Estudaste Direito, depois jazz, até te tornares numa das mais relevantes vozes nacionais. A música aconteceu por acaso?
Sempre achei que a música ia estar presente na minha vida de uma forma mais informal. Em minha casa cantava-se música do Alentejo. Acho que aprendi a cantar antes de aprender a falar e aconteceu a mesma coisa com o meu filho, que também cantou antes de falar. Durante muito tempo olhava para a música como um hobbie que um dia, romanticamente, talvez pudesse tornar-se mais do que isso, mas nunca foi uma escolha assumida, até aos meus 19 anos.
Havia a preocupação de ter um “canudo” [expressão coloquial para referir diploma de um curso superior] noutra área?
Os meus pais sempre me deram muito apoio, mas naturalmente que isso era uma preocupação. Naquela fase, o “canudo” era muito importante, mas acho que agora as pessoas começam a valorizar outro tipo de experiências. Quando quis desistir de Direito, a minha mãe disse “mas não vais para o vazio, tens de ir estudar qualquer coisa”. Lembro-me de terem ficado preocupados, mas nunca me puseram essa pressão. Depois, quando acabei o curso, ficaram um bocadinho mais descansados.
A tua carreira musical iniciou-se no jazz, mas atualmente tens uma sonoridade mais pop. Em que altura do percurso percebeste que era este o teu som?
No fundo, a música que escrevia foi-me mostrando isso. Quando comecei a compor estava em Amesterdão, só convivia com músicos de jazz, estava a estudar esse estilo de música, mas obviamente que as minhas referências vinham da adolescência, de cantautores que ouvia, como a Sheryl Crow ou a Joni Mitchell. Quando comecei a estudar jazz, tinha a ideia de que era o que estava mais próximo, em termos de estudo, da música que queria fazer. Entretanto percebi que era todo um mundo. Acabou por ajudar-me muito ao dar-me ferramentas que ainda hoje utilizo para compor. No fundo, quando se aprende a improvisar – que é uma coisa muito do jazz – o que estamos a fazer é quase compor em tempo real, seguindo certas regras, conhecendo a harmonia, etc. Essa consciência veio quando percebi que estava a tratar canções que já eram pop, como se fossem canções de jazz. E, portanto, agora era preciso produzi-las (e fazer arranjos) enquanto canções pop. Não pensei “agora vou fazer pop”, pensei “esta música não é jazz, o que é que isto é?” E fui atrás disso. Acho que os rótulos podem ser um bocado perigosos e limitadores. Este disco tem claramente um lado A e um lado B: um lado mais pop e um lado mais sombrio.
Fazes parte dos Cassete Pirata, projeto que tem uma onda um bocadinho mais rock. É fácil passares do teu registo habitual para uma sonoridade mais rock?
O rock também foi sempre uma influência para mim. Aliás, este disco tem aqui um bocadinho de indie rock. Acho que o meu primeiro álbum, Avesso (2014), era uma grande mistura de sonoridades e, apesar de ter um lado mais jazzístico, também tinha um lado mais rock, mais sombrio. Depois fiz esta viagem à pop e percebi como conciliar o meu lado mais melancólico com música que me puxasse para cima. Percebi qual é o equilíbrio perfeito para uma canção ficar no ouvido, mas ao mesmo tempo não ser 100% feliz, porque a vida não é assim. A minha música tem feito essa viagem e não tem sido assim tão consciente. Sempre gostei de ouvir muitas coisas e sempre tentei compor sem pensar muito sobre o assunto. Só depois é que olho para o que compus e tento perceber qual foi o caminho que a música fez.
O novo disco chama-se Vergonha na Cara. O que é que quiseste transmitir com este trabalho?
Não foi consciente, mas acabei por perceber que havia uma linha condutora. Os meus discos são sempre, primeiramente, para mim, para eu resolver as coisas que tenho a resolver. Só depois é que começo a pensar que as pessoas vão ouvi-los. São sempre muito autobiográficos e refletem uma luta com os meus conflitos interiores. Um deles foi a superação da timidez, daí esta necessidade de regressar à adolescência – que é um período tão importante para a definição da nossa personalidade – e ter percebido que passei uma grande fase do meu crescimento sem ser muito vocal em relação ao que eram as minhas opiniões. Fui uma adolescente tímida, que ouvia as opiniões dos outros sem ter muita confiança na sua própria voz. Anos depois, olho para trás e percebo que essa característica não desapareceu totalmente. Daí a necessidade de perceber que já tenho idade para não ter vergonha daquilo que sou e do que quero ser. Esse foi o tema principal, mas abordo outros temas como a autenticidade nesta era digital. As redes sociais, por exemplo, são um excelente mecanismo para divulgarmos o nosso trabalho, mas também têm um lado de não sabermos o que é verdade e o que não é, da forma como se comunica e de como se ignora o sofrimento real dos outros porque se vive muito da aparência. Há uma canção sobre isso, a Alibi. Preocupa-me imenso o estado da nossa saúde mental, porque é humano gostar de validação e muitas vezes as redes sociais alimentam-se dessa necessidade.
Há aqui uma vontade de reconciliação com o passado?
Sim, sem dúvida nenhuma. De reconciliação e de reencontro. E eu sinto mesmo que me reencontrei muito neste disco.
E nesse processo terapêutico não tens receio de te expores demasiado?
Isso é uma coisa que também me preocupa, porque depois tenho de estar num palco a olhar para o público enquanto canto, mas ainda não houve nenhuma situação em que sentisse que fui longe demais. A vulnerabilidade é muito importante na arte, mas é um equilíbrio difícil. Estar demasiado vulnerável também vai impedir-me de expressar convenientemente e de passar as mensagens que quero. Tive uma professora em Amesterdão que dizia que o sofrimento é uma coisa que nos emociona e que cria empatia, cria ligação com o objeto artístico. Por outro lado, ninguém quer sofrer comigo no palco. Há aqui um ponto em que o sofrimento vai impedir a comunicação de funcionar (a não ser que sejas a Elis Regina e que estejas a cantar o Atrás da Porta). Por exemplo, a canção Nascer do Zero fala sobre o processo de transformação de alguém que chega a um palco e tem de ser mais do que aquilo que é no dia-a-dia. É um momento catártico que tem o seu lado de adrenalina, mas também pode ser aterrador, é um salto de fé. É como saltar e confiar que o paraquedas vai abrir.
Que compositora és hoje?
Sou mais segura e confio muito mais nos meus instintos. Uma coisa que este percurso me tem mostrado é que, sem as pessoas, sem uma equipa que trabalhe connosco, não somos ninguém. Tenho tido a sorte de trabalhar com pessoas absolutamente fantásticas, dos músicos aos produtores. Acho que tive alguma visão na escolha das pessoas para fazer este disco comigo. A começar pelo Tony (António Vasconcelos Dias), que foi o principal produtor do disco e que é também o diretor musical. É uma pessoa com quem estou muito alinhada, com quem é muito prazeroso trabalhar, que me desafiou imenso. Depois também trabalhei com o Ben Monteiro, que produziu o primeiro single e me devolveu a confiança na minha voz, que me puxou até ao limite em termos vocais. O artista tem constantemente de evoluir e é muito tentador, quando fazemos algo que achamos que funcionou, tentar repetir essa fórmula de sucesso. Obviamente que também me debato com isso. Sei que provavelmente nunca mais vou fazer uma canção como a Leva-me a Dançar. Andei à procura de canções na mesma onda, mas não dá para repetir, a canção tem de ser espontânea. Por outro lado, tinha saudades de poder falar mais abertamente da melancolia, mesmo que a música refletisse isso esteticamente. Acho que a artista que sou hoje acaba por ser uma fusão do lado que estava mais presente no três primeiros discos, um lado mais solar, e o outro, que dá mais espaço à voz, à emoção e à tristeza. Isso também faz parte de mim e era um lado que estava mais esquecido artisticamente. Estou muito orgulhosa deste disco, acho que encontrei até agora a minha expressão artística mais perfeita.
Quando escreves para outras pessoas também usas as mesmas referências autobiográficas ou tentas viajar até ao universo do outro?
Normalmente viajo até ao universo da pessoa. Por exemplo, no caso da Carminho, que foi das primeiras pessoas para quem compus, imaginei mesmo a voz dela a cantar. Escrevi a canção O Menino e a Cidade, e mais tarde apercebi-me que é uma imagem que li num livro de Chico Buarque, e a Carminho também tem essa ligação ao Brasil. Ela adorou a canção, mas pensei que estava só a ser simpática, até que a veio a gravar quase dois anos mais tarde. Quando a ouvi pensei que era exatamente assim que a tinha imaginado. Percebi que não podia escrever tudo para mim e que escrever para outras pessoas me ia dar a liberdade de poder canalizar outros estilos de música, dos quais também gosto, para outras pessoas. Tento conhecer a história da pessoa para não mandar uma canção muito ao lado, para que se possa identificar com a canção, mas acho que nesse processo acabamos sempre por ir buscar a nossa experiência e as nossas referências. É inevitável, há de ter sempre qualquer coisa de autobiográfico. Acho que a única exceção – que é uma canção que poderia ter sido eu a gravar, mas que acabei por dar a outra pessoa (que a interpretou incrivelmente, a Diana Castro) – foi a Ginger Ale. Era uma canção muito pessoal, que falava exatamente sobre aquilo que eu estava a viver quando a escrevi e com a qual, felizmente, ela também se identificava. De resto, das canções que escrevi para outras pessoas – com esta exceção – nunca senti que queria gravar nenhuma.
O disco sobe ao palco do B.leza este mês. Estás ansiosa por apresentá-lo ao vivo?
Estou com muita vontade de cantar estas canções ao vivo. Ainda para mais, o Tony vai tocar connosco e acho que o som da banda vai crescer com isso. Tenho sempre crianças a ver os meus concertos, porque algumas das canções são mais pop – apesar de eu não ter o intuito, quando componho, de o fazer para crianças – mas tenho algumas saudades de ver mais adultos nos meus concertos. Acho que este álbum tem mais essa dimensão, tem outra carga emocional.
Manuel Alegre
Memórias Minhas
Em reação à célebre frase de Octavio Paz, “Os grandes poetas não têm biografia, têm destino”, escreve Manuel Alegre: “É bonito, mas é uma treta. O destino, se é que há destino, está dentro da biografia. E dentro desta a escrita”. Daí este livro. Uma biografia concebida como “uma espécie de legitima defesa. Ou se conta o que nele está ou outros contarão outros contos em sentido inverso”. Contudo, Memórias Minhas é muito mais do que um relato individual. É, como testemunha Alberto Martins: “um deslumbrante caminhar por dias e lugares que se cruzam com tempos únicos da nossa história contemporânea. Uma vida – uma geração – a rebeldia, a resistência, a guerra, a cadeia, o exílio, a Voz da Liberdade, a festa dos verdes anos, amores e desamores. E ainda, (…) o luminoso 25 de Abril que mudou o destino (…)”. Uma belíssima evocação da vida de alguém que faz da escrita o que lhe dá “na real gana” e concebe a criação de um poema como “acto de resistência e libertação”. Uma obra que não olha apenas para o passado, mas que reflete sobre o presente: “Mais do que de economistas, este é um tempo que precisa de filósofos, poetas e profetas. Mesmo que a folha branca seja o deserto em que têm de pregar contra o ruído do mundo – em busca da música perdida.” LAE Dom Quixote
Wladyslaw Reymont
Revolta
“Uma obra que senti no meu coração que seria fundamental escrever apagou, de um momento para o outro, toda uma carreira”. Wladyslaw Reymont (1867-1925), um dos escritores polacos mais importantes do séc. XX, oriundo de uma família nobre empobrecida, desempenhou vários ofícios dentro e fora do país. O conhecimento da realidade do cidadão comum impeliu-o a escrever histórias sobre as dificuldades das classes baixas e a desumanização do capitalismo industrial. Quando recebe o Prémio Nobel de Literatura, em 1924, já Revolta, crítica da Revolução Bolchevique escrita dois anos antes, o tinha tornado persona non grata na Rússia. Os seus livros são proibidos durante décadas e a venda dos direitos de autor para o estrangeiro bloqueados. Revolta narra a insurreição liderada por Rex, cão maltratado, que junta os animais da quinta, e todos os que anseiam pela liberdade, num êxodo em direção à “Terra Prometida, onde não há humanos”. Face aos tormentos da viagem, cresce o saudosismo do cativeiro e da submissão aos antigos donos. Revolta foi escrita um quarto de século antes de Animal Farm de George Orwell, contudo, a vibrante evocação da natureza – ora luminosa e acolhedora, ora tenebrosa e hostil –, o fôlego narrativo, a riqueza e a complexidade emocional dos protagonistas, contribuem para situar a obra nos antípodas do reducionismo orwelliano. LAE E-Primatur
Bruno Amaral de Carvalho
A Guerra a Leste – 8 Meses no Donbass
“Quando a Rússia decidiu intervir na Ucrânia, já havia uma guerra civil a desenrolar-se desde 2014. Ninguém me contou. Eu estive lá.” As palavras são do jornalista português Bruno Amaral de Carvalho, que por três ocasiões – primeiro em 2018 e, por duas vezes, após a escalada do conflito, em 2022 e 2023 – foi testemunha in loco daquele que é, na opinião do major-general Carlos Branco no prefácio à obra, o “maior acontecimento geopolítico do pós-Guerra Fria, determinante nos termos da nova Ordem mundial que aí vem”. Ao longo de mais de duas centenas de páginas, o único repórter português a cobrir os acontecimentos do outro lado do conflito – isto é, junto das tropas russas, das milícias separatistas e das populações russófonas do Donbass –, cruza reportagem com crónica de guerra, oferecendo um contributo fundamental para uma perspetiva bem mais distendida dos acontecimentos do que aquela que tem sido comumente apresentada nos média. Também por essa razão, não imune à controvérsia, A Guerra a Leste vem preencher uma lacuna no panorama editorial português, até aqui profícuo em visões unívocas para um conflito demasiado complexo para simplificações espúrias. FB Caminho
Machado de Assis
Último Capítulo
Na advertência a Várias Histórias, recolha de contos datada de 1896, escreve Machado de Assis: “As palavras de Diderot que vão por epigrafe no rosto desta coleção servem de desculpa aos que acharem excessivos tantos contos. É um modo de passar o tempo. (…) O tamanho não é o que faz mal a este género de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outos são medíocres: é serem curtos”. Os contos de Machado de Assis foram escritos diretamente, de modo consistente e abundante, para revistas, jornais e almanaques e as suas múltiplas qualidades culturais, literárias e sociais, que seguem o padrão de desenvolvimento do conto moderno, fazem dele um mestre da ficção curta. Último Capítulo é o primeiro de quatro volumes que reúnem a produção contística completa do autor. Cada volume contém um determinado período da sua escrita, seguindo uma ordem de publicação cronológica invertida, facultando ao leitor a possibilidade de compreender o auge da sua obra e depois, gradualmente, ir conhecendo a sua evolução, as suas raízes e as fontes de inspiração. LAE E-Primatur
Byung-Chul Han
A Crise da Narração
“Na modernidade tardia, que é a era digital, disfarçamos a mudez e a ausência de sentido da vida pelo gesto permanente de post, like e share. O ruído comunicativo e informativo cala o vazio inquietante da vida. A crise atual não consiste na escolha entre viver ou contar. Mas antes na escolha entre viver ou publicar”. Apoiando-se em citações do filósofo judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940) sobre a modernidade, período que corresponde, entre outros fenómenos, à invenção do cinema, Byung-Chul Han estabelece um paralelismo com o nosso tempo, a modernidade tardia, e a dominância das redes sociais, que mobilizam a partilha de instantes, em tempo presente, das nossas vidas, desprovidos do recuo analítico e das conexões lacunares da memória, essenciais à narração. A Crise da Narração dá conta do indivíduo atual, menos investido na narração e redenção do seu tempo passado, e pertencente a uma comunidade de seres isolados que trocaram os valores da narração por uma corrente de informações que se diluem e geram um esquecimento coletivo. As narrativas da modernidade tardia “assemelham-se, em grande medida, à informação. Tal como esta, são efémeras, arbitrárias e consumíveis. Não conferem estabilidade à vida.” RG Relógio D’Água
Thomas Fischer
Entre Cravos e Cardos
Aos 19 anos, no chamado Verão Quente de 1975, ao volante de um carocha verde, o alemão Thomas Fischer visitou Portugal pela primeira vez, seduzido pela Revolução dos Cravos e pelo seu clima exaltante de liberdade. A partir de 1983 passou a residir em Portugal. Quando em 2020 adquiriu a nacionalidade portuguesa, uma amiga enviou-lhe a seguinte mensagem: “Agora não comeces a chegar atrasado a todo o lado”. Jornalista de profissão, licenciado em Economia e Sociologia, acompanhou sempre de perto a atualidade política, económica e social do país. Neste livro, o autor alia os seus conhecimentos sobre a realidade portuguesa às suas experiências pessoais no país para, através de vários episódios reveladores, analisar o que na sua perspetiva correu bem e mal, passados 50 anos do 25 de Abril. Thomas reconhece os esforços para recordar a revolução e os seus protagonistas, mas considera que “nem sempre se presta a mesma atenção aos valores de Abril”. Somos ainda em muitas áreas “marcados pelo desenrascanço, pelo endividamento e pela emigração”, uma sociedade definida “pela desigualdade, por altos níveis de pobreza” e, ao mesmo tempo, “um paraíso para estrangeiros abastados”. E conclui: “Amar Portugal pode ser difícil, mas não deixa de ser um caso de amor aquilo que tenho com Portugal. Os Amores são assim.” LAE Edições 70
Judith Butler
A Pretensão de Antígona
Antígona é a protagonista da tragédia homónima de Sófocles, estreada em 441 a.C., em Atenas. Apesar da sua condição de mulher na Grécia antiga, segue a voz da consciência contra a vontade de Creonte, rei de Tebas. Através da sua coragem, tornou-se no símbolo perene de revolta feminina contra o poder e as leis dos homens. Judith Butler, uma das principais figuras teóricas contemporâneas do feminismo e da teoria queer, afirma: “Comecei há uns anos a pensar em Antigona ao perguntar-me o que teria acontecido a todo esse empenho feminista de confrontar e desafiar o Estado”. Nesta obra, propõe uma nova leitura do legado de Antígona, a célebre insurgente de Sófocles. Ao interrogar-se sobre as formas de parentesco que lhe poderiam ter permitido viver, confrontando o parentesco e o poder do Estado, a autora associa os intrépidos atos de Antígona às reivindicações das pessoas com relações de parentesco ainda por reconhecer, e demonstra como o parentesco heteronormativo continua a decidir o que deve, ou não, ser uma “vida vivível”. Procura recuperar, deste modo, o significado revolucionário desta figura clássica, integrando-o numa política sexual progressista. LAE Orfeu Negro
Mais Alto! é um concerto em viagem, pelo tempo e pelo espaço, onde se descobrem algumas das canções que uniram pessoas e que precisam de ser cantadas bem alto, para se fazerem ouvir. Porque há assuntos sobre os quais não se pode falar através de sussurros, mas sim, alto e bom som!
No ano em que se celebram os 50 anos da revolução de 25 de Abril, o concerto, que tem subido aos palcos de todo país procurando levar mais longe a ideia de que todos juntos, cantando bem alto, conseguimos atingir objetivos comuns, regressa com novas versões de canções conhecidas que cristalizam ideais democráticos e de liberdade, bem como canções de protesto.
“Nós fazemos versões de músicas que tenham algum cariz reivindicativo, e fazemo-lo para um público jovem. Essas músicas são comentadas pela Isabel Minhós ou pelo João Vaz Silva, a explicar o porquê, a contextualizar, a tentar mostrar a razão de ser destas canções”, explica o músico Afonso Cabral, que assume voz, teclado e baixo.
São músicas que fizeram sonhar, suspirar, conspirar… e talvez revolucionar todos os homens e mulheres que viviam atrás desta porta fechada que era Portugal, que, diz-se, até à revolução de 1974 era um país cinzento e triste.
“Apesar de Mais Alto! ser um concerto comentado de canções de intervenção, não se trata só de cantigas que associamos necessariamente ao 25 de Abril. Há essas, da autoria de José Mário Branco, Sérgio Godinho ou Zeca Afonso, mas também temos compositores mais nossos contemporâneos, como o Luís Severo ou o Benjamim”, reforça Francisca Cortesão (voz, guitarra acústica e guitarra elétrica), adiantando que “é, no fundo, um concerto para explicar qual é a importância da música nas revoluções e a importância das revoluções na música.”
Além dos espetáculos ao vivo, este mês é lançado, também, um livro-disco (Louva-a-Deus Edições) com algumas das canções que têm vindo a integrar o espetáculo. As músicas, as letras e as histórias (e a História) por detrás destas canções são algumas das surpresas que os leitores e ouvintes ali irão encontrar.
O primeiro single do livro-disco, que conta com textos de Isabel Minhós Martins (exceto as letras de músicas) e com as ilustrações de Bernardo P. Carvalho, já chegou às plataformas digitais. Chama-se Comida e é uma versão de um clássico dos brasileiros Titãs.
Os próximos espetáculos de Mais Alto!, que Afonso Cabral promete serem “divertidos e centrados nas canções do disco-livro”, estão agendados para os dias 27 de abril, às 16h30 e às 18h30, e 28 de abril, às 11h30 e às 16h30, no LU.CA – Teatro Luís de Camões. O lançamento do livro-disco acontece a 28 de abril, às 17h30 (depois do concerto). No dia 11 de maio, a banda atua no Auditório da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa.
Estão a ouvir bem, ou é preciso pôr mais alto?
José Fanha
Era uma vez o 25 de Abril
José Fanha viveu o 25 de Abril de 1974 com a mesma intensidade, emoção e espanto de muitos outros jovens de então. Com o passar dos anos, percebeu que os jovens de hoje pouco sabem acerca desses dias distantes. “As memórias são muito importantes. Tanto as das coisas boas como as das coisas más. Nós não podemos perder a memória e eu acho que nós falhámos, enquanto país, na transmissão da memória do 25 de Abril em relação aos mais novos. Eles não sabem o que era a vida antes de Abril”, diz o autor. Poeta e escritor, Fanha é, acima de tudo, um contador de histórias. E foi por isso que resolveu contar a história de como era Portugal antes da Revolução dos Cravos, como se desenrolaram os dias do 25 de Abril e como surgiu o Movimento das Forças Armadas que o fez acontecer. “Eu tinha 23 anos quando foi o 25 de Abril. Portanto, tenho uma data de histórias para contar. E este livro foi muito isso. Foi contar as histórias de antes e contar o espanto do que foi aquele dia. Foi um dia maravilhoso. É um grande orgulho que tenha sido a primeira revolução da história a não ter mortos. E ser a primeira revolução em que se põe uma flor no cano da espingarda. Uma coisa maravilhosa, não é?”, acrescenta. Arquiteto de formação, José Fanha tem obra espalhada por diversos géneros: romance, teatro, cinema, televisão e literatura infantojuvenil. Tem corrido o país desenvolvendo uma atividade intensa como contador de histórias. Nuvem de Letras
João Pedro Mésseder e Alex Gozblau
Romance do 25 de Abril
E se um menino se chamasse Portugal? Ou então: pode o Portugal do antes do 25 de Abril ser comparado a um menino? Ora, por que não? Ouçam, pois, a sua história: como cresceu e sofreu e lutou até, já adulto, ver realizado um sonho. E que sonho foi esse? O da liberdade, é claro. Mas imaginou também uma democracia e uma justiça que julgou possíveis no seu país à beira-mar. Esse país onde hoje o mesmo menino, homem feito agora, continua atento a sonhar com um mundo melhor. Editorial Caminho
José Jorge Letria e Hélder Teixeira Peleja
O meu primeiro 25 de Abril
Esta é a história de um Abril muito especial. Do Abril (o de 1974) que pôs fim à guerra colonial, à censura e aos muitos medos de todos os dias e de todas as horas. O dia 25 daquele mês foi um dia emocionante e único, que deu a Portugal um prestígio mundial invejável. A história, deste dia, ao ser contada, ganha um H maiúsculo porque se tornou mesmo História, com datas, grandes personagens e muitos sonhos para cumprir. Dom Quixote
Matilde Rosa Araújo e João Fazenda
História de uma flor
Abordando temas como a liberdade, a celebração do 25 de Abril e a democracia, este livro conta a história de uma flor. Esta flor estava num canto escuro da terra sem sol que lhe desse cor, sem um olhar que a tocasse, sem as mãos do vento que a fizessem estremecer. Nas ruas havia flores vermelhas por toda a parte. No peito das mulheres, dos homens, nos olhos das crianças, nos canos silenciosos das espingardas. Nem era uma guerra, nem uma festa. Era o mundo de coração aberto. Editorial Caminho
Margarida Fonseca Santos e Inês do Carmo
7 X 25 – Histórias da Liberdade
Este conjunto de sete contos onde as personagens principais falam na primeira pessoa são narrativas carregadas de simbologia: o semáforo que travou a revolução durante uns minutos, o lápis da censura que, de repente, se vê como um elemento criativo nas mãos de uma criança, a G3, o portão da prisão de Caxias, o megafone… Este livro oferece aos mais novos uma visão subjetiva daquilo que se passou nas primeiras horas do dia 25 de abril de 1974, fazendo o contraste entre a opressão e a liberdade. Gailivro
Ana Maria Magalhães, Isabel Alçada e Sofia Cavalheiro
25 de Abril
Parte integrante de um conjunto de publicações da Assembleia da República que leva ao conhecimento dos mais jovens os acontecimentos mais marcantes da nossa história, este número, dedicado ao 25 de Abril, relata através de textos e de imagens, a conjuntura que antecedeu e ditou a Revolução de Abril, bem como o período conturbado que se seguiu. Aqui, são abordados temas como a guerra colonial, a ditadura, a PIDE e os presos políticos, a democracia e o ato eleitoral. Assembleia da República
Raquel Costa
25 Mulheres. Uma Revolução no feminino
Este livro reúne 25 perfis femininos no caminho pela liberdade, dando a conhecer as histórias de 25 mulheres contadas pela sua voz. Esta viagem à sociedade portuguesa do início dos anos de 1970 espelha as contradições da condição feminina, com as quais ainda nos debatemos hoje, meio século depois. O que mudou? Como mudou? Como nos víamos na altura? Como nos vemos agora? Tal como o caminho para a liberdade, este é um livro em permanente construção. Oficina do Livro
Situado na região onde os rios Ganges e Brahmaputra desaguam na Baía de Bengala, no sul da Ásia, o Bangladesh é marcado por uma vegetação exuberante e muitos canais. A maior parte do país é composta por planícies baixas, fertilizada pelas enchentes dos muitos rios e cursos de água que as cruzam. Mas os rios, durante a época das cheias, causam também uma grande destruição nas zonas mais ruralizadas.
Este é, aliás, um dos maiores problemas que o país enfrenta e, por isso, Marina Tabassum, num trabalho que responde aos problemas sociais das comunidades e aos desafios do clima tirando partido dos recursos e saberes locais, concebeu, juntamente com a sua equipa, um sistema de construção modular e portátil de baixo custo. “Muitas pessoas perdem as suas casas devido às chuvas ou perdem os abrigos improvisados em incêndios”, diz a arquiteta e pedagoga bengali.
Em Materiais, Movimentos e Arquitetura no Bangladesh, Tabassum apresenta algumas das suas obras contruídas desde 1995. Entre elas, destacam-se respostas a problemas urgentes, como as condições de vida dos 1,2 milhões de refugiados rohingya ou as transformações impostas pela subida do nível do mar, como um modelo em tamanho real de uma das casas que concebeu, totalmente feita em bambu, e que torna as habitações arejadas, seguras e acessíveis.
A trabalhar em Daca, capital do Bangladesh, Tabassum, que tem procurado estabelecer uma prática arquitetónica simultaneamente contemporânea e enraizada no lugar, desenvolve ideias que vão desde o modo de utilizar recursos até às estratégias de envolvimento das comunidades. No seu trabalho, reconhecido internacionalmente, a arquiteta tira partido das características dos materiais e explora a luz para qualificar as dimensões físicas do espaço. Além disso, e segundo o curador André Tavares, uma das suas principais mais-valias é a capacidade de “realizar grandes transformações por meio de pequenas intervenções”.
A exposição, que conta também com a curadoria de Vera Simone Bader , reúne instalações, vídeos, fotografias e objetos do dia-a-dia destas populações, e pretende, ainda, trazer boas notícias do Bangladesh, partilhando na Europa a animada cena intelectual alimentada pelo caudal dos rios daquele país.
Materiais, Movimentos e Arquitetura no Bangladesh pode ser visitada até 22 de setembro.
O teu último disco, Sentimental, surge depois de uma pausa de quatro anos. Que mensagem quiseste transmitir?
Acima de tudo, quis que fosse o disco certo, de que me orgulhasse. Não quis lançar um disco só porque sim. Sei que demorei quase cinco anos a lançá-lo, mas fiz tudo com cabeça. Escolhi bem as músicas que fiz ao longo destes anos (ainda durante a pandemia e mesmo depois) e só as lancei quando me senti satisfeito. Quase que me obrigava a lançá-lo o ano passado, mas como ainda não estava satisfeito decidi adiar. Só aconteceu este ano e sinto que foi fruto de um trabalho não só de produção árdua na busca de sons novos, de instrumentos novos e também de alguns elementos de eletrónica que ainda não tinha explorado, mas também na parte lírica. Sempre procurei escrever de forma simples, mas agora tentei alguns temas que ainda não tinha abordado liricamente. Não é nada de muito abstrato, até porque procuro sempre que as pessoas se identifiquem com as canções. Neste disco tentei desenvolver estes dois campos, tanto na produção como na escrita.
Consideras-te um perfecionista que não gosta de trabalhar com prazos?
Sim e não. Por um lado, funciono bem com pressão. Se não tiver um prazo que me obrigue a entregar o produto final vou adiando e nunca consigo fechar o disco. Por outro lado, acho que hoje sou menos perfecionista. Já fui mais esquisito com sons, com videoclipes… Com o passar do tempo percebi que há coisas com as quais nem vale a pena perder tempo. Coisas que as pessoas nem vão notar, eu vou ser o único a reparar que está ali algo que demorou imenso tempo. Ainda para mais quando hoje as pessoas estão cada vez mais “perdidas” com a quantidade de informação a que têm acesso, seja nas redes sociais ou noutras plataformas, por isso, quanto menos tempo perder a investir nessas coisinhas em que só eu é que reparo, melhor. Pode ter a ver com a maturidade, pode ser também fruto dos tempos que vivemos, de ter de me adaptar à velocidade com que se faz e lança música.
Assumes muitos papéis enquanto artista: és cantor, músico, produtor, compositor… em qual deles te revês mais?
Nunca me encarei como um cantor, como se a minha tarefa principal fosse cantar. Gosto muito de cantar, treino muito e tento desenvolver cada vez mais a minha voz e a técnica vocal, mas acho que o meu foco, na maior parte do tempo, é na parte da produção, dos instrumentos. É tocar, gravar, produzir, tentar fazer um bom instrumental… Em relação à voz, sinto que descobri um registo confortável, em que me sinto bem e em que gosto de me ouvir, mas não é o meu foco principal. Não sou como certos cantores que admiro, cantores profissionais que nasceram com talento e técnica, como a Adele, por exemplo. Aprendi a cantar por volta dos 18, 19 anos e sinto que a minha vida musical e profissional primeiro surgiu como guitarrista, e só depois é que comecei a cantar. E acho que ainda continuo a ser assim.
A paternidade alterou a maneira como compões as tuas músicas?
Penso que não, que continua igual, pelo menos tento separar esses dois mundos. Podia muito bem entrar numa onda mais paternal e até fazer música, não diria infantil, mas se calhar para um público mais jovem. Mas quero continuar esta minha caminhada em que estou a amadurecer musicalmente, e acho que o consigo fazer naturalmente. Faço a música que sempre fiz, mas de uma forma um bocadinho mais madura. No dia em que surgir uma música para a minha filha tem de ser a certa, não é só porque sim, não vou forçar isso.
Seria algo que partilharias num disco?
Sim, claro. Mas aquilo que vivemos os três juntos é impossível descrever numa canção e acho que o amor ainda vai crescer, acho que ainda é cedo. Agora estamos na fase incrível e lindíssima dos quatro anos, de descobrir o mundo… Quem sabe se, no dia em que essa canção surgir, a minha filha já será grande o suficiente para a cantar comigo.
O teu último single, Amor de Ferro, é um dueto com o Pedro Abrunhosa. Como surgiu a vontade de terem uma canção os dois?
Quando fiz a maquete de Amor de Ferro – já estava praticamente pronta, faltava só o verso do Pedro, estava lá esse espaço em branco – achei mesmo que precisava da voz grave do Pedro, das palavras dele. Demorei quase um ano a falar com ele para que, quando lhe mostrasse a canção, ela estivesse mesmo finalizada. Logo na primeira noite em que fiz a canção – em fevereiro do ano passado – senti mesmo que ou tinha de ser para ele ou para cantar com ele. Depois, o convite surgiu e nem foi preciso ele ouvir a música. Quando lhe disse que se chamava Amor de Ferro, disse algo do género: “acho que esse nome é forte e que tem tudo para dar certo”. Só com o nome já estava quase convencido e então, depois de ter ouvido, rasgou-se em elogios, adorou tudo. De vez em quando manda-me mensagens a dar os parabéns. Acho que temos um respeito mútuo – mais da minha parte, porque ele é o artista que é, e o primeiro disco dele fez agora 30 anos – por isso é um sonho concretizado partilhar uma música com alguém como o Pedro.
A vossa relação começou quando participaste no Ídolos…
Sim, temos esse passado em comum. Ele não foi só um jurado, mas também um mentor. Estava sempre a elogiar-me, a fazer críticas construtivas. Senti que era a pessoa que estava mais atenta ao meu trabalho e o que me percebia melhor. São 12 anos de amizade…
Tens feito muitas colaborações com outros artistas. Fazes a canção e pensas na voz certa para ela?
Sim, com algumas exceções. Com a Carolina Deslandes por exemplo, foi tal e qual, o processo foi parecidíssimo. Fiz a música toda e queria mesmo que tivesse a voz dela. Depois mostrei-lhe a canção quase finalizada e ela foi muito rápida a escrever a parte dela. Demorou cerca de uma hora e meia, é mesmo talentosa. Com o Bispo, por exemplo, não foi nada planeado. Monarquia era uma música que tinha guardado durante a pandemia. Um dia estávamos em estúdio a tentar fazer outras coisas, e não estava a sair nada de jeito. Às tantas, mostrei-lhe a canção e ele imediatamente disse “é isto, quero fazer isto contigo”. Depois foi só gravar a voz dele na música. Neste caso não tinha nada planeado, mas muitas das vezes é assim que acontece.
Já trabalhaste com muitos músicos portugueses, quem é que ainda falta?
A Bárbara Tinoco ou o Ivandro, por exemplo. Chegámos a combinar uma sessão, mas ainda não aconteceu… Há alguns artistas que admiro e de quem sou amigo, mas ainda não surgiu a oportunidade de fazermos uma música.
Tem de acontecer naturalmente?
Sim, até porque o público nota. Tem de haver química para além da canção. Também me dou muito bem com os Calema ou com malta do hip hop, como Prof Jam, T-Rex, Slow J… São todos artistas que admiro imenso e sei que um dia vai surgir a oportunidade de trabalharmos juntos.
Dia 20 de abril regressas ao Sagres Campo Pequeno. Como é que é para ti pisar uma sala deste calibre?
É uma emoção, porque já lá vi muitos concertos. A primeira vez que assisti a um concerto lá, fiquei com muita vontade de atuar porque gostei muito da disposição da sala, uma espécie de Coliseu com uma bancada imponente. Fora um concerto que dei durante a pandemia, ainda não tinha tido a oportunidade de atuar aqui em nome próprio. Além disso, este é dos meus primeiros concertos em 2024. Tenho muita vontade, porque estou há três meses parado de propósito para me concentrar para este. Não quis dar muitos concertos para guardar a minha energia, até porque tenho um disco novo para apresentar, e estou ansioso por mostrá-lo ao vivo. Quando passamos quatro ou cinco anos a cantar as mesmas músicas ficamos ansiosos para apresentar novos temas. Vai ser a primeira vez que vou ouvir o público a cantar ao vivo Amor de Ferro, e estou ansioso por ter o Pedro Abrunhosa ao meu lado a cantá-la.
Sei que se prepara uma grande produção a nível cénico. Podes desvendar alguma coisa?
Para além do Pedro, vou ter alguns convidados que fazem parte do disco, como a Jura, o Van Zee e o Frankie (com quem gravei Underwater), e haverá algumas surpresas que não estão no cartaz. Na parte cénica investimos imenso. Desde o ano passado que temos um cenário mais robótico, mais futurista e que vai estar, finalmente, 100% funcional. O próprio cenário também será assim, e haverá pirotecnia. É um concerto irrepetível.
Já estás a pensar num futuro disco ou ainda estás para usufruir deste ao máximo?
Estou a viver tão intensamente esta fase do disco que, quando ouço algumas músicas, é como se fossem novas. Apetece-me ouvi-las de vez em quando e emocionar-me com elas, porque gostei muito do resultado. Ainda não estou a pensar em músicas novas. Nessa altura o meu corpo pede, começa a querer soltar ideias e melodias e aí percebo que está na altura de ligar o gravador do telefone e começar a despejar ideias para lá.
Embora não surja literalmente referido, à semelhança de Girafas é no Raval que decorre a ação de Leões. Trata-se do bairro popular mais emblemático da Cidade Velha de Barcelona e, muito provavelmente, o mais cosmopolita, sendo nele que parte considerável da obra de Pau Miró se inspira.
A propósito desta peça, o autor assumiu ter roubado “impudicamente” ao bairro “as pequenas paisagens que [ali] se descrevem”. No texto que escreveu para o dossier de imprensa aquando da estreia de Leões, em março de 2009 no Teatro Nacional da Catalunha, Miró resume com especial precisão o pulsar do Raval: “sair todas as manhãs na rua e encontrar olhares ameaçadores, olhares carregados de tantas nuances; sentir na atmosfera uma espécie de violência enterrada que está sempre prestes a explodir.”
É nesta selva urbana, simultaneamente atraente e hostil, que Miró situa os seus predadores, no caso “uma família entre muitas famílias” que, certa noite, na sua obsoleta lavandaria, recebe a visita acidental de um estranho (Vicente Wallenstein), vindo da “zona alta” da cidade.
Assustado, o rapaz implora a uma jovem em cadeira de rodas (Iris Runa) que lhe lave a camisa ensanguentada que traz vestida. A rapariga anui mediante pedidos bizarros, mas a noite torna-se ainda mais estranha quando surge um pai (Pedro Carraca) demasiado prestável e uma mãe (Andreia Bento) excessivamente afetuosa.
Ao início da madrugada, aparece na lavandaria o inspetor da polícia (Pedro Caeiro), personalidade bem conhecida no bairro, no encalço do meliante que terá esfaqueado um traficante de droga num beco vizinho. Numa críptica cumplicidade, a família oculta a presença do estranho. E a mãe, num excessivo gesto maternal (talvez porque aquele jovem lembre o filho que perdeu há alguns anos), ainda lhe oferece um leite quente com Cola Cao.
“Talvez”, dizemos nós, porque, como nota António Simão, “nunca são claras as intenções que as personagens nos revelam”. Leões é uma peça de contrastes, com a ternura e a compreensão a coexistirem com uma atmosfera de ameaça e de violência latente. “À maneira do policial, há sempre qualquer coisa escondida que não nos é dita. Essa é, aliás, uma das características que a generalidade das peças do Miró têm”, observa o encenador.
Uma herança de Pinter como é evidente, ou não fosse o próprio Miró a inscrever o dramaturgo britânico nas suas principais influências, a par de Beckett e da sua conterrânea Lluïsa Cunillé. A ambiguidade muitas vezes desconcertante de Leões levou António Simão a recomendar frequentemente aos atores que “não dessem as suas personagens como resolvidas. Sabemos que há sempre mais alguma coisa, que existe ali algo que não foi dito e que virá a ter valor para o desenrolar da ação.”
Toda esta teia de mistério, que “como tantos policiais contemporâneos, acaba por ser inconclusiva”, proporciona um inquietante desconforto na plateia. Mas, um dos grandes trunfos do texto, e particularmente desta encenação, é procurar oferecer ao público alguma familiaridade. “Como o Miró apenas refere que a ação se passa nos dias de hoje, procurei, pela paixão que tenho por essas décadas, dar-lhe coisas de finais de 80, algures de 90 e ano 2000. Até lá está um néon, a música indie e até qualquer coisa de Tarantino.”
Para além disso, voltando à geografia, aquele Raval pode ser um qualquer bairro popular no centro de uma velha cidade europeia, como Lisboa. “Aqueles pais ainda são de uma época em que havia ditadura, provavelmente vieram do campo para a cidade e ali abriram a sua lavandaria. Mas veio a globalização, o bairro e a cidade mudaram, aquele negócio já pouco dá. E eles estão ali fechados”, conjetura o encenador.
Com estreia marcada para 11 de abril, Leões permanece em cena até 4 de maio, no Teatro da Politécnica. Logo no dia a seguir à estreia, Pau Miró vai estar em Lisboa, participando, no final do espetáculo, numa conversa com o público e a equipa artística. Antes, pelas 18 horas, o autor catalão falará sobre o conjunto da sua obra, nomeadamente sobre as “fábulas” já publicadas entre nós nos Livrinhos de Teatro e que são a grande aposta deste ano dos Artistas Unidos.
Como tantos de uma geração que nasceu no dealbar de abril de 1974, Pedro Penim, vindo ao mundo em plena revolução, olha para as canções e para a poesia nelas contida como uma parte de si mesmo. “Cresci com elas, fazem parte da forma como me entendo, logo é um cancioneiro muito definidor da minha própria identidade”, explicita. São temas que evocam o anseio de liberdade, de justiça social, de igualdade e de solidariedade. Mas também a premência da luta, da resistência e da mudança.
Há no palco um coro de jovens que anuncia a Primavera, soprada numa brisa onde se escuta o Acordai de Lopes-Graça ou a Grândola, Vila Morena do Zeca, ou as palavras de Natália Correia que José Mário Branco tornou ainda maiores na Queixa das Almas Jovens Censuradas, ou toda a verve da Maré Alta de Sérgio Godinho ou d’ A cantiga é uma arma dos GAC. E, que vai a África clamar por liberdade com Bonga e o Duo Ouro Negro; ou resistir com as palavras de Chico Buarque e de Brecht; ou colocar no lugar quem quer arrumar Abril com o contundente All you fascists de Woody Guthrie.
“São quase 30 canções, umas mais conhecidas outras mais obscuras, quase todas escolhidas por mim, orquestradas pela Filipe Sambado, que as traz para 2024, dando-lhes um tom mais contemporâneo”, detalha Penim, sublinhando a importância do espetáculo as fazer “ecoar nestas vozes e nestes corpos da geração Z”, que compõem o elenco. No caso, trata-se de um coro de 13 vozes que, ao mesmo tempo que celebra “os ideias de Abril”, tal como no teatro grego vem “pressagiar tempos sinistros” e “despertar um lamento.”
Um espetáculo inclusivo
Reunindo em palco um elenco de jovens entre os 16 e os 25 anos, acompanhados pela veterania do ator Manuel Coelho, Quis saber quem sou insere-se plenamente no objetivo afirmado por Penim de, enquanto diretor do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II), prosseguir uma “democratização crescente” da instituição. É fundamental “reconhecer que há mecanismos de acesso que continuam a estar bloqueados e que há comunidades sub-representadas.”
Por estas razões, o espetáculo integra, literalmente, a língua gestual portuguesa, contando para isso com a presença no elenco da intérprete Jéssica Ferreira e de Vasco Sermão, o ator surdo “que apareceu na audição sabendo que estávamos à procura de artistas para um espetáculo musical”, conta o encenador. “Achei de uma enorme coragem, mas se ele hoje está aqui é por mérito próprio, por lhe reconhecer talento.”
A presença de Sermão “transformou também o espetáculo, levando-me a pensar que se tinha um ator surdo poderia tornar o espetáculo 100% acessível a um público surdo”. Isto sublinha a “ideia de que a inclusão e a diversidade não são meros chavões e podem ser conquistas reais”. “Estou convicto, ao integrar um ator surdo numa produção própria do TNDM II, que estamos a dar um sinal à sociedade” mais a mais “nesta altura”, reforça Penim.
Assim, nestes 50 anos do 25 de Abril, quando “Portugal parece voltar a entristecer, como dizia Pessoa”, ai está Quis saber quem sou a celebrar uma juventude que nos devolve a necessidade de fazer reviver os ideais que derrotaram o fascismo e o colonialismo. Uma juventude capaz de transmitir a esperança de que o “mau fado” que parece andar à solta não voltará a vingar.
O espetáculo está em cena, no Teatro São Luiz, entre 20 e 28 de abril, seguindo em digressão pelo país até novembro. Agendadas estão datas para Aveiro (24 e 25 de maio), Porto (21 de maio e 1 de junho), Loulé (7 e 8 de junho), Tomar (8 de agosto) e Coimbra (15 e 16 de novembro).
[artigo atualizado a 18 de abril na menção às datas de apresentação do espetáculo]
És formado em Psicologia, mas sempre viveste da música. Nunca pensaste tirar um curso superior nessa área?
Isso nunca me passou pela cabeça. No fundo, enriquecer-me com mais conhecimento sempre fez mais sentido em relação ao mundo e às coisas do que propriamente em relação à música. Há um mistério qualquer na música que eu nunca quis dominar muito bem.
O curso deu-te ferramentas que utilizas nas tuas composições?
Sinto que me interesso pela vida das pessoas. Talvez tenha escolhido Psicologia por esse tipo de preocupações fazerem parte dos meus interesses, não só em relação aos outros, mas também a mim próprio. Muita gente vai para o curso de Psicologia para se entender um bocadinho melhor e depois acaba por ganhar ferramentas para entender o mundo e os outros. Senti muito isso nos últimos 10 anos, quando comecei a escrever para outras pessoas. Escrever do ponto de vista de uma mulher ou do ponto de vista de alguém refém da lufa-lufa do dia-a-dia, por exemplo, que é uma coisa que eu não tenho, tem a ver com pôr-me no lugar do outro. O Carl Rogers, que desenvolveu a psicologia humanista, acredita na psicologia centrada no paciente, que é muito acerca de se pôr no lugar do outro. De se posicionar como uma sombra a acompanhar a vida da outra pessoa. São interesses que as pessoas têm e que acabam por desenvolver. Por exemplo, também gosto de filmes do Woody Allen ou de livros de Sartre ou de Dostoievsky. Obras de pessoas que mergulham psicologicamente no ser humano.
Transumante é o fim de um jejum de 13 anos nos discos a solo. Tinhas saudades de ter um projeto só teu?
É uma pergunta difícil de responder. Sinto que o meu trabalho é sempre andar para a frente e, portanto, as minhas ânsias são mais sobre o que vem a seguir do que propriamente de olhar para trás. Não acho que isso seja um sentimento familiar para mim. Agora, é totalmente diferente estar neste formato, já que não tenho de negociar ou sujeitar os outros às minhas ideias ou ao meu manancial de hesitações, paixões, dúvidas, etc. É uma coisa mais centrada; já não estava nessa posição há bastante tempo. É verdade que antes, quando estive a solo, tinha uma pressão que atualmente não sinto, de conseguir afirmar-me profissionalmente como músico, o que só acabei por conseguir em banda. Atualmente não sinto essa pressão, porque tenho um trabalho a escrever para outras pessoas e porque tive uma banda que criou um público e um discurso na cultura. E quando trabalho já não parto do zero, enquanto antes parecia que estava sempre a partir do zero.
Há alguns anos mudaste-te para uma zona rural e isso reflete-se muito neste disco, quase visualizamos as paisagens. Foi propositado?
Acho que me mudei já com o objetivo artístico de explorar cada vez mais o interior, a paisagem, as texturas do território. Em Diabo na Cruz explorei isso, mas sempre do ponto de vista de reunir as pessoas. O que estou a fazer agora, e a necessidade que fui sentindo, é de aprofundar, de fazer algo um pouco mais interior e do interior. Portanto, todo o trabalho que tenho feito, a investigação, a leitura ou a procura, era um objetivo. Às vezes estou em certos sítios do nosso país, zonas isoladas, ou passo por um riacho ou atravesso um canto de montanha e pergunto-me onde está a canção que me faça sentir que estou aqui. Senti vontade de explorar esse caminho na minha música. De criar essa canção…
Ao ouvir o disco, fica-se com a sensação que foi feito por uma pessoa muito serena, muito apaziguada. Também tem a ver com alguma maturidade que a idade traz?
Imagino que sim. É tentar traduzir para a escrita a energia que procuramos na vida e também que os sítios nos transmitem. Explorei isso anteriormente, se calhar em músicas como Vida de estrada, de falar do rebuliço diário na cidade, mas de uma vontade de escapar para os mares, para as serras, de sentir essa calma. Agora posso falar do ponto de vista de quem está nesse lugar. E também desta relação com a natureza, que é uma relação de aceitação do que ela tem de belo e magnífico e do que ela tem também de cruel e duro. Essa luta também está presente, penso eu, no disco.
Dás muita importância às palavras. Considera-las mais importantes do que a melodia?
Sem dúvida nenhuma que a palavra é muito importante para mim; mas a melodia e a música também o são. Talvez, nesta fase, comece a secundarizar o arranjo, a apresentação… Sou mais da escola do Bob Dylan, do Leonard Cohen e de muitos outros cantautores em Portugal, como o Zeca, o Sérgio Godinho, o Fausto, o Vitorino, a Amélia Muge. Aliás, se formos ver Os Lusíadas, são cantos. A ideia do poema cantado é uma coisa muito antiga. Portanto, a palavra é extremamente importante para mim, enquanto na melodia procuro trabalhar com matérias-primas tradicionais, algo que muitas vezes até pode ser simples. Imaginemos a base de uma tarte, sobre a qual vou pôr todos os ingredientes. Os ingredientes, para mim, passam muito pela palavra. E não é só a palavra no sentido do jogo de palavras. É muito importante aquilo que estou a dizer, que cada frase signifique alguma coisa. Que haja uma história, uma narrativa. E que eu sinta que avanço no sentido da minha obra. Se olhar para há 10 anos, sentir que estou a acrescentar alguma coisa. Nesse sentido, vejo-me mais como um escritor e um autor do que como um músico.
Já pensaste escrever um livro?
Já pensei e até já tentei, mas até agora nunca senti que tinha a contribuir nessa área aquilo que sinto que tenho a contribuir nesta. Fazer só por fazer não é o meu género. Gosto de sentir que estou a contribuir com qualquer coisa que não ouço noutro sítio, que me faz sentir que é relevante. Até porque esta questão da música de raiz portuguesa tem muito território para explorar. É ainda um fascínio muito grande e uma tentação de continuar a trabalhar. É verdade que agora há novas gerações que estão a pegar nisso e a levar a coisa ainda mais longe. Mas sinto que ainda posso dar umas achegas e isso motiva-me imenso. Outras pessoas farão, provavelmente, coisas ainda mais interessantes. Mas enquanto eu vir que há qualquer coisa que ainda não vi feita e que eu consigo fazer, vou tentar.
Ocupas grande parte do tempo a compor para outros artistas…
Quando lancei os meus discos a solo havia uma pessoa, o Pedro Tenreiro, a quem as minhas canções chamaram a atenção. E, embora enquanto artista a solo não me tenha conseguido afirmar no mercado, ele achava que eu tinha capacidade na escrita. Quando teve outros projetos na mão lembrou-se de mim. Portanto, o primeiro convite é para escrever o Rosa Sangue, dos Amor Electro, que é uma música que, entretanto, fez um percurso extraordinário. E a partir daí começaram a surgir convites, nomeadamente de fadistas. Comparo um pouco o fado à música country americana. Há uma tradição que precisa constantemente de novas letras, de novas músicas, porque senão os fadistas estão sempre a cantar o mesmo. Acho que é por isso que me chegam mais pedidos nessa área. E também porque o sentir da nossa cultura é algo que com que me preocupo constantemente. Talvez as pessoas também estejam à procura disso quando fazem fado.
Há alguém para quem gostasses muito de escrever uma canção?
Importa dizer que já tive a sorte de escrever para vozes incríveis como a Gisela João, a Ana Moura, a Cristina Branco, a Raquel Tavares… Portanto, não me posso queixar das oportunidades que já tive. Mas diria que o meu sonho é escrever para o Camané.
Criaste o Diabo na Cruz, uma banda marcante e inovadora. Há um antes e um depois de Diabo na música portuguesa?
Penso que há um antes e depois na cultura no seu todo, e Diabo na Cruz terá sido um dos agentes com um papel nessa transformação. Em 2008, quando formei a banda com o João Pinheiro e o Bernardo Barata, a forma de sentir e de olhar para a arte em Portugal era totalmente diferente do que é agora. E do que era em 2019, quando o grupo terminou. A urgência que sentia e que já vinha desde o fim dos anos 90, esta vontade de ter um projeto assim, ainda se sentia muito fortemente. A língua portuguesa ainda não estava afirmada nas canções da nova geração, ainda havia muita gente a cantar em inglês e pouca gente a falar sobre a nossa própria vida. Não me sentia representado nas canções do momento. No entanto, sinto que houve muitos outros fatores que influenciaram a transformação da cultura portuguesa. A começar pela questão da autoestima para a qual contribuiu muito o projeto A música portuguesa a gostar dela própria. Temos muito essa necessidade de aprovação do exterior. Isto mudou muito e, sem dúvida nenhuma, que Diabo na Cruz contribuiu para isso. Nós andávamos de aldeia em aldeia, na rádio, nos festivais, em grandes salas de concertos a obrigar a malta a lidar com a sua própria cultura e sentir esse orgulho.
Era quase psicoterapia de grupo…
Acho que sim, era um pouco isso. Era “vamos lá lidar connosco, fazer essa catarse”. Há outras influências que vão muito para além da psicologia, que é a música brasileira, em particular, o discurso do Caetano Veloso e o tropicalismo, que são uma grande influência para mim, e que, nos anos 90, me trazem essa noção de que é preciso acabar com este divórcio entre o que é a música moderna, fixe, cool, e o que é a música de raiz e a música popular. E isso é o que o Caetano faz nos anos 60 e 70. Porque nós estávamos 40 ou 50 anos atrasados nessa catarse.
Este disco é apresentado este mês no Maria Matos e também na Casa da Música, no Porto. Por que razão não o vais levar pelo país?
O formato que estou a fazer é muito sustentável. Tenho um arranjo para viola, simplesmente. Se quisesse andar de porto em porto, arranjaria forma de o fazer, mas estou numa fase em que me identifico mais com gestos significativos e especiais. Quem quer estar em contacto com a obra fá-lo de uma forma muito intencional e eu estou interessado nesse vínculo mais profundo. Quero tocar para pessoas que estejam mesmo interessadas no que estou a dizer. Isso é muito importante para mim. Depois de muitos anos a ir de festa em festa a conquistar públicos novos e pessoas que nunca tinham visto a banda, senti que tinha de o fazer. Faz-me sentir muito mais sereno tocar para as pessoas que estão interessadas em ir para uma camada mais profunda do que estou a fazer. Também por isso é importante que o encontro seja um momento especial e não se torne uma rotina. Porque o estilo de vida que procuro é criativo e artístico e a repetição não é, provavelmente, o que me está a interessar. Interessa-me escrever mais e, portanto, depois destes concertos, vou, de certeza, entrar numa nova fase.
Precisas de entrar numa bolha para compor?
Penso que funciona como bolha em que, durante um período – pode até ser um ano ou dois -, estou a cultivar coisas de uma forma livre, sem saber bem o que elas vão ser. Depois começam a ganhar forma como um objeto. Estou sempre à procura de uma narrativa, para que o ouvinte sinta que está numa viagem. Este disco em particular, acabei por escrevê-lo no verão de 2022 e foram três meses a montar o puzzle. Tem várias fases, é como um cultivo. Para chegar a um objeto que realmente fique fluido e organicamente conseguido, os prazos não ajudam em nada.
Portanto, és um perfeccionista que gosta de fazer as coisas a seu tempo…
Às vezes pedem-me letras de um momento para o outro e isso para mim é complicado. Não tenho interesse nenhum em contribuir com qualquer coisa a meio gás, só quero fazer coisas com as quais me sinto confortável, orgulhoso, que sinto que acrescentam qualquer coisa ao trabalho que já fiz.
Este concerto no Maria Matos é em formato viola e voz. Não te sentes muito exposto?
Já fiz isso o ano passado e é um bocadinho mais assustador. É um desafio, mas quando começar a sentir o calor do público começo a mergulhar para dentro da música e consigo perder-me e entregar o que acho que é preciso. Mas estou muito mais exposto, sem dúvida. Por outro lado, pensando no meu ofício, também as minhas canções e as minhas palavras estão muito mais expostas, por isso, de certo modo, sinto-me mais forte. Sinto que estou a comunicar diretamente a essência da canção, não tenho de passar por cima de bombos e guitarras elétricas. Isso faz-me sentir não só confortável como interessado e penso que é isso que estes concertos trazem de novo e de especial. As canções ficam muito mais próximas, muito mais legíveis.
O que podemos esperar do alinhamento deste espetáculo?
É um pouco de tudo. O concerto é muito concentrado neste disco, mas também vou apresentar versões de músicas minhas a solo dos anos 90 e 2000, algumas de Diabo na Cruz, uma ou outra música tradicional, e ainda uma ou outra que escrevi para outros artistas.
Paulo Moreiras
Os Dias de Saturno
Da epígrafe à última palavra, este é um romance marcado pela morte (“entre as flores escondida”). Não admira, por isso, que dois dos seus protagonistas, um médico e um mestre cozinheiro, sejam secretos alquimistas em busca do elixir da longa vida. A obra começa em plena negrura: durante um eclipse do sol, nasce uma criança, logo enjeitada pelos pais. O recém-nascido é portador de um estranho sinal junto ao coração que muitos creem ser a marca do demónio, indiciando um futuro de tormento e maldição. Em Lisboa, o jovem irá cumprir o seu cruel destino entregando-se a uma radiosa, mas funesta paixão. Esta narrativa, tão solar como sombria, apresenta uma vibrante evocação da Lisboa joanina e afirma-se como verdadeira ode às “vãs delícias” da vida: o amor, a amizade, o sexo, a boa mesa, os livros ou o teatro de comédia que expõe, com as suas facécias e equívocos, “a desarmonia do mundo e o desacerto entre os homens”. O notável engenho com que Paulo Moreiras cultiva o género pícaro, a riqueza e variedade da sua linguagem, mergulham o leitor no tempo e na ação do romance, tomando-se por personagem destas aventuras cheias de reviravoltas e por habitante desta fervilhante Lisboa “em eterno movimento, misturando-se entre a maralha”. Nova edição revista, corrigida e aumentada. [Luís Almeida d’Eça] Casa das Letras
José Carlos Barros
Taludes Instáveis
Autor de 12 livros de poesia e de três romances, José Carlos Barros, natural de Boticas, é licenciado em Arquitetura Paisagista pela Universidade de Évora e vive em Vila Nova de Cacela. Taludes Instáveis, viagem ao seu universo poético, é composto por mais de 250 poemas, entre inéditos e composições retiradas dos livros de poesia do autor, publicados entre 1984 e 2023. Segundo Francisco José Viegas, que assina o prefácio, esta obra constitui “uma meditação sobre a melancolia antes do dilúvio – como se escrevesse uma música para o nosso desejo de contemplação e revisitação, o nosso desejo de ser de um tempo antigo no nosso tempo, desenhando as pegadas, espalhando armadilhas (sobre o amor, repetidamente, a relação com a família, a memoria da adolescência), segundas e terceiras intenções”. A ironia, uma constante na sua obra (escreve Francisco José Viegas ainda no prefácio: “Não há poesia sem ironia – de contrário, o verso seria sempre um momento enfadonho de epopeia e solenidade”) é evidente neste haiku intitulado Ainda a Literatura que, com outros poemas, reflete sobre o sentido da própria escrita: “O vento dos poemas/ não faz mexer/ uma folha.” [Luís Almeida d’Eça] Dom Quixote
Erasmo de Roterdão
Elogio da Loucura
Em 1509, ao percorrer os Alpes numa viagem pela Itália, Erasmo começa a pensar dedicar o seu conhecimento à criação de um paradoxo – uma obra a elogiar a loucura. Nesse texto, que ocupa um lugar central no humanismo da Renascença, opta por não falar em seu nome próprio nem criar a figura de um narrador, retratando a loucura a discursar diretamente para uma assembleia de eruditos. Resguardando-se nesta estratégia, Erasmo permite-se conceber um texto satírico de crítica de costumes social e religioso que denuncia as loucuras da sociedade que abrange a maioria dos estratos sociais, mas que se concentra no conjunto poderoso dos clérigos (teólogos, padres, bispos e papas), dos reis, príncipes e cortesãos. Na dedicatória ao seu amigo Thomas More escreve: “(…) quando a sátira não poupa nenhuma classe da sociedade, ninguém pode dizer que ela procura alvejar este ou aquele individuo, visto que se atira por igual a todos os vícios”. Porém, o Elogio da Loucura não se limita a uma crítica de costumes. A obra configura um discurso complexo, polémico, e desconcertante, ainda hoje atual, sobre a sociedade do seu tempo. Segundo o historiador Anthony Crafton, este texto deverá ser lido como “uma obra profundamente séria e concebida para estimular o pensamento, e não para apresentar soluções firmes.” [Luís Almeida d’Eça] Bookbuilders
Gonçalo M. Tavares
Um homem: Klaus Klump
Num tempo de guerra, num país sem nome, Klaus Klump “é editor, quer fazer livros que perturbem os tanques”. Oriundo de uma família rica, Klaus “não apreciava de maneira particular a pátria, cuspia nela se necessário, mas era capaz de morrer pelos seus livros e hábitos”. Oriundo de uma família rica, Klaus dizia que “um homem durante a guerra deve ser surdo-mudo enquanto for possível. E ficar quieto”. Porém, quando a guerra irrompe, as coisas complicam-se e Klaus acaba por juntar-se aos guerrilheiros. Um homem: Klaus Klump, de Gonçalo M. Tavares, é um livro brilhante sobre a guerra e a devastação que provoca na natureza, nas cidades e nos homens. Um duro relato de sobrevivência que não se compadece com heróis nem anti-heróis, porque na guerra “ninguém permanece limpo”, pois a “única higiene que nos importa é sobreviver. E para sobreviver fazemos o que for necessário”. Nomeada para o Prix Jean Monnet de Littérature Européenne em 2015, a presente obra faz parte da pentalogia O Reino, recentemente reeditada. [Sara Simões] Relógio d’Água
F.-A. Paradis De Moncrif
História dos Gatos
Diz-se de Maomé que “encarecia de tal sorte o Gato que, sendo um dia consultado a propósito de um assunto de Religião, preferiu cortar um pouco a fazenda da manga, sobre a qual o animal repousava, a acordá-lo, quando se levantou para ir falar à pessoa que o esperava”. Paradis de Moncrif (1687-1770) foi buscar este episódio da vida do profeta, à obra Voyage du Levant (1717), de Joseph de Tournefort, um exemplo entre as suas muitas fontes, para o estabelecimento do relato epistolar dirigido a uma incógnita marquesa, a quem Moncrif se insinua tal como um felino. O autor, versado em múltiplos talentos que estão na razão da sua popularidade nos círculos aristocráticos da corte de Luís XV, faz deste livro breve, que mais tarde rejeitaria, um exercício de charme e erudição. George Grappe, autor da introdução de 1909, considerava-o um “livro à clef do cortesanismo e do parasitismo”, acrescentando que este compêndio de anedotas, fábulas e mitos, com origem em autores gregos, latinos, árabes e persas, disfarçava a inveja de Paradis de Moncrif relativamente à posição ocupada pelos gatos nos salões que frequentava, pequenos seres “cujos olhos profundos pareciam julgar a frivolidade humana, subserviente aos seus caprichos.” [Ricardo Gross] Edições 70
João Pedro Henriques
Revolução Inacabada
O jornalista João Pedro Henriques começa por ressalvar a sua divida de gratidão a todos os que se sacrificaram na luta contra a ditadura e a todos os que tiveram a coragem de fazer o golpe de 25 de abril de 1974. Este não é, portanto, um livro que desvaloriza as profundas mudanças das últimas cinco décadas de democracia, mas uma investigação sobre certas características na sociedade portuguesa que se mantêm quase inalteradas. Este estudo concentra-se em duas delas: o elitismo na política e o machismo na justiça. O recrutamento para a classe política dirigente praticamente não abrange pessoas não licenciadas e com contacto com a pobreza, e quase não há mobilidade do poder local para o poder nacional. No sistema judicial, a entrada das mulheres na magistratura e a mudança para leis mais progressistas não alteraram um padrão de baixas condenações por crimes sexuais, cometidos sobretudo contra mulheres. Uma terceira característica que o autor pretendia tratar era “a macrocefalia da bola” (a “chateação permanente” do futebol, nas palavras de Alexandre O’Neill). Interessava refletir de que forma o futebol está a contagiar o debate político e sobre uma possível continuidade de ligações entre a política e o futebol. Entretanto, o espaço exigido pelos outros temas acabou por relegar esta matéria para tratamento futuro. [Luís Almeida d’Eça] Fundação Francisco Manuel dos Santos
Amazing Améziane
Quentin por Tarantino
Améziane Hammouche é um autor francês de novelas gráficas, que se tem dedicado a biografar algumas das principais figuras da cultura popular do século XX, sendo um dos seus projetos a trilogia dedicada ao cinema – que teve um primeiro livro sobre Martin Scorsese, agora este Quentin por Tarantino, e que se concluirá ainda em 2024, com um título dedicado a Francis Ford Coppola: Don Coppola. Abordamos este Quentin por Tarantino, como é costume, do início ao fim (altura em que lemos que a “novela gráfica é uma obra de ficção”), e os episódios ou factos nele incluídos são totalmente plausíveis à luz da biografia conhecida do mais aclamado cineasta norte-americano surgido nos anos 1990 (década que corresponde às suas três primeiras longas-metragens: Cães Danados, Pulp Fiction e Jackie Brown). A obra chega mesmo a dar informação tão surpreendente (apesar de fidedigna), como a que diz respeito à nova vida do realizador em Tel Aviv, junto da mulher, a israelita Daniella Pick, e filhos. O livro alimenta e alimenta-se do fenómeno Tarantino, o artista que recria a partir de géneros e autores canónicos, não-canónicos, exóticos ou mesmo obscuros; o poeta do calão e da violência como motor cinético e cromaticamente expressivo; e o autor de personagens masculinas trágicas e de mulheres fortes que celebra da cabeça até aos pés. [Ricardo Gross] ASA
André Murraças
Sombras Andantes / O Triângulo Cor-de-Rosa / Fronteiras
Artista multifacetado, André Murraças tem uma vasta obra como dramaturgo, destacando-se recentemente a investigação em torno das experiências de opressão da comunidade LGBT, que estão no centro das três peças ora publicadas. Mais do que uma peça de teatro, Sombras Andantes (2022) é um contributo singular para a história da homossexualidade durante os anos da ditadura salazarista. O autor começa por recuar alguns anos antes da fundação formal do Estado Novo, em 1933, no intuito de compreender com que “ideia dos homossexuais se chegou”, para depois conduzir o espectador/leitor por um encadeado de tragédias pessoais que testemunham décadas de perseguição, de repressão e de estigmatização. Atendendo à representação da homossexualidade feita na literatura, na poesia, no teatro, na revista à portuguesa ou na imprensa da época, Murraças cruza-a com depoimentos pessoais e com centenas, daquilo que se suspeita terem sido milhares, de processos criminais constantes no arquivo da Polícia Judiciária. O presente volume inclui ainda O Triângulo Cor-de-Rosa (2020), um retrato dos prisioneiros homossexuais nos campos de concentração nazis, e Fronteiras (2021), uma peça curta em torno da ideia de migração com enfoque nos refugiados LGBT. [Frederico Bernardino] Artistas Unidos-SNOB
paginations here