas (10h), um concerto pelo jardim da Farra Fanfarra (a partir das 14h) e uma performance com o coreógrafo e bailarino Pedro Ramos, da Ordem do Ó (às 15h15), antecedendo a inauguração oficial. A fechar o dia, numa parceria com a associação cultural Filho Único, os sons de São Tomé vão fazer escutar-se pelo jardim num concerto repleto de alegria com a Banda Leguelá.

A Casa vai ser cenário regular de oficinas, leituras, conversas e performances abertas a todos os públicos.

 

Na sua reabilitação e conversão, a agora Casa do Jardim da Estrela respeitou o projeto original do arquiteto José Luiz Monteiro (1848-1942), que por sua vez respondia às conceções inscritas no sistema de educação concebido pelo pedagogo alemão Friedrich Froebel. O edifício, que foi conhecido como Lactário e Creche do Jardim da Estrela, continua a privilegiar a relação direta com o meio envolvente, ou seja, o espaço do jardim.

Por esta razão, o novo equipamento cultural da cidade prefigura-se como um espaço ideal para realizar atividades e iniciativas que promovam a sensibilização e a consciencialização em torno das diferentes questões relacionadas com o ambiente, nas quais se incluem, por exemplo, a sensibilização para a perda da biodiversidade ou as diferentes perspetivas inerentes aos conceitos de sustentabilidade ambiental e literacia climática.

Recuando às origens do vosso trabalho conjunto, que circunstâncias conduziram a esse encontro?

Lander Patrick (LP) – Roça quase o acidente. Nós já éramos um casal. Uma amiga bailarina italiana organizava um festival na residência de uma família abastada. No caso de irmos como artistas, apresentar uma peça ou dar um workshop, eles pagavam a viagem e a estadia. Entendemos isso como umas férias e começámos a trabalhar em função dessas férias. Fizemos uma versão de 10 minutos do Cascas d’Ovo para passarmos essa temporada em Itália.

Partilharam ambos a responsabilidade criativa em cada projeto ou foram passando essa função de um para o outro?

Jonas Lopes (JL) – Cada projeto foi diferente. No Cascas d’Ovo estava o Lander mais a dirigir, depois na Matilda Carlota fui eu, fomos alterando um bocadinho, até que no Adorabilis encetámos a nossa primeira cocriação. Entretanto, cada um de nós teve os seus projetos com outras pessoas, mas o que fizemos juntos passou a ser sempre em cocriação. Agora, estamos novamente numa fase em que os interesses de cada um são diferentes, procuramos cada um novas coisas, e demos uma pausa ao trabalho de cocriação. Mas continuamos a trabalhar juntos, pois estamos em casa a discutir conceitos, a tocar músicas, a partilhar ideias de cenários. No nosso caso, a vida e a profissão misturam-se muito.

LP – Nesse sentido, os 10 Anos celebram o que aconteceu, mas assinalam a entrada numa nova etapa. Nesta altura estamos mais unidos pelo elemento música. Uma constante no nosso trabalho, que fomos desenvolvendo até ao Bate Fado, que marcou um clímax nessa relação entre música e dança. O Jonas está a desenvolver a sua carreira enquanto fadista, a aprofundá-la e a intensificá-la, de acordo com o historial do nosso trabalho, apresentando concertos em que o fado é sapateado [ou seja, “batido”].

O grande investimento na componente visual das vossas criações faz pressupor que sejam influenciados por artes como o cinema, a pintura, ou a banda-desenhada. É assim?

JL – As nossas influências podem muitas vezes até nem ser de teor artístico. Podem ser um objeto, uma imagem: o exemplo do Coin Operated, em que estamos sentados em dois cavalos, ativados por uma moeda, em que as pessoas contribuem para a performance acontecer. Aí as ações complementam-se, se ele toca viola eu canto. Essa ideia veio de um desenho animado. Mas em termos estéticos, o nosso mundo passa pela pintura, os olhos colocados em estéticas do passado, a revisitação dessas estéticas nos dias de hoje, através da moda e de cinema. E por vezes através das redes sociais, onde tens acesso à estética de outras pessoas que acabam por te inspirar.

LP – Essa relação com o lado visual presente no nosso trabalho, não diria que se liga a referências que possam lá estar, mas mais à nossa vontade de criar um mundo. Esse mundo que é som, imagem, movimento, cenário, luzes, traduz essa vontade da qual nascem os elementos visuais.

Qual foi visibilidade internacional que o vosso trabalho registou até hoje?

JL – O Cascas d’Ovo foi apresentado primeiro em São Paulo e depois em Lisboa. Na dança contemporânea, o território é muito mais internacional do que nacional. A oferta que hoje em dia existe a nível nacional, com a rede de cineteatros, tem aumentado, mas quando nós começámos eram poucos os teatros que tinham uma programação regular e séria de dança contemporânea, que tinham um público criado para ver esses espetáculos. Já a nível internacional, vais a uma terriola em França ou na Alemanha, e vês autocarros a chegar e os espetáculos a esgotarem.

Quais foram os critérios na escolha dos três espetáculos (Cascas d’Ovo, Coin Operated, Lento e Largo) que assinalam, no Centro Cultural de Belém, dez anos do vosso trabalho?

LP – A escolha resulta de um diálogo mantido com o CCB, tendo em conta os espetáculos já apresentados em Lisboa e os trabalhos que ainda queremos apresentar. Do nosso repertório, só duas peças já não estão em circulação.

O facto de serem dois a criar ajuda a ultrapassar eventuais bloqueios criativos de um ou de outro?

JL – Depende das fases [risos]. Não me imagino a fazer um solo; ele já fez um solo, a mim assusta-me a ideia de trabalhar sozinho. Acho incrível ter alguém com quem partilhar tudo. É óbvio que, às vezes, precisas do teu espaço criativo, precisas de experimentar coisas por ti só. Mas, no geral, o trabalho de um alimenta o do outro. Alimentam-se das curiosidades que cada um traz.

Os intérpretes que se juntam a vocês a cada peça passam por um processo de seleção ou costumam recorrer a pessoas que já conhecem de colaborações anteriores?

LP – A tendência é fazermos audições. Cria-se a oportunidade para conhecer novas pessoas. Temos também consciência de estarmos numa posição de empregabilidade. Mas por outro lado, o Lewis Seivwright está em todas as nossas peças desde 2017.

Os vossos trabalhos obedecem a uma estrutura narrativa ou trabalham por acumulação de ideias associadas livremente?

JL – Existem pontos de partida e depois cada peça vai ganhando vida e vai-nos dizendo o que necessita. Só nos apercebemos da viagem dramatúrgica de cada peça após a estreia. Sinto cada trabalho como um animal descontrolado que vai ganhando forma, e o monstro supera-nos. Nunca pensamos numa coisa de A a Z e depois vamos para estúdio fazer isto.

LP – Os pontos de partida, trabalhar em torno de uma referência ou de um acontecimento, são como sacos de desejos. Mas, é como o Jonas estava a dizer. Torna-se uma espécie de monstrinho que começamos por moldar até que ele ganha a sua própria autonomia, e nessa altura não podes imprimir os teus desejos a um objeto que já vai noutra direção.

Fantasia, sonho, futurismo, surrealismo, pós-humano, que importância têm estes ou outros conceitos no vosso trabalho?

JL – Creio que a nossa base vem do surrealismo e do ficcional. Existem criadores que lidam sobretudo com a realidade, que levam para o palco pessoas com roupas do dia-a-dia, com uma aparência mais quotidiana, e nós gostamos de trabalhar “aquela caixa” como uma máquina de ficção…

LP – Não significa que uma pessoa vestida com uma roupa casual não possa ser ficção. Mas nós gostamos de abusar dessa oportunidade que temos de remisturar símbolos, de brincar com os espaços.

Têm o desejo de um dia conceber um espetáculo com uma escala de grandeza comparável à do Cirque du Soleil?

LP – Nós já passámos por experiências tão diferentes, que encontramos pontos deliciosos em todas as dimensões. Já fizemos espetáculos no interior de uma casa de banho ou dentro de uma igreja, mas é evidente que temos curiosidade de experimentar o que seria fazer uma coisa megalómana, a loucura que seria. Outra coisa seria mantermo-nos só a fazer projetos dessa dimensão.

JL – Existe já há algum tempo o desejo de fazer uma ópera. Uma ópera que fosse criada de raiz. E aí já estaríamos mais próximos de trabalhar nessa escala. Existem ideias, vamos ver se alguma avança.

Disponível Passe Jonas & Lander no CCB (inclui Coin Operated, Cascas d’Ovo e Lento e Largo). Preço: 25€

Natália Correia marcou o século XX português pela personalidade desassombrada e pela extraordinária qualidade da obra que tocou todos os géneros literários: do barroco fulgurante do seu teatro, revisitação dos principais mitos da cultura portuguesa (O Encoberto, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, A Pécora), ao lirismo místico da sua poesia, da profundidade dos seus ensaios sobre a questão da Identidade (Somos Todos Hispanos) à adaptação dos mitos clássicos gregos ao Portugal contemporâneo patente nos seus dois principais romances (A Madona, A ilha de Circe).

Tal como a Feiticeira Cotovia (personagem do poema Comunicação, condenada às chamas “por prática de uma magia maior e estranha a que ela dava o nome de Poesia”), Natália tinha a convicção de que “as roseiras ao / é que dão rosas”. Por isso, nas palavras de Manuel Alegre, “desafiava os homens e os deuses, punha em causa a ordem e a moral estabelecidas, contestava as certezas e os dogmas, combatia todas as instituições e todas as tiranias”.

Dotada de uma personalidade fascinante e complexa, a escritora situava-se algures entre  o distanciamento e a generosidade, o desafio e a fragilidade, o sarcasmo e a ternura, a racionalidade e a magia. “A partir de agora, se alguém me quiser encontrarprocureme entre o riso e a paixão”, escreveu na Ilha de Circe.

Na madrugada de 16 de março de 1993, entrou na morte de olhos abertos. Porém, graças ao fulgor profético da sua obra, Natália continuará pelo tempo adiante. Ela prometeu: “Eu sou romântica. Não falto”. Que as celebrações do centenário do nascimento de Natália Correia contribuam para ajudar a cumprir o seu famoso vaticínio: “Vai ser preciso passarem duas décadas sobre a minha morte, para começarem a compreender o que escrevi”.

Seis livros de Natália

Aconteceu no Bairro

Aconteceu no Bairro, o seu primeiro romance, escrito aos 23 anos, percorre os caminhos do romance naturalista urbano. A obra narra as vivências dos moradores de uma rua imaginária de um bairro popular de Lisboa, ao longo de um dia de inverno, do amanhecer ao anoitecer, criando uma impressiva galeria de figuras do quotidiano da capital de finais dos anos 40 do século passado. Natália nunca amou tanto as suas personagens. Elas retribuem-lhe, assumindo uma pungente humanidade.

As Núpcias

O romance foi um género que a autora cultivou, espaçadamente, ao longo da sua carreira literária: Anoiteceu no Bairro (1946) foi o primeiro, As Núpcias (1992) o último, publicado um ano antes da sua morte. Nesta obra, à semelhança de A Madona (1968) e A Ilha de Circe (1983), adapta os grandes mitos clássicos ao Portugal contemporâneo fazendo reviver Isis, irmã e esposa de Osíris, na relação entre Catarina e André. Uma história de amor e morte, incesto e rebeldia no ambiente da burguesia do pós-25 de Abril, que inspira não só o talento satírico da autora mas também o seu misticismo revelado na confluência do sagrado e do profano, do masculino e do feminino.

Descobri que Era Europeia

“Foi na América que tive a grande revelação. Levava comigo as minhas raízes europeias.” Aos 26 anos, Natália Correia visita os Estados Unidos com o objetivo central de, a pedido de António Sérgio, solicitar a colaboração do líder do Partido Socialista dos Estados Unidos para a luta pró-democracia que se desenvolvia em Portugal. A prodigiosa lucidez e a penetrante capacidade de observação de Natália Correia conferem uma inesperada atualidade a este relato, tornando a sua leitura essencial para entender “os contrastes e agressivos antagonismos” de uma nação que, como escreve Ângela de Almeida na introdução à edição da editora Ponto de Fuga, que “tanto é a casa de Lincoln ou Luther King como a fábrica do Ku Klux Klan e do Watergate; tanto pode acender a luz de Obama como pode deixar deslizar as sombras de Trump.”

Antologia poética

“Em que ponto estarei da Eternidade?” Interrogou-se Natália Correia num dos seus Sonetos Românticos. Com organização, seleção e prefácio de Fernando Pinto do Amaral, a presente antologia poética, realizada tendo como base a edição mais recente da Poesia Completa de Natália Correia (Dom Quixote, 1999), destina-se a facultar aos leitores do século XXI uma visão de conjunto da grande poetisa. O critério posto em jogo para selecionar os poemas pretendeu obedecer a um equilíbrio (naturalmente sempre instável) entre o gosto pessoal do organizador e a representatividade dos diversos períodos da sua escrita.

A Pécora

Escrita nos anos 60, A Pécora seria a segunda peça de Natália Correia, depois de O Homúnculo (1965) e antes de O Encoberto (1969) a promover uma profunda reavaliação dos mitos da portugalidade. Neste caso, os milagres de Fátima. Narra, sucintamente, a história de uma prostituta (Melânia Sabiani) cuja morte é falseada, reaparecendo depois numa aparição que a torna santa. Um dos maiores êxitos do teatro português, em cena mais de meio ano no palco da Comuna, é ainda a única peça da autora interpretada internacionalmente. Luiz Francisco Rebello considerou-a “uma obra-prima da dramaturgia portuguesa contemporânea, não só pela perturbante novidade dos caminhos que ousa explorar como pela carga prodigiosa de imaginação a que dá livre curso.”

Antologia de Poesia Erótica e Satírica

De Martim Soares (1241-?) a Dórdio Guimarães (1938- 1997), esta célebre antologia, com seleção, prefácio e notas de Natália Correia, reúne oito séculos de poesia portuguesa erótica e satírica. Depois de vários livros seus terem sido apreendidos pela Censura do Estado Novo, a autora aceitou o convite do visionário editor da Afrodite, Fernando Ribeiro de Mello, para organizar esta antologia. Publicada em dezembro de 1965, prometia “a poesia maldita dos nossos poetas”, “as cantigas medievais em linguagem actualizada”, “dezenas de inéditos” e “a revelação do erotismo de Fernando Pessoa”. O escândalo foi enorme e a obra apreendida pela PIDE, com vários dos intervenientes julgados e condenados em Tribunal Plenário, num processo que se arrastou durante anos. A mais recente edição é da editora Ponto de Fuga.

 

Rabelais

Gargântua & Pantagruel

François Rabelais (1494-1553), escritor, médico e monge do Renascimento, publica, em 1532, Pantagruel sob a autoria de Alcofibras Nasier, anagrama do seu nome, obra censurada pela Sorbonne ainda controlada pela Igreja. Dois anos mais tarde narra a história de Gargântua, pai de Pantagruel, gigantes de apetite insaciável, dois primeiros volumes de uma pentalogia de romances. Num ambiente geral de diversão, Rabelais expõe ideias perigosas para a sua época: ataca a tirania da escolástica, a ignorância dos monges, o absurdo das guerras e condena a religião quando confundida com o poder temporal. Simultaneamente, cria um universo romanesco que integra todas as formas de expressão e todas variedades da língua e que funde comédia e emoção, mito e realidade, razão e delírio, cultura erudita e popular. Num ensaio que o filólogo e crítico literário Erich Auerbach dedica a Rabelais, entende o “pantagruelismo” como “uma maneira de apreender a vida que se apodera simultaneamente do espiritual e do sensorial, sem deixar escapar nenhuma das possibilidades que ela oferece”. A tradução é de Manuel de Freitas. E-Primatur

Rentes de Carvalho

Tempo Contado

Durante alguns meses de 1994 e 1995, abeirando-se da idade da reforma, Rentes de Carvalho sujeitou-se à disciplina de escrever um diário que se ocupa das suas observações, reflexões a agastamentos, entre Trás-os-Montes e Amesterdão, de cá para lá e de lá para cá, como tem feito toda a sua vida. No norte de Portugal, na aldeia da infância onde todos os anos reencontra a mãe, o escritor observa um país envelhecido, com cada vez menos pessoas, e vidas que se encerram entre quatro paredes à espera do fim. Na Holanda, as suas impressões vão mais para o meio literário, as celebrações vãs e a vaidade daqueles a que Rentes de Carvalho reconhece demasiada pompa para pouco talento. E vai escrevendo sobre aquilo que constitui para si este modo de escrita: “Ainda que evite revelações ou detalhes íntimos, o diário permanece um instrumento perigoso. Não para quem o lê, mas para o seu autor. Uma espécie de testemunha muda que conhece os pensamentos que originaram as palavras, conhece até ao detalhe as razões que levaram a filtrá-los, e a cada momento ameaça que se quiser pode apresentar queixa no tribunal.” Melancólico, lúcido e precioso. RG Quetzal

John dos Passos

Paralelo 42

John Dos Passos (1896-1934), filho de um abastado advogado norte-americano de origem portuguesa, foi o autor de uma série de obras literárias importantes na primeira metade do século XX: Manhatan Transfer e a Trilogia USA, que integra Paralelo 42, 1919 e The Big Money, agora reeditadas pela Presença, na exigente tradução de João Martins. Acusado, por vezes, de ser incapaz de criar e desenvolver personagens autênticas e de descrever conflitos emocionais profundos, criou, no entanto, um estilo caleidoscópio, experimental e modernista que constituiu um marco relevante, génese de muitos dos futuros desenvolvimentos formais da literatura norte-americana. Nestes romances entrecruza ficção com biografia de figuras reais (Henry Ford, Rudolf Valentino ou Woodrow Wilson), recorre a colagens de cabeçalhos de jornal, anúncios, canções, noticiários e discursos políticos da época e ao “olho da câmara” (fluxo de consciência que enfatiza o reflexo dos acontecimentos no interior do narrador), recriando a atmosfera do período. A grande Nação Americana, de 1900 a 1930, torna-se na protagonista da narrativa e é retratada de forma crítica como uma sociedade materialista à beira do declínio. Presença

João Melo

Exercícios e Linguagens

Nascido em Luanda em 1955, João Melo é mais conhecido em Portugal pelos seus livros de contos, mas faz parte de um grupo de poetas angolanos revelados editorialmente na década de 1980 e é considerado um nome incontornável da poesia angolana pós-independência. No conjunto da sua produção poética identificam-se cinco vertentes essenciais: “uma contida mas assumida linha lírico-intimista; uma linha claramente telúrica; uma ousada linha amorosa, com fortes e explícitas implicações eróticas; uma declarada linha sociopolítica; e uma linha experimentalista, assente numa busca multiforme de todas as possibilidades criativas do texto”. O autor resolveu selecionar e organizar cinco volumes que cobrem a sua poesia produzida entre 1970 e 2020, contendo alguns dos poemas já publicados, mas agora organizados tematicamente de acordo com as referidas vertentes essenciais. Esta quinta antologia representa a sua linha experimentalista. Segundo Tânia Macedo, o trabalho poético de João Melo “vincula-se estreitamente à tradição literária do seu país e, corajosamente, ousa novos caminhos continuamente”. Transcrevendo uns versos do poema A Lebre e o Cágado, podíamos afirmar que o autor procura “achar o ritmo certo / para a necessária mudança / das coisas.” Caminho

Joseph Roth

Job

Joseph Roth (1894-1939) nasceu em Brody, cidade dominada pela cultura judaica no extremo do Império Austro-Húngaro (atual Ucrânia). Em 1920 dedica-se ao jornalismo em Berlim e torna-se num dos grandes cronistas da Republica de Weimar. Assiste à crise da velha capital prussiana e ao avento do nazismo, manifestando na sua obra de ficção uma crescente nostalgia pela vida e valores do antigo Império Austríaco. Job, sobre o tema favorito do expatriado, retrata o destino e as provações de um patriarca judeu emigrado nos Estados Unidos, criando uma analogia com a experiência de fé de Jó, personagem do Antigo Testamento inconformado com o seu destino. A dúvida leva-o ao conhecimento e à entrega incondicional a Deus.  “Job é mais do que um romance e uma lenda, é uma obra poética pura e perfeita, destinada a durar mais do que tudo o que nós, seus contemporâneos, criámos e escrevemos. Na unidade de construção, na profundidade do sentimento, na pureza e na musicalidade da linguagem, dificilmente pode ser superado”, escreve Stefan Zweig no posfácio da presente edição. Relógio d’Água

Michel Pastoureau

Branco

Michel Pastoureau afirma que a cor não é tanto um fenómeno natural quanto uma construção cultural complexa, um facto social: “é a sociedade que ‘faz’ a cor, que lhe dá a sua definição e o seu sentido, que constrói os seus códigos e valores, que organiza as sua práticas e determina as suas implicações”. Este é um livro de história, o sexto e último de uma serie dedicada às cores, que estuda o branco nas sociedades europeias, do paleolítico aos nossos dias, sob todos os seus aspetos, do léxico aos símbolos, passando sobre a vida quotidiana, pelas práticas sociais, pelos saberes científicos, pelas aplicações técnicas, pelas morais religiosas e pelas criações artísticas. Segundo o autor, na sua maioria, as ideias associadas ao branco são virtudes ou qualidades: pureza, inocência, sabedoria, paz, beleza, higiene. Ao longo de séculos, na Europa, foi a cor da monarquia e da aristocracia nos cerimoniais e vestuário. Foi também, durante muito tempo, a cor do sagrado e da sua da encenação. Porém, “o progresso técnico e científico, entre o final da Idade Média e o século XVII, relegou esta cor, bem como o preto, à margem da nova ordem cromática, acabando por criar o seu próprio universo preto-e-branco.” Orfeu Negro

Joana Kabuki

Viradas do avesso

Três amigas que crescem em Lisboa, num lugar onde se podia brincar na rua, em segurança, são as protagonistas de Viradas do avesso, livro de estreia de Joana Kabuki. Berta, Alice e Carlota eram inseparáveis, até ao dia em que a imprevisibilidade da vida as leva a seguirem o seu rumo apartadas. Envolta em mistério, Berta foi a última a chegar à tranquila praceta onde moravam, mas um dia, ao voltar a casa, encontra os pais mortos. É então que desaparece sem deixar rasto, sem dar notícias às suas amigas durante mais de 20 anos. Até ao dia em que surge no consultório do marido de Alice e perante o medo de não ter oportunidade de dizer o que gostaria, segundos antes de ceder aos efeitos da anestesia, diz: “Doutor Gonçalo Furtado, diga à Alice que nunca me esqueci dela. Nem dela, nem da Carlota.” “Podemos fugir do passado, mas o passado não foge de nós e, mais cedo ou mais tarde, arranja forma de nos encontrar. Às vezes para nos atormentar, outra para nos redimir.” Um romance surpreendente, que nos leva a perceber que, muitas vezes, é o passado que nos ajuda a enfrentar o presente. “A morte apaga muitas coisas, mas não apaga o amor.” SS Clube do Autor

Pela primeira vez, a direção artística do São Luiz Teatro Municipal é assumida por um artista no ativo. Acha que isso é por si só razão para haver uma mudança substantiva no modo como se vê e se pensa este teatro?

Não gosto de grandes mudanças, não gosto de tábuas rasas e muito menos de revoluções. Sou por natureza alguém que gosta de conservar o que está bem, o que tem dado frutos e, neste caso, aquilo que tem promovido uma ideia de teatro municipal. Sendo um artista, tenho naturalmente uma visão artística para este teatro, como o Jorge Salavisa teve, embora quando o dirigiu não estivesse no “ativo”. E mesmo os meus antecessores, o José Luís Ferreira e a Aida Tavares, não sendo artistas, pelo seu tempo de convívio com eles adquiriram uma linguagem que facilitava a comunicação nesse sentido. Eles compreendiam o artista, não se limitando a uma visão administrativa ou burocrática.

Teremos, portanto, uma continuidade…

Digamos antes que estou a procurar melhorar aquilo que pode ser melhorado dentro do padrão anteriormente estabelecido pela Aida Tavares, numa aproximação suave, numa mudança aos poucos. Como sublinhei, não gosto de mudanças bruscas. Acho que na maior parte das vezes servem apenas para coincidir com a imagem que alguém tem de nós e, daí decorrente, de sentirmos a necessidade de fazer diferente.

A Aida Tavares esteve oito anos à frente do Teatro São Luiz. Há algum traço que gostaria de destacar nos seus mandatos e que, seguramente, terão continuidade no seu?

Reconheço que as aproximações que a Aida fazia ao tecido cultural do país através do São Luiz sempre me pareceram muito acertadas, e nesse sentido, aplicarei a minha visão, embora com posições diferentes acerca de um conjunto de coisas. Contudo, há uma trama que é comum: como dirigir um teatro com esta amplitude, responsabilidade e pergaminhos na cidade de Lisboa. Aí é que me devo pôr sempre, abdicando muitas vezes da minha personalidade.

Isto leva-me a perguntar como é que a personalidade do artista vai lidar com a missão do diretor artístico?

São, antes de mais, papéis diferentes. Estou à frente de um equipamento que faz parte da EGEAC, empresa que tem como missão gerir um conjunto de equipamentos culturais municipais e, portanto, desde logo é necessário responder à missão do São Luiz no conjunto do património gerido pela empresa. O que procurarei aplicar é um carisma próprio, um carisma no sentido religioso e que não tem a ver com personalidade. Ou seja, não estou aqui para impor, mas para dialogar no intuito de articular a herança desta casa com uma, duas ou três aberturas que proponho. Depois, veremos se isso tem acolhimento no que está estabelecido e no acordo que este teatro tem com a cidade.

É uma das primeiras escolhas do novo diretor artístico: o coreógrafo Miguel Pereira volta a apresentar a peça “Miguel Meets Karima” em dezembro.

Assumiu funções a 1 de junho. Qual foi o primeiro desafio que se lhe colocou?

O primeiro desafio foi dizer “estou aqui”. Comecei por chamar todos os artistas programados para esta temporada para lhes comunicar que, apesar de esta programação ser maioritariamente da responsabilidade da anterior direção artística, eu estou com eles. Um a um, tentei perceber a natureza de cada proposta e a partir daí estabelecemos cumplicidades, contrapomos ideias, etc. Com isto, procuro constituir diálogo, lastro e património na minha relação com os artistas. Naturalmente, tenho inclinações para determinadas linhas artísticas, mas enquanto diretor desta casa tenho que me abstrair…

E essas conversas têm sido importantes para o diretor artístico?

Claro que sim. Tenho falado com artistas com quem nunca pensei cruzar-me enquanto artista, e é nesse sentido que estou a considerar esta experiência muito enriquecedora, capaz de quebrar preconceitos que poderia ter em relação a determinadas propostas das quais me distanciaria de uma forma natural. Esta função está a obrigar-me a implicar com cada visão para perceber como podemos trabalhar para um bem comum.

“Sou por natureza alguém que gosta de conservar o que está bem, o que tem dado frutos e, neste caso, aquilo que tem promovido uma ideia de teatro municipal.”

Há pouco referia a importância de situar a missão do São Luiz no contexto da EGEAC, e uma vez que falamos de um teatro, e existindo outros dois teatros municipais naquele universo (o LU.CA e o TBA-Teatro do Bairro Alto), não seria proveitoso para a cidade um diálogo mais efetivo entre eles e, naturalmente, mais percetível pelos públicos?

Como artista coloquei várias vezes essa questão, até porque ao longo dos anos apresentei propostas tanto ao São Luiz como ao TBA. Aquilo que tenho notado é que há um ajuste de visões muito salutar e que vamos procurando estar em contacto para saber onde cada um de nós se encontra e qual é o sítio onde mais nos potenciamos. Tive recentemente uma reunião com a Susana Menezes [diretora artística do LU.CA, teatro municipal vocacionado para a infância] para clarificar a minha posição de não retomar o serviço educativo do São Luiz, isto é, de não programar para idades inferiores ao 9.º ano de escolaridade. Procurarei, isso sim, ter projetos vocacionados para a idade pré-adulta.

Quanto ao TBA…

Ainda não consegui reunir pessoalmente com o Francisco Frazão [diretor artístico], mas o TBA tem uma programação muito específica, que dialoga com determinadas franjas de público. Há uma diferença histórica para o São Luiz, que eu sempre vi como um teatro mais popular, desenhado assim pela própria memória histórica. Pisaram este palco grandes estrelas como Eleonora Duce ou Sarah Bernhardt, e isso leva-me a acreditar que o São Luiz – até porque tem uma sala, a Luís Miguel Cintra, com uma lotação de 600 lugares –, deve ser um teatro para receber espetáculos de grande dimensão e de grande apelo popular, sem com isso dizer que exclua os artistas novos. Terão é de ser artistas que não estejam necessariamente numa fase embrionária da pesquisa, que tenham já um discurso consubstanciado e afirmado.

Embora o São Luiz tenha ainda mais duas salas, a Mário Viegas e a Bernardo Sassetti…

Cada sala deste teatro permite aproximações diferentes, contudo pode haver uma proposta teatral, coreográfica ou musical que, embora não tenha ainda a sedimentação de público de grande escala, deva, pela natureza do projeto, ser apresentada na Sala Luís Miguel [Cintra] e não noutra. Ou seja, não há nenhuma regra que diga que o artista mais conhecido tenha necessariamente de ir para a sala maior e o não tão conhecido para a sala estúdio. Aliás, quero que isso se sinta na Sala Luís Miguel com um maior ecletismo de propostas…

Pode explicar?

Pretendo aumentar naquela sala a participação de outras disciplinas que não o teatro, ou seja, procurar uma maior paridade entre teatro, dança e música, e neste campo específico a música clássica e o jazz. No fundo, quero que o São Luiz seja menos uma sala de repertório e mais um palco municipal para os grandes concertos, para os grandes coreógrafos…

O cinema está de volta ao São Luiz com o ciclo “Topografias Imaginárias”, organizado em parceria com o Arquivo Municipal de Lisboa-Videoteca.

Por falar em concertos, a abertura da temporada faz-se com música, e tem já a sua assinatura…

É algo que quero que aconteça sempre na abertura de cada temporada: uma festa a assinalar o início das atividades. Já no dia 2, vamos ter na sala principal Suzie and the Boys com um espetáculo chamado A boémia de um cabaret sonoro. A Miss Suzie é uma artista que sempre habitou entre a performance e a música e surge aqui acompanhada de uma orquestra de músicos provenientes de bandas como Ena Pá 2000 ou Cais Sodre Funk Connection. Logo a seguir, subimos à Sala Bernardo Sassetti para escutar o projeto Zabra Soundscapes, do João Pedro Fonseca e do Manuel Bogalheiro. Este momento de celebração resume uma ideia de festa que desejo. Acho que o ato de ver um espetáculo, espetáculo esse que comporta uma visão artística do mundo, não se deve esgotar aí. Ir ao teatro deve ser um momento para estarmos com os outros, com os amigos. Uma celebração que traga consigo um sentido de festa, de nos expandirmos como que dionisiacamente, embora dentro das possibilidades daquilo que é um teatro municipal [risos].

Os primeiros meses desta temporada são muito marcados pelas escolhas da anterior direção artística. Quando começaremos a ver e a perceber a entrada em cena do Miguel Loureiro?

Embora o grosso da programação seja da Aida, há alguns espaços onde posso intervir. Para já, em outubro, há um ciclo de cinema sobre Lisboa, com curadoria da Ilda Teresa Castro, feito em parceria com o Arquivo Municipal de Lisboa, intitulado Topografias Imaginárias; e, em dezembro, teremos uma coreografia de início de carreira do Miguel Pereira, d´O Rumo do Fumo, estreada num Alkantara Festival há uns bons anos, Miguel Meets Karima. Para o ano, prevemos projetos com o MPMP-Movimento Patrimonial da Música Portuguesa e com a Orquestra Metropolitana de Lisboa; uma homenagem à Maria da Fé, que estamos a preparar com o Museu do Fado; um festival de jazz ao ar livre, que irá ocorrer em junho, aqui no Largo do Picadeiro; ou um ciclo de cinco, seis espetáculos, disseminados ao longo do último semestre, que pretendo realizar todos os anos, com foco num maestro, e que se iniciará com o Martim Sousa Tavares. Para além disto, tenho idealizado um espetáculo para assinalar o Dia Mundial do Refugiado, e que deverá envolver outros equipamentos municipais, e ainda um ciclo de pensamento que contará com nomes como Bragança de Miranda e Thomas Piketty. Mas, sobre tudo isto, falaremos mais tarde.

De certo modo, e embora esteja neste papel há tão pouco tempo, sente que o programador é também um autor?

Devo dizer que, como encenador, os meus últimos trabalhos tendiam a apagar essa coisa da autoria. O importante era criar as melhores condições para desenvolver os projetos e trabalhar com a comunidade de artistas que me acompanhavam. Enquanto diretor artístico, quero integrar a visão que tinha enquanto criador. Sabendo que este é o sítio de desenvolvimento das linguagens artísticas, e que estas são sempre implicadas e engajadas, é aos artistas que aqui se apresentarem que cabe intervir, colocar os problemas e filtrá-los através da arte. O meu papel é ser o anfitrião da “festa”.

Quando voltaremos a ver uma criação ou uma atuação em palco do Miguel Loureiro?

Neste momento, não sei. Uma coisa é certa, estatutariamente estou impedido de o fazer aqui. Agora, o meu compromisso é com a direção artística do São Luiz, no sentido de construir uma linha de programação e pensamento que continue a inscrever este teatro na cidade, neste preciso local que é o Chiado, procurando fazer sítio do sítio.

Cantora lírica de formação, Catarina Molder é a mulher por trás do Operafest. A diretora artística do festival que vai para a quarta edição conta-nos que esta aventura nasceu em plena pandemia. “A ideia já estava no forno há mais de cinco anos e arrancou no primeiro ano de pandemia. Era uma coisa que estava no meu coração há muito tempo porque fazia falta. Vai ao encontro das grandes carências do mercado operático português.”

A verdade é que, até ao aparecimento do Operafest, “não existia, em Portugal, nenhum festival que entrasse no roteiro internacional dos festivais de ópera de verão”. Em tão poucas edições, o festival já se afirma “como um dos festivais europeus mais fora da caixa, e isso deve-se ao facto de apresentarmos grandes clássicos, mas também por apoiarmos muito a nova ópera, cruzamentos e revisitações.”

A resposta dos espectadores tem sido surpreendente, com “recordes absolutos de público que vem à ópera pela primeira vez. Estamos a chegar a um público que não consumia ópera. Este meio sempre foi muito fechado sobre si próprio, era preciso saber comunicá-lo. Chegámos a um ponto em que as pessoas só vão se à ópera se ela for quase 100% financiada pelo Estado, porque o público não pode pagar. A ópera afastou-se do grande público.”

Para a diretora artística, esse afastamento pode ter-se acentuado com a invenção do cinema, “que veio alterar a forma como as pessoas se divertiam. Com o aparecimento da televisão e das novas tecnologias, o divertimento deixou de estar no palco e passou a chegar a um número ilimitado de espectadores. O Homem entrou na utopia por excelência, e isso é maravilhoso, porque a arte tenta recriar utopias, o que tem um elemento muito catártico, porque enriquece a nossa existência, que é limitada, e apazigua as dores relativas à nossa finitude. Até lá, vamos tentando compreender os mistérios da vida e o objeto artístico tem uma ligação muito forte a estas grandes questões, que vão estar muito presentes nesta edição”.

“A ópera afastou-se do grande público”

O tema deste ano é Entre o céu e o inferno, com o subtema da libertação feminina: “as histórias das grandes óperas de repertório têm quase sempre heroínas, mulheres que são umas sacrificadas, tal como na vida real”, explica. A programação é marcada por grandes clássicos, com a presença das duas óperas mais vistas de sempre: Carmen, de George Bizet, no arranque do festival, e A Flauta Mágica, de Mozart. Molder destaca ainda “o grande clássico Suor Angelica, de Puccini, e a estreia absoluta de Rigor Mortis, do talentosíssimo Francisco Lima da Silva.”

Outro dos pontos fortes do festival é a ópera satélite, “que promove novos olhares e explorações da matéria operática a vários níveis, e que inclui uma conferência do Ruy Vieira Nery em torno do fenómeno [Maria] Callas na celebração do centenário do seu nascimento, e um curso livre que viaja pelo mundo da ópera”. Mas há muito mais para ver, como “a rave operática que se tornou a imagem de marca do Operafest, e onde se mistura o mundo pop com a ópera, demostrando o ecletismo do festival”.

A diretora artística do Operafest realça ainda a qualidade de todos os artistas envolvidos, “um viveiro de novo talento. Todos os encenadores deste ano estão a encenar ópera pela primeira vez”, como é o caso de Tónan Quito, com Carmen, Mónica Garnel, em A Flauta Mágica, ou David Pereira Bastos, em Suor Angelica e Rigor Mortis. “Alguns já são nomes consagrados no meio teatral, mas nunca encenaram ópera. Não vão estar preocupados com nenhum preconceito ou com a tradição. Acho que podem trazer propostas estimulantes para o mundo da ópera, que tem muita dificuldade em reinventar-se”.

Toda a informação e programação completa pode ser consultada aqui.

Na reta final do verão, mesmo antes do início da rentrée, Lisboa recebe o MEO Kalorama. O festival estreou-se o ano passado no Parque da Belavista, fazendo justiça ao nome (kalorama é a palavra grega para “bela vista”), e regressa para “confirmar que o sucesso da primeira edição não foi em vão”, como afirma a diretora de comunicação Andreia Criner. Nesta segunda edição, entre os cabeças de cartaz estão os Blur, Florence and The Machine e os Arcade Fire, argumentos de peso para conquistar um público que se pretende cada vez mais heterogéneo.

Por falar, precisamente, no público, na primeira edição do MEO Kalorama, 32% dos espectadores do festival eram estrangeiros, um número que, para a organização, fez todo o sentido, uma vez que “não descaracteriza o festival. Ouve-se, sobretudo, falar português, mas também muitas outras línguas, e essa mescla é muito interessante.”

Sobre como se seleciona um cartaz desta envergadura, Andreia Criner explica: “programa -se com risco, com vontade de mostrar coisas novas, nomes que o grande público provavelmente ainda não conhece. A dinâmica destes grandes festivais é essa: programar alguns nomes seguros, tendo espaço para poder mostrar coisas novas, introduzindo o que achamos que vão ser os grandes artistas do futuro.”

Tamino, uma espécie de ‘filho’ entre Jeff Buckley e Leonard Cohen, é uma das atuações que Andreia não quer perder.

O evento assenta sobre três pilares: música, arte e sustentabilidade. “Os festivais produzem pegadas ambientais pesadas, e por isso começamos o festival a pensar no que vamos fazer com os resíduos. Existe um plano e um compromisso público. Temos um projeto muito sério, empenhado e escrutinado”. A arte é outro ponto forte: “Lisboa é uma mostra de arte urbana a céu aberto, por isso este ano vamos ter ainda mais arte espalhada pelo recinto. Temos também a preocupação de ter muitos artistas nacionais, inclusive de Marvila, como os Underdogs ou Chelas é o Sítio. Do ponto de vista artístico, é uma zona extraordinária e que pulsa de talento.”

E, como a música é o principal, não podíamos deixar de pedir a Andreia as suas sugestões: “a nível pessoal, quero muito ver Tamino, uma espécie de ‘filho’ entre Jeff Buckley e Leonard Cohen. Não tenho dúvidas de que vai chegar longe e penso que irá chegar a Portugal relativamente desconhecido do público. Um dos nomes que penso que gera mais curiosidade é o de Ethel Cain. Outro nome interessante é a Siouxsie, mas talvez para uma geração um pouco mais velha.”

“Os Yeah Yeah Yeahs também são um nome imperdível. Já não vêm a Portugal há muitos anos e têm disco novo para apresentar”, sublinha Andreia. Mas, há mais: “Aphex Twin penso que vai ser o encontro de uma geração e os Prodigy também são um nome forte. Será com grande aperto no coração que não vamos ter o Keith Flint no palco, mas vai ser bom celebrar a sua memória, até porque passam 25 anos do lançamento de The Fat of the Land.”

Para concluir, a diretora de comunicação do Kalorama lembra ainda que “Arca, Pablo Vittar e Tiga são  outros nomes a não perder. E, claro, temos artistas lusófonos muito bons. Quero muito ver Scúru Fitchádu, Pongo ou Dino D’Santiago.”

Toda a programação pode ser consultada aqui.

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